8 de outubro de 1962. Antes do algarismo do dia, há uma - TopicsExpress



          

8 de outubro de 1962. Antes do algarismo do dia, há uma estrela. Quando se escrevem datas de nascimento e morte, a chegada ao mundo é ilustrada por uma estrela. A partida, por uma cruz. Isso torna mais interessante o carimbo que a fábrica de molduras P. Alles S.A. utilizava para registrar a produção de suas peças. Havia uma delicadeza na atitude do seu Alles - pelo menos prefiro pensar que assim se processavam as rotinas no número 561 da Avenida Júlio de Castilhos, 561, em Novo Hamburgo. Podia ser apenas a data, mas não. Ele preferiu acomodar uma estrela ao lado. Esta velha moldura me foi ofertada por um velho fotógrafo que trabalhava em um município às margens da BR-386. Era metade dos anos 1990. Não me lembro exatamente qual cidade, nem o nome do senhor de fala comedida e gestos cautelosos. Teria que manusear papeis amarelados para descobrir. Durante um mês, eu rodei a Tabaí-Canoas, conhecida na época por Estrada da Morte, para contar histórias trágicas, percalços e prejuízos decorrentes da falta de duplicação. O fotógrafo que certamente não vive mais poderia render uma história interessante porque ele era chamado pelos policiais rodoviários para registrar a cena dos acidentes. Custei um pouco a encontrá-lo, mas sem grandes dificuldades. Poucas perguntas e alguns passos são suficientes para se descobrir o paradeiro dos personagens de uma pequena cidade do Interior. Ele levou a mim e ao fotógrafo da Zero Hora à sala onde guardava seu equipamento e um arquivo abarrotado de negativos e imagens. Abriu caixas, vasculhou gavetas e de tanto e tanto episódios trágicos emergiam do passado. Entre debutantes de sorriso congelado, noivos garbosos e bailes felizes como nunca mais, apareciam carros destruídos, ferragens deformadas, vidas subtraídas no leito de uma rodovia. Ele não lembrava muitos detalhes, então tive que domar minha curiosidade de repórter que oscilava entre o respeito à fonte e a necessidade de garimpar informações. Mesmo que fosse reservado, percebi que o retratista veterano ficou orgulhoso, talvez vaidoso, do meu interesse por ele. E eu, que sempre gostei de vasculhar memórias, fotografias e velharias, realmente estava interessado em ouvir e ver o que pudesse obter daquelas quase oito décadas de vida. No meio do diálogo de poucas frases, ele segurou algumas molduras vazias e, num ímpeto, elogiei a peça. Foi um registro espontâneo, assim como o gesto dele, que estendeu o material para mim. - Toma, pode levar - sussurou. - Não há necessidade - respondi, envergonhado. - Leva, meu filho, é um presente. Velho cafajeste. Me chamou de filho. Como resistir? Peguei, agradeci e a conversa se estendeu pouca coisa mais, até que eu e o fotógrafo do jornal partimos para Porto Alegre. Quase 20 anos depois, a moldura fabricada em 1962 pelo seu Alles em Novo Hamburgo e que me foi presenteada na metade dos anos 1990 pelo fotógrafo aposentado de uma cidade às margens da BR-386 ganhou uso. Desde ontem, ela está na parede do hall da minha casa, emoldurando a tela em que a grande Marilice Corona registra o flagrante em que eu e a Lenara Verle contemplávamos os quadros que ela expôs recentemente no Stúdio Clio. É uma pintura diminuta, 10 cm x 15 cm, tão pequena e linda que dá vontade de levar no bolso interno do casaco, para ter próximo ao peito - mas esta não é a vocação de uma obra de arte. Não sabia ao certo o que fazer. Moldura fina, grossa? Passe-partout? Aí me lembrei do encontro com o velho fotógrafo. E tem o meu encontro com a Lenara. E o encontro da Marilice conosco. E como na vida tudo é, ou deveria ser, encontro, tratei de juntar todas essas pontas. A moldura, tal qual recebi, agora está pendurada na parede. E a tela foi milimetricamente posicionada no meio do vão. Duas peças independentes que agoram viverão juntas. Afinal, é de encontros que precisamos.
Posted on: Sun, 21 Jul 2013 17:31:00 +0000

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