A Flor do Meu Jardim - Capítulo 30/36 Capítulo 30 Os - TopicsExpress



          

A Flor do Meu Jardim - Capítulo 30/36 Capítulo 30 Os pombeiros, agentes portugueses iam chegando ao Lago Malebo, a fim de comprar escravos dos imbangalas. Há meses não tinham notícia de Matamba, por isso os despacharam para o Congo em busca do fornecedor. Aproximava-se o dia dos navios negreiros aparecerem no porto de Luanda e Matamba simplesmente sumira. Os pombeiros armaram o acampamento e aguardaram o chefe imbangala com paciência. Depois de duas semanas de espera, Matamba retornou a Malebo trazendo o carregamento. Os pombeiros já estavam acostumados com a aparência horrível dos cativos, por esse motivo não se impressionaram. O altivo Matamba cavalgava a frente da enorme fileira. Os pombeiros observavam cada capturado com vivo interesse. Outros chefes imbangalas também regressavam da sua jornada escoltando mais escravos. Ao longo do caminho, muitos cativos não suportaram a dura jornada e sucumbiram. Ficaram estatelados na trilha servindo de pasto para as feras. Não agüentaram o calor, os maus-tratos. Ironicamente Aboubakar sobreviveu. Durante a travessia do Saara, sua própria gente aproveitou a ocasião para vingar-se dele. Todos tiravam uma casquinha e Aboubakar apanhava: - Por que me batem se fui tão bom para vocês, bando de ingratos. - Bom! Seu mesquinho. E tome esta, mais esta, mais esta... Foram tantas surras que os guerreiros imbangalas interferiram: - Quem encostar a mão nele se verá comigo. Não podemos perder mercadoria. Embora não dominassem o dialeto imbangala, entenderam perfeitamente o recado dos guerreiros. A cada repreensão seguia uma porretada no agressor de Aboubakar. Somente assim ele conseguiu um pouco de paz. Contudo, ficou isolado, à mercê dos olhos furiosos daqueles que tempos atrás tanto o bajularam. Agora, reduzido à condição de escravo, sem dinheiro, sem honra, sem amigos e infeliz, percebia o quanto se equivocara. Transformara-se num ninguém. Permaneceram na margem do lago Malebo até os pombeiros concluírem a operação de compra. A seguir partiram do Congo em direção a Angola. Aproveitando uma única chance achegou-se sorrateiramente de um pombeiro e no mais claro português falou: - Sou o Sultão Aboubakar, o mercador tuaregue. Sempre negociei com vocês. Preserve-me que depois eu o pagarei bem... - Cala a boca. Você não passa de um escravo. Sultão ou não, você está preso e assim irá para Luanda, depois Brasil. - Tire-me daqui e me leve ao governador, ele me reconhecerá. - Qual governador? - O Governador, uai! - O antigo voltou a Portugal e o novo ainda não chegou. Por enquanto não há governador em Angola. Agora saia do meu caminho senão quiser apanhar. - Onde estamos? - No Congo. Logo partiremos para Angola. - Eu não acredito... Eu não acredito... Estou realmente acabado... Não é possível hei de achar uma saída. Capítulo, 31 Mesmo tomado pelo desespero e choramingando dentro da água, o Governador não tirava os diamantes da cabeça: “Onde os deixei? Não foi no bolso da calça... Ah! Agora me lembro... Na Cabine do navio. No fundo falso... Foi tudo pro fundo do mar. Sou um infeliz... Um asno... Espera aí... Estou aqui entre a vida e a morte, sem saída e ainda penso nos malditos diamantes? Primeiro tenho de resolver esta situação insolúvel... Estou num beco sem saída...”