A Flor do Meu Jardim. Capítