.:. O desapontamento do amor Antero chegou. Antes não tivesse - TopicsExpress



          

.:. O desapontamento do amor Antero chegou. Antes não tivesse vindo. Talvez assim eu continuasse mergulhada no desejo de sua presença. Tê-lo ao alcance das mãos desencadeou meu desencanto. Ver os detalhes das bainhas de suas calças, o ligeiro encardido do colarinho, tudo parecia remeter-me à conclusão de que a ausência é bem melhor que o peso do corpo, a dura matéria que produz sorrisos e secreções indesejadas. Antes tivesse me contentado com tudo o que dele imaginei. Certas pousadas sobre o colo, palavras rasgando ao meio minha alma, tornando-me hospedeira de ansiedades felizes, provocando frio na espinha cada vez que um pensamento pulava a cerca da moral, do comportamento permitido, e aos abraços de Antero me atasse. O amor é mistério. Antes de abrir a porta eu portava em minha alma um candelabro[1] imenso de motivos futuros. Ansiava atar minhas esperanças a suas calças, erigir[2] em seu coração a morada onde eu envelheceria. Mas o inesperado aconteceu. A presença de Antero produziu sopro volumoso na direção de minhas velas. Ele voltou cheio de projetos. Depois de dois anos vivendo no interior de um pequeno país africano, chegou desejoso de casamento, laços eternos que lhe concedessem a tão desejada estabilidade afetiva. Eu já sabia de suas intenções. Foram dois anos de correspondência trocada com regularidade espartana[3]. Alucinava-me ver chegar aqueles envelopes de cores fortes, vibrantes. Arrepiava-me saber que as palavras lavraram terras distantes para que pudessem ser colocadas sobre o meu colo, desembrulhadas como se fossem flores chegadas em cesto de vime[4], milagres que se constrói a partir de distâncias humanas, estradas e mares posicionados como molduras de um amor que faz chegar a presença, mesmo quando só a ausência é o que temos. Antero estava em cada frase. No papel, o peso de sua alma. Falas embebidas de amor e promessas de fidelidade. Tudo me tocava. A caligrafia, a disposição das palavras, as dobras que conformavam a folha ao envelope, mas, sobretudo, a conjugação no tempo futuro. Eu voltarei, eu estarei, eu viverei. As correspondências eram repletas de promessas. Nelas eu me projetava inteira. O futuro prometido por ele me semeava de esperas felizes. Levava-me a esquecer as imposições e desgastes do presente, como se pela força do não vivido eu pudesse desprender-me das escravidões inevitáveis de minha indigência[5]. Durante o tempo das cartas eu o quis, eu o desejei, eu o amei. Desembrulhei em cada envelope recebido um detalhe de homem que se encaixava perfeitamente ao contexto de minhas expectativas. E por isso amei o amor distante, o beijo ausente, o abraço imaginado. Alimentei minha alma com as epifanias[6] que os envelopes sugeriam. Adentrei o labirinto das palavras e fui buscar consolo para minhas ausências originais. Acendi o fogão da paixão, revesti Antero de perfeição. Por isso augurei[7] ardentemente o seu retorno. Queria tomar posse daquela terra prometida, findar meu êxodo, meu exílio. Ansiava por ver chegar o homem que abriria o Mar Vermelho de minha vida, o condutor que me faria atravessar a pé enxuto o oceano que me separava de minhas pretensas[8] alegrias. Chovia muito na manhã de sua chegada. Eu estava apreensiva. Quando ouvi sua voz gritando meu nome no portão, senti que minha alma realizava o primeiro movimento de retirada. A voz sem músculos não correspondia à voz de homem que nas cartas eu escutava. Abri a porta com o intuito de desvanecer[9] o sentimento aterrador, mas imediatamente senti desabar as estruturas do sonho edificado. O Antero real não era o mesmo Antero das cartas. O cabelo molhado de chuva, as botas marrons com costuras claras, a camisa de algodão cru, tudo aquilo se opunha radicalmente ao homem que regularmente visitava minha alma com palavras. Naquele homem plantado na minha sala nada era longe. Nenhuma distância se desdobrava de seu corpo, nenhum mistério ardia em seus olhos. Minha contradição. Eu, que tanto reclamava em cartas a urgência de seu retorno, de repente, estava ali, desejosa de que ele reencontrasse a estrada que o trouxera. Eu, que augurei o entrelaço de seus braços, o calor de seu hálito a segredar-me confissões amorosas, o toque libidinoso[10] de sua conduta de homem, via-me ali, aterrada no desconforto de minhas desilusões, vendo ser mitigadas[11] as esperanças que durante tanto tempo alimentaram minha alma e a fizeram sobrevivente. Meu inevitável silêncio. Nenhuma palavra a nascer de mim. Antero à minha espera, como sempre esteve. Agora em carne, osso, respiração ofegante. Em seu rosto pude ver o desejo de um