. De repente ouviu um rosnado. Olhou instintivamente para o felino. Notou que se debatia na areia da praia. A princípio não entendeu ao certo a razão dele espernear tanto. Fixou a vista com atenção. Ele rolava para um lado e outro sem parar. Decerto algo o atingira. Uma nesga de esperança veio à cabeça do Governador. O excitado animal rugia cada vez mais alto. Cravou o olhar e percebeu que a implacável agonia da morte rondava a fera ferida. A seguir uma sucessão de flechas certeiras o abateu em definitivo. O perigoso bicho ficou estendido no chão. Imóvel. Um bando de homens nus, de aparência exótica, pintados, com enfeites na cabeça, pescoço, braço e perna saíram da floresta. Eram indivíduos de porte surpreendente. O Governador assustou-se. Ao observar a presença de um padre acompanhado de outro branco, logo se acalmou. Após passar pela tenebrosa experiência, ergueu a cabeça aos Céus e disse aliviado: “Graças a Deus, estou salvo. Sabia que o meu Deus não me abandonaria”. O frio o fez retirar-se do mar aos pulinhos. Ainda assustado, temia que o animal recobrasse os sentidos a qualquer momento. Por isso o mirava fixamente, em alerta e disposto a retornar à água caso fosse necessário. Aproximou-se dos recém-chegados e se admirou ao encontrar o Visconde, sereno e calmo, bem ali à sua frente: - Não é possível. É muita coincidência encontrá-lo aqui, Visconde. - Governador! De onde você saiu? - Zarpamos de Angola rumo a Lisboa e o barco naufragou. Onde estamos? - No Brasil. - Onde? - Brasil, Governador. - Nossa... Saímos muito da rota. Deve ter sido a tempestade. - Onde estão os outros passageiros. - Não sei, Visconde. Vocês não os viram por aí? - É melhor os procurarmos. - Com certeza, padre. - Vamos para um ponto mais alto. Talvez de lá possamos avistá-los ou quem sabe ver os destroços da embarcação. Fazer uma busca pela praia pode ser perda de tempo. O litoral perde-se de vista. - O padre tem razão... Vamos lá, Governador. - Será que não tem mais onça por aqui? - Pode ser que haja. É melhor prestar atenção nas cobras. Tem muita cobra venenosa espalhada pelo matagal. Viu, Governador? Fique de olho aberto. - Estarei atento. E os malditos insetos? Eles não deixam ninguém em paz. - Espera um pouco. Espalhe este preparado de jenipapo com urucu pelo corpo. É um repelente natural que o protegerá dos mosquitos e da queimadura do sol. Eles fugirão. Agora vamos em frente. - Em frente, padre. Subiram uma colina e de lá vasculharam o litoral a olho nu. Ao longe um nevoeiro escondia a verdadeira extensão da praia. Até onde a vista alcançava, eles investigaram a região na esperança de descobrir algum sobrevivente do naufrágio. Um dos guaranis apontou um bando de urubus sobrevoando a três quilômetros dali. De fato as aves pretas infestavam o céu: - Ele está dizendo que há carniça por lá. Caso não seja de um animal do mato, poderá ser dos náufragos. - Então vamos para lá, padre. - Calma, governador. Devagar para evitar acidentes. Desceram o morro, caminharam na direção do local indicado, venceram o percurso com rapidez e presenciaram uma cena chocante. Os corpos abandonados se espalhavam pelo chão. Os restos mortais em adiantado estado de putrefação exalava um mau cheiro intolerável ao olfato humano. Indiferentes a catinga, os vorazes urubus os disputavam avidamente, como se participassem de uma festiva, de uma farta refeição. Mais adiante, o Governador avistou a proa do navio partido ao meio com a cabine intacta. Era justamente a parte que lhe interessava: “Achei os diamantes.” Supôs. Dissimulou o entusiasmo e aguardou os demais membros do grupo se manifestar. Então o padre ponderou: - Vamos nos espalhar. Alguns revistem a floresta, outros caminhem até mais adiante... - Irei até o navio. Quero ver se sobrou algo da minha bagagem. Acho que perdi tudo... Só desejo verificar. - O governador vasculhará os restos do navio encalhado. É justo. O Governador quase se descontrolou, mas dominou a euforia. Respirou fundo... Escalou a proa, andou até a cabine, cuja porta havia sido arrancada e entrou. Apesar da bagunça, do amontoado de madeira retorcida, das roupas misturadas ao lamaçal, o recipiente falso achava-se intacto. Abriu-o, apanhou o cofrinho de fechadura frágil, arrebentou-a e localizou os diamantes, intocados. Pegou todos, os enfiou nos bolsos, depois se afastou dali com a mesma agilidade que chegara: “Se o Senhor é comigo, quem será contra mim?” Desabafou. Capítulo 32 O suave e ameno sol de outono das primeiras águas do mar do mês de março transformara a água fria do oceano em água morna. O cenário tropical do Arraial de Anchieta convidava a pescaria. Logo depois da arrebentação, onde as ondas quebram de encontro à praia, quase a beira-mar, bem pra lá do rasinho, os índios localizaram um cardume de pititinga nadando displicentemente. Ao fazerem um ligeiro reboliço: “Pititinga, pititinga, pititinga...” chamaram a atenção do Visconde: - O que é pititinga, Padre? - Manjuba. - Eles irão à pescaria? - Não está vendo? Dividiram o pessoal: uma turma prepara a rede, a outra caça caranguejo no mangue e a terceira cata sururu nas pedras. O momento é propício. Eles não perderão esta oportunidade por nada. Nem sempre aparece cardume. - Questão de sobrevivência... - Comemos a onça, agora iremos variar. Gostou da carne de onça, Visconde? - Estou aprendendo a gostar de muita coisa Aliás, nem imaginava que existiam tais comidas. O Governador, os guaranis e eu temos de encontrar Chico Bicudo no acampamento. Você irá, Padre? O Padre Moraes estava particularmente preocupado com a presença do bandeirante na região. Temia pela segurança dos índios sob sua proteção. Caso o capitão decidisse capturá-los para vendê-los como escravos, não haveria meios de impedi-lo. Neste caso, a força das armas falaria alto, e o Padre conhecia os bandeirantes a fundo. Eram homens rudes que, a exemplo dos colonos odiavam os índios, os usavam para explorá-los até a morte. - Não é possível padre. Ele não pode fazer isso. - Não pode? Quem o impedirá? - São índios mansos que não oferecem o menor perigo aos portugueses. Só podem atacar índios em caso de guerra justa. É a lei. A bula do Papa Paulo III de 1537 também proclamou os índios verdadeiros homens e livres... - Visconde... Visconde... No Brasil a lei foi feita para não ser cumprida. Além do mais as autoridades além de omissas e coniventes são as primeiras a não respeitá-la. O melhor é prevenir. Chico Bicudo sendo paulista, não conhece este arraial. O melhor será você sair daqui e retornar ao acampamento. Por favor, não me leve a mal... - De jeito nenhum. Será que os guaranis guardarão segredo, Padre? - Não sei, Visconde. Além dos Aimorés e Goitacás ainda há tribo tupiniquim na região e eles são inimigos entre si. Aqui no arraial não há nenhum índio hostil aos guaranis. - Chamarei o Governador e partiremos. Por favor, reúna os guaranis e lhes dê a rota. O melhor será retornar ao acampamento. O Padre irá conosco? - Não. Caso eu vá, Chico Bicudo saberá que existe um aldeamento por aqui. É melhor não arriscar. - Obrigado por tudo, Padre. Verei se consigo resolver este problema. Depois seguirei adiante. Tenho trabalho a fazer. Até a vista, Padre. - Deus o acompanhe, meu filho. - Chegando ao acampamento constataram que Chico Bicudo ainda andava pelo sertão. O Visconde aproveitou a oportunidade e decidiu explorar a região em busca de metais preciosos. Já o Governador achava-se ansioso para partir. Desejava alcançar o Rio de Janeiro o mais rápido possível: - Temos de aguardar a volta do Chico Bicudo, Governador. - Você pode me arranjar alguns guaranis. Eles me levarão. Preciso entrar em contacto com a Coroa. Afinal fui convocado para retornar a Portugal... - Eles já devem saber do naufrágio, Governador. - De qualquer maneira necessito informá-los, Visconde. - Ainda não falo o tupi-guarani... Você também não fala. Como resolver a questão? - E o Padre? - O Padre tem suas próprias obrigações. Não tem jeito temos de aguardar o retorno do bandeirante. O Governador afastou-se e sentou num canto onde permaneceu amuado. Ansiava vender parte das pedras e definir o seu futuro, dar novo sentido à sua vida. Os comprovantes da existência dos diamantes perderam-se no naufrágio. A Coroa não poderia reunir provas contra ele. Efetivamente a fortuna lhe sorriu. Possuía bilhões. Restava-lhe agora arranjar um jeito de escapulir da mata. Entre muitas dúvidas restava-lhe uma única certeza, nunca mais enfrentaria o mar. Ficaria no Brasil. Capítulo 33 A variedade animal e vegetal fazia a floresta ser um tanto misteriosa. A cada passo o Visconde esbarrava com a incomparável biodiversidade da mata. Analisava o solo, as espécies de plantas, de bichinhos. O canto de uma ave lhe soava como se fosse uma majestosa canção. A melodia, a harmonia... Os diferentes sons se misturavam. O chilrear dos passarinhos, o silvar do vento balançando as folhas e o zumbido dos insetos formava uma extraordinária sonata para os ouvidos do Visconde que, embevecido com o ambiente natural, trabalhava animado. Ao observar a multiplicidade da vida do bosque, o Visconde se deparava com um universo repleto de espécies desconhecidas. De novidade em novidade, ele tropeçava num novo enigma. Jamais vira algo do mesmo gênero, magnitude e riqueza. Partindo destas constatações iniciais concluiu que, a exploração do território brasileiro deveria adotar um critério diferente. Enquanto pesquisava, os guaranis caçavam nas imediações. Eles só abatiam o necessário para se alimentar. Trouxeram, dois macacos, uma paca, três cobras, dois inhambus, um tatu. Parou um pouco, olhou os guaranis atentamente e se convenceu: “Somente eles conhecem o lugar. Ninguém melhor para nos ensinar. Ao invés de exterminá-los, devemos torná-los nossos professores. Estudar antes para explorar depois”. Praticamente esquecera do sabor da comida européia. A cada dia seu paladar ia se acostumando com a carne selvagem. Não lhe restava outra opção, senão se adaptar a realidade da colônia. Assim, comeu até se fartar. Após, ajeitou-se sob a sombra de uma árvore frondosa. Dominado pelo cansaço dormiu sossegado. De súbito um guarani com o dedo na boca pedindo silêncio, o acordou: - Tapuia. O Visconde entendeu a mensagem. Algum inimigo se aproximava. A situação de perigo real o deixou assustado. Com o coração batendo descompassado, rastejou silenciosamente e se escondeu no matagal. Cinco ou seis batedores aimorés passaram correndo em direção ao norte. Ele e os Guaranis deram um tempo. Em seguida saíram pelo lado oposto caminhando cautelosamente. Depois de hora e meia de marcha encontraram a bandeira de Chico Bicudo retornando ao acampamento, que ficava a questão de quatro dias de viagem. O corpo da tropa estava esgotado, por isso João Preto, o alferes-mor, escolheu um descampado onde arriou a bagagem. Chico Bicudo aproximou-se do Visconde e disse: - Quando chegamos à aldeia os aimorés já haviam partido. Pelos cálculos deveriam ter cerca de oitocentos nativos. Certamente nos descobriram antes de os encontrarmos. - Ah! É? - Ainda não me defrontei com nenhum deles. Não faltará oportunidade. - Meu problema é a pesquisa. O que você fará? - Retornarei ao Rio de Janeiro, Visconde. Já tem quase ano que estamos rodando esta mata e o sertão próximo. - Eu ficarei. Espero que você deixe os guaranis comigo. Os que estão me acompanhando. Tenho um trabalho a fazer, Chico. - Sou responsável pelo Visconde. Não posso deixá-lo... - Não sou criança Chico Bicudo. Sei o que estou fazendo. Você pode ir. Ficarei bem, principalmente, acompanhado dos guaranis. Estamos