(...) - Não me interesso pela saúde de que o senhor fala. - TopicsExpress



          

(...) - Não me interesso pela saúde de que o senhor fala. Existe nela uma semente de enfermidade, assim como na minha doença existe uma poderosa semente de saúde. - Esqueça teus caprichos, meu filho. Não há proveito em atrapalhar nossas ideias. Não afaste teu pai da discussão dos teus problemas. - Não acredito na discussão dos meus problemas. Não acredito mais em troca de pontos de vista. Estou convencido, pai, de que uma planta nunca enxerga a outra. - Conversar é muito importante, meu filho. Toda palavra, sim, é uma semente. - Ainda que eu vivesse dez vidas, os resultados de um diálogo pra mim seriam sempre frutos tardios quando colhidos. - É egoísmo próprio dos imaturos pensar só nos frutos quando se planta. A colheita não é a melhor recompensa para quem semeia. Já somos bastante gratificados pelo sentido das nossas vidas quando plantamos. Já temos nossa recompensa só em fruir o tempo largo da gestação. Já é um bem que transferimos, se transferimos a espera para gerações futuras. - Ninguém vive só de semear, pai. - Claro que não, meu filho. Se outros hão de colher do que semeamos hoje, estamos colhendo, por outro lado, dos que semearam antes de nós. É assim que o mundo caminha. É esta a corrente da vida. - Isso já não me encanta. Eu sei hoje do que é capaz essa corrente. Os que semeiam e não colhem, colhem do que não plantaram. Desse legado, pai, eu não tive o meu bocado. Por que empurrar o mundo pra frente? Se já tenho minhas mãos atadas, não vou por iniciativa atar meus pés, também. Por isso, pouco me importa o rumo que os ventos tomem, eu já não vejo diferença. Tanto faz que as coisas andem pra frente ou que elas andem pra trás. - Não quero acreditar no pouco que te entendo, meu filho. - Não se pode esperar de um prisioneiro que sirva de boa vontade na casa do carcereiro. Da mesma forma, de quem amputamos os membros, seria absurdo exigir um abraço de afeto. Maior despropósito que isso, só mesmo a vileza do aleijão, que, na falta das mãos, recorre aos pés para aplaudir o seu algoz. Fica mais feio o feio que consente o belo. - Continue. - Mais pobre o pobre que aplaude o rico. Menor o pequeno que aplaude o grande. Mais baixo o baixo que aplaude o alto. E assim por diante. Imaturo ou não, não reconheço mais os valores que me esmagam. Acho um triste faz-de-conta viver na pele de terceiros. A vítima ruidosa que aprova o seu opressor se faz duas vezes prisioneira. - É muito estranho o que eu estou ouvindo. - Estranho é o mundo, pai, que só se une se desunindo. Erguida sobre acidentes, não há ordem que se sustente. Não há nada mais falso que o mérito, pai, e não fui eu que semeei essa semente. - O que você quer dizer com tudo isso? - Não quero dizer nada. - Você tá perturbado, meu filho. - Não, pai, não tô perturbado. - Então de quem é que você tava falando? - De ninguém em particular. Eu só estava pensando nos desenganados, sem remédio, nos que não são supérfluos nos seus gemidos, nos que gritam de sede, ardência e solidão. Era só neles que eu pensava. - Quero te entender, meu filho, mas já não entendo nada. - Eu sei que misturo as coisas quando falo. São as palavras que me empurram, mas estou lúcido, pai. E, se há farelo nisso tudo, tem também aí muito grão inteiro. - Mas sonega clareza pro teu pai, filho. - Já disse que não acredito na discussão dos meus problemas. Estou convencido, também, de que é muito perigoso quebrar a intimidade. - É forte quem enfrenta a realidade. Depois, estamos em família, que só um insano tomaria por um ambiente hostil. - Forte ou fraco, isso depende: a realidade não é a mesma pra todos. E, de minha parte, a única coisa que sei é que todo mundo é meio hostil, desde que negue direito à vida. - Não há hostilidade nesta casa, ninguém que te negue direito à vida, não é sequer admissível que esse absurdo te passe pela cabeça. (...) - Foi o senhor mesmo que disse há pouco que toda palavra é uma semente: traz vida, energia, traz também uma carga explosiva lá dentro. Corremos graves riscos quando falamos. (...) - Seja claro, como deve ser um homem! - Se estou confuso... - Acaba de uma vez com a confusão nessa tua cabeça! - Se evito ser mais claro... - Cale-se! Não vem dessa fonte a nossa água. Não vem dessas trevas a nossa luz. Não é a tua palavra arrogante que vai demolir agora o que levou milênios, milênios para se construir. Ninguém em nossa casa há de falar mudando o lugar das palavras, embaralhando as ideias, desintegrando as coisas numa poeira. Pois aqueles que abrem demais os olhos acabam só com a própria cegueira. Ninguém em nossa casa há de padecer também de um suposto e pretensioso excesso de luz, capaz, como a escuridão, de nos cegar. Ninguém em nossa casa há de dar um curso novo ao que não pode desviar. Ninguém, ainda, há de confundir nunca o que não pode ser confundido: a árvore que cresce e frutifica com a árvore que não dá frutos, a semente que tomba e multiplica com o grão que não germina. A nossa simplicidade todos os dias com o pensamento que não produz. Por isso, dobre a tua língua! Nenhuma sabedoria devassa há de contaminar os modos da família. Não foi o amor, como eu pensava, foi o orgulho, o desprezo e o egoísmo que te trouxeram de volta à casa. - Estou cansado, pai. Me perdoe. (...)
Posted on: Mon, 21 Oct 2013 19:17:49 +0000

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