abraço receptivo, mas eu nada pude oferecer-lhe. A vida nos colocou ali, naquele estreito retalho de mundo em que os olhos não dispõem de estradas por onde possam prosseguir em êxodo[12]. Antero me olhava. Queria arrancar-me a voz, qualquer coisa que desse continuidade à última linha escrita, à fala amorosa que, emoldurada por um envelope, cruzara o Atlântico, assegurando-lhe que eu estaria pronta para o retorno que nos ataria para o resto de nossas vidas. Mas eu não tinha o que dizer. As confidências das missivas ficaram mudas. A cumplicidade das palavras estava dissipada e novo sentimento havia se estabelecido. Meu desejo era mandá-lo regressar ao lugar de onde viera, dobrá-lo como folha de papel e remetê-lo da mesma forma como remetia as cartas. Queria livrar-me daquela imposição material, virar-lhe as costas, reassumir o sossego do amor ausente, a carícia não cumprida, voltar a habitar o imaginado caminho que nunca nos permite chegar. O alimento do amor é a espera. A realização do desejo esgota a chama que o alimenta. O ausente desejado é infinitamente superior ao real recém-chegado. Mas é sempre assim? Haverá amor que poderá me desobrigar desse desfecho desolador? Haverá alguém que seja melhor que cartas, promessas e espera? O meu desprezo fez do coração de Antero a casa da aflição. Seu olhar preso ao meu pôde compreender o que a boca não foi capaz de explicar. Há motivos que não cabem nas palavras. Naquela mesma manhã, ciente de meu desencanto, partiu rumo a um lugar do qual nunca tomei conhecimento. É certo que levou consigo um cesto de amarguras. Antero não é portador da mesma enfermidade que eu. A ele a realidade basta, confere felicidade, produz aconchego. É certo que a mulher que ele recebia pelas cartas era a mesma que naquela manhã o esperava. Não houve discrepância[13]. O que sua alma esperava, o seu corpo encontrou. Mas eu também não estou livre de carregar fardos. Minha alma continua a clamar pelo retorno do homem que habitava aquela correspondência e que de vez em quando chegava no resguardo de envelopes viajados. O Antero de botas e camisas, o homem que não trazia na carne o longe que tanto me seduzia, este eu não desejo. Eu ainda desejo e espero é pelo Antero das cartas, aquele homem imaginado, distante, albergue[14] onde se alojavam todos os mistérios do mundo, o homem miraculoso[15] que visitava minha alma e nela espargia[16] cestos fartos de esperança. É estranha, mas é minha condição. Eu não sou capaz de encontrar na realidade a consumação[17] de meus desejos. Antero me ensinou isso. No ventre de minhas ausências, eu gestei[18] um homem, intruso que se alimenta de minhas expectativas. A ele concedo sopro, embalo no colo, deito em minha cama, amo com devotada[19] fidelidade. Ele vive no profundo de minha condição humana. Habita o lugar onde o desejo não sofre com as deficiências da realidade. É por ele que anseio todos os dias. Mas como poderá chegar aquele que espero, se ele está dentro de mim? Como compreender que essa esperança já consumada não me poupa de sentir-me só? É inadequado o que desejo, eu sei. Esse homem inacabado que cruzou a porta de minha casa carece de voltar ao ventre para nascer de novo. Mas só eu sei o que lhe falta. Nenhuma outra mulher seria capaz de completar o que nele reconheço ausente. O homem que amo não nasceu. Ele dorme na solidão do meu ventre, desfruta do sossego e do conforto simbiótico de não ter autonomia, de ser totalmente outro, mas em mim. Minha loucura. Esperar pele vida é bem melhor que viver. Antero me ensinou o que eu não sabia. Ele me proporcionou o reconhecimento dessa vergonha. Olho para o meu rosto no espelho e descubro. Esse homem que tanto amo, espero e desejo sou eu mesma. .:. MELO, Fábio de. Orfandades: o destino das ausências. São Paulo: Planeta, 2012. P 145-150. [1] Castiçal para mais de uma vela. Grande candeeiro com vários braços, que se pendura no .teto. Tocheiro aparatoso. Serpentina. [2] Erguer, levantar. [3] Rigorosa, severa. [4] Vara ou haste de vimeiro – gênero de plantas salicáceas também chamado vime. [5] Pobreza extrema. Penúria. Privação. [6] Manifestações divinas. [7] Pressagiei. Predisse. [8] Pretendidas, supostas. [9] Dissipar, apagar. Esmorecer. [10] Sensual, lascivo, caprichoso, dissoluto. [11] Reduzidas, minimizadas. Atenuadas, suavizadas. [12] Emigração. Farsa. [13] Diversidade de opiniões. Divergência. [14] Abrigo, refúgio. [15] Milagroso. [16] Derramava, espalhava, difundia. [17] Ato de consumar, por a termo, levar a cabo. Realizar. [18] Dei origem, criei. [19] Dedicada, consagrada. .:.
Posted on: Wed, 06 Nov 2013 20:58:59 +0000

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