nos dando bem. - Faça como achar melhor. Então os guaranis ficarão. - Topamos com um náufrago na praia. É o ex-governador de Angola que precisa retornar ao Rio de Janeiro. No acampamento principal você o conhecerá. Pode levá-lo consigo? - Claro. Finalmente chegaram ao local do encontro. O Governador vendo a bandeira pousar o material e armar as barracas sentiu-se aliviado. Trocaria a mata pelo Rio de Janeiro, venderia os diamantes, a seguir... As coisas não saíram como planejara. Sua vontade era regressar a Lisboa e viajar pela Europa, todavia não se arriscaria a lançar-se ao mar donde escapara milagrosamente. Caso se aventurasse poderia sofrer outro naufrágio e não ter a sorte de sobreviver. Com o dinheiro da venda das pedras viraria senhor de engenho. Capital não lhe faltaria. Capítulo, 34 Quando Chico Bicudo ordenou o retorno da bandeira ao Rio de Janeiro, e o Visconde os viu retirar-se, embora quisesse, não pode deixar de sentir certa tristeza. Sentiu uma ligeira sensação de perda da segurança e da companhia de quem falasse português. Teve de reconhecer que a partida de uma bandeira sempre emocionava. A organização dos brancos, dos índios flecheiros, do pouco material a fim de evitar peso, sobretudo da caminhada cautelosa para não fazer barulho. Todo este aparato o comoveu. Não simpatizava com Chico Bicudo, nem com a instituição chamada Bandeira. Considerava-os um bando de ignorantes, uma escória que impunha um sofrimento desumano aos índios. A seguir abandonou a postura sentimental e tratou de cuidar da própria vida. Tinha um longo caminho pela frente e bastante trabalho a realizar. Tomando rumo do nordeste, seguiu em direção a Bahia. Enquanto andava, observava atentamente a generosidade do chão brasileiro. Farto, rico, abundante. Ele dava tudo de graça, em compensação, recebia a ingratidão dos homens. O Visconde notava o desprezo dos desbravadores com o solo fértil, o qual suportava em silêncio o abuso, a agressão cruel de pessoas de formação rudimentar. Exigiam o máximo do terreno e quase nada ofereciam em retribuição. Percebeu o deslocamento constante das queimadas. Utilizavam a terra, quando ela se cansava abriam nova clareira. Aos troncos e galhos amontoados, não incinerados, atiçavam fogo outra vez, para desembaraçar a área e adubá-la com as cinzas. A disseminação da cultura do machado e do tição ao longo da floresta se baseava na sensação de que os recursos naturais jamais se esgotariam. Esta agricultura devastadora provocava o desmatamento em larga escala. O Visconde não se conformava com a exploração violenta da colônia, não concordava com a criação deste empreendimento bestial. A ruína dos bosques marcava o nascimento do Brasil. A região, ainda sem fronteira, facilitava os colonos obterem imensas propriedades facilmente. O elogio leviano, vazio de conteúdo de que se pagava o preço do progresso, também os incentivavam a adotar uma atitude de absoluto desprezo pela mata. Homens incultos aplicavam uma agricultura rudimentar e encaravam a paisagem tropical como um estorvo ao avanço da civilização. A constatação do Visconde sobre a posse e desenvolvimento do território brasileiro, o fez concluir que necessitava alertar a Coroa portuguesa acerca do espantoso desperdício de madeira de lei. Antes dos agricultores darem seguimento a essa doidice precisavam conhecer melhor o potencial de plantas medicinais, do manancial de águas, de frutas tropicais, da selva. Lisboa deveria elevar o Brasil à condição de Principado, arejar a administração pública, fundar escolas de agricultura, aprender com os índios e não dizimá-los. Enfim... Não descobrira nem ouro, nem pedras preciosas, mas com certeza se deparara com um lugar riquíssimo. Ao invés de incentivarem o crescimento eficiente, adotarem outro sistema produtivo, eles se limitavam a aniquilar um magnífico jardim. Após percorrer o sertão próximo e o litoral durante três anos, resolveu regressar ao Rio de Janeiro. Enviaria um documento circunstanciado ao Rei. Não compactuaria com tal sacrilégio. Tentaria mudar o modelo econômico de exploração. Tudo isso, não passava de uma insanidade, de um inaceitável esbanjamento, de uma melancólica danação. O Brasil não se recuperaria de tamanho estrago. Fora descoberto há pouco mais de cem anos, atualmente até a ibirapitanga, o pau-brasil, já escasseava. A própria mata virgem, antes contígua à fazenda, agora o colono só a encontrava distante da sua propriedade. À medida que atravessava os campos desmatados, o Visconde murmurava: “Ah, meu esplêndido! Ah, meu lindo! Ah, meu surpreendente Brasil! O que estes insensatos estão fazendo com você?” Capítulo, 35 A sensação de medo sem causa certa perseguia o Governador há algum tempo. Desde o naufrágio, ele se sentia meio esquisito, ora não se cabia de satisfação, ora a ansiedade o consumia. Quando finalmente partiu para o Rio de Janeiro a euforia o dominou. Embora não estivesse na Europa, vislumbrava um futuro de riqueza. Residiria numa vila atrasada, porém lhe ofereceria um conforto bem melhor do que a floresta onde a vida rústica o maltratava. Apesar de emocionalmente instável, já planejara tudo. Ao invés de Governador como lhe chamavam se apresentaria com o seu verdadeiro nome: João Barbalho Ramos Prudente, ou simplesmente Prudente. Assim evitaria uma série de perguntas desconfortáveis que poderiam gerar desconfianças. Não procuraria o representante da Coroa e sim um comprador de pedras preciosas. Acertaria sua vida financeira, montaria um engenho de açúcar. Terra não faltava, aliás, sobrava dada a extensão territorial do Brasil. Ao chegar ao Rio de Janeiro analisou o arraial. A imundice das ruelas empoeiradas lhe chamou a atenção. Deu-lhe vontade de retornar a Europa. O receio de enfrentar novo naufrágio o fez desistir da idéia. Com esforço manteve a tranqüilidade, achegou-se de Chico Bicudo e disse: - Ficarei mais um tempo com você, Chico. Por enquanto estou sem dinheiro e não tenho para onde ir. - Não tem problema. A bem da verdade, estamos juntos a algum tempo e ainda não sei seu nome. - Prudente. - Ficaremos alguns dias aqui. Vou receber do Governador do Rio de Janeiro. Embora esta bandeira tenha dado prejuízo, nosso contrato reza que o objetivo dela era dar condições de trabalho ao... Como é mesmo o nome dele? - Visconde. - Justamente. Visconde. Fique por perto, dormiremos naquela encosta. Depois de resolvida a situação, seguirei para São Paulo. - Caso, algum dia necessite dos seus serviços como devo proceder? - Estarei em São Paulo. - São Paulo? E se precisar que fique? - É questão de entendimento. Prudente, onde você arranjará as patacas para me pagar? - Arrumarei. Você ficará? - Claro... - E os índios flecheiros, Chico? - Veja sua necessidade, depois conversaremos. - Está bem. O ex-governador Prudente separou alguns diamantes, depois seguiu até o porto a fim de tentar negociá-los. Sabia da dificuldade, pois a proibição do comércio do Brasil com navios estrangeiros, aliada as medidas duras adotadas pelo reino português contra o contrabando, atrapalhava o mercado clandestino. Todas as embarcações que saíam daqui, só podiam entrar em portos portugueses. A Companhia Geral do Comércio protegida pelo exclusivo metropolitano cuidava das exportações e importações de produtos. Esta lei injusta tratava do monopólio que beneficiava unicamente a elite e a Coroa portuguesa. Os negociantes brasileiros não tinham como prosperar, por isso, enveredavam pelo perigoso caminho da sonegação tributária. Além de frear o desenvolvimento da colônia, a desonestidade da legislação transformava homens honrados em criminosos fiscais. O ex-governador Prudente conhecia o apetite do governo para arrecadar imposto e as manhas da corrupção. Caso não conseguisse vendê-las para os contrabandistas, lhe restaria a opção de permutá-las com funcionários corruptos da própria Companhia Geral do Comércio do Brasil. Ele não ignorava que andava em terreno arriscado. Um erro significaria sua ruína. Mesmo tateando no escuro, mas encorajado pela certeza de desobedecer a ordem de um governo indigno, foi ao porto onde começou a estabelecer contatos. Evidentemente com cuidado e sem mencionar os diamantes. O fato de estar sem dinheiro ou se vestir de trapos, o protegeu das suspeitas e das garras da ralé que freqüentava o submundo do crime situado no cais. Não chamaria atenção, talvez, até, reconhecesse traficantes da época de Angola. Não seria impossível topar com tais sujeitos, porquanto são pessoas errantes, que vagam pelos mares, ancorando de porto em porto por não ter onde morar. Cromwell instituíra os atos de navegação, cujos decretos resguardavam os interesses dos comerciantes ingleses. A legislação também amparava a incipiente indústria naval da Inglaterra e extinguia a participação holandesa no comércio de navegação britânico, antes dependente da soberania holandesa nos mares. A despeito disso, sabe Deus por qual razão, um navio holandês de bandeira inglesa achava-se perto de zarpar do Rio em direção a Lisboa. Era o barco H.M. Mary, comandado pelo capitão van Dorf. O ex-Governador Prudente abeirou-se dele, que sequer lhe prestou atenção. Indignado pela desconsideração Prudente falou: - O Capitão me julga pela aparência, mas não sabe o que está perdendo. Acabei de chegar ao Rio com a bandeira de Chico Bicudo. Estamos acampados no pé da colina. - Bandeira? - Sim. Tenho um excelente negócio para você. Capitão... - Van Dorf. - Prazer, meu nome é Prudente. Estou lhe avisando. Tenho um excelente negócio a propor. Caso se interesse estarei com os bandeirantes. - Acha que arriscarei meu pescoço, senhor Prudente? - Quem disse que correrá perigo? - Minha intuição. - Estou lhe avisando, van Dorf. Tenho um bom negócio para você. - Que negócio é esse? - Um ótimo negócio. - Sim. Você já disse isso, Prudente. Do que se trata? - Pedras. Excelentes pedras. - Pedras? - Sim. Fáceis de vender em Amsterdã. Os joalheiros de lá ficarão loucos. Resta saber se você poderá pagar. - Pagar não é problema. Tenho amigos, donos de ourivesaria na Holanda que me autorizaram a ficar atento. Caso apareça alguma coisa, ouro ou pedra preciosa, eu poderei comprar um bom lote. - Então van Dorf você encontrou um bom negócio. Como faremos? - Traga as pedras até o navio. A gente as avalia e eu lhe pago. - Elas estão aqui comigo. Quer vê-las? - Claro. Que tipo de pedra você está vendendo? - Diamantes. São estes aqui. - Diamantes? Onde você, os achou? - Isto é outro problema. Pode olhar bem. São diamantes brutos. Legítimos diamantes, van Dorf. - Estou vendo. Compro-os todos. Você tem mais? - Por ora desejo vender este lote. - Você está milionário, Prudente. - Eu sei. Capítulo, 36. O desejo de alcançar uma boa posição social estimulava os emigrantes da colônia. A enorme vontade de apoderar-se de bens materiais fazia aquela gente atravessar o oceano e se instalar no Brasil. Só importava vencer os obstáculos a qualquer preço, enriquecer-se rápido, depois retornar à Portugal e desfrutar da fortuna. Embora estivesse se fixado no Brasil por acaso, o Ex-Governador Prudente conservava o mesmo anseio dos demais habitantes. Ambicionava manter-se próximo ao poder, juntar-se a elite e ser alguém influente na sociedade. Só que agora desistira de regressar a Europa. Não pretendia aventurar-se numa nova viagem transoceânica. Atualmente considerava essa hipótese arriscada e dispensável. Seria melhor habituar-se a viver por aqui do que naufragar em pleno mar. Chegando ao acampamento com sua vida inteiramente modificada, não conseguiu se conter e pensou: “Estou milionário. Nada me detém. Contratarei Chico Bicudo e me imporei na região por bem ou por mal”. Há muito tempo Prudente não experimentava tamanha felicidade. Vendeu os diamantes rapidamente, bem mais depressa do que imaginara. Comemorava a conquista, quando ouviu Chico Bicudo chegar acompanhado de João Preto. Notou que ambos estavam nervosos. Deixou o seu canto, caminhou até o ponto onde Chico falava pelos cotovelos e perguntou: - O que aconteceu Chico? - Eu vou matar aquele desgraçado. Ele não me fará de idiota. Quem ele pensa que é? - Que desgraceira é essa Chico? - O Governador não me pagou. Sequer me recebeu. Fiquei estatelado lá no palácio daquele filho da mãe e ele não deu nenhuma satisfação. Eu mato aquele cachorro pulguento. - Ele não pagou? - Não. Não deu a menor bola. Fiquei esperando o amaldiçoado a tarde toda. - Não é fácil não. - Vou esfolar o cão sarnento. Deixa comigo. - O homem é Governador. Caso você o mande pra cidade dos pés juntos, logo os soldados aparecerão. Aí será uma confusão danada. - Minha vida já é uma grande desordem. Acha que ando sozinho? Olha ao redor! Tenho companheiros dispostos ao meu lado... Hã! A vida daquele pessoal do palácio não vale nada. Vou mandar uns dois ou três pro inferno. Você vai ver. - Você não está errado não, Chico. E depois? - Depois eu pico a mula. Quero ver quem me acha neste sertão bravo. - Esfria a cabeça que amanhã a gente conversa. Tenho algo a lhe propor. - A tal proposta... Você não tem dinheiro, Prudente. - Já disse que dinheiro não é problema... É solução. - Eu o vi na praia liso, leso, louco, quase morto e duro. Como você arranjou algum? - Acalme-se... Acalme-se, Chico... - Vou tentar, Prudente. Vou tentar. O desarranjo entre Chico e o Governador do Rio beneficiava o plano de Prudente. No momento o bandeirante andava atolado de compromissos inadiáveis com os fornecedores e o seu bando. Necessitava honrá-los imediatamente. Para surpresa do ex-Governador, as coisas saíam bem melhor do que calculara. Seguramente a conjuntura lhe beneficiava. Deram-lhe o comando da situação na bandeja e ele não perderia a chance por nada neste mundo. Em primeiro lugar assumiria as dívidas. Os índios flecheiros receberiam uma bugiganga qualquer, os brancos uma reles bagatela e Chico Bicudo... Coitado dele. Encontrava-se em suas mãos. Realmente o vento tocava a seu favor. Também teria de adotar algumas providências simples. Compraria uma roupa decente, combinaria com Chico e partiria para o interior escoltado por um grupo de bandeirantes. A seguir se apossaria de terra virgem e fértil. Tentaria obter uma sesmaria nos termos da lei. Caso não arrumasse a transferência do direito de propriedade pelas vias legais, invadiria a quantidade de terra abandonada que quisesse, afinal, muitos homens valentes lhe auxiliariam nessa empreitada. Ninguém se meteria a besta com ele, o Prudente, ex-governador de Angola e futuro senhor de engenho, do maior engenho do Brasil. Negociaria o açúcar com os contrabandistas. Furaria, sem o mínimo receio, o privilégio exclusivo da Companhia de Comércio. Finalmente, resolveria de vez outro assunto pendente. Eliminaria o Visconde, porque somente ele conhecia sua origem. Apenas ele podia destruí-lo. Abatê-lo-ia sem dó, nem piedade.
Posted on: Wed, 06 Nov 2013 01:52:02 +0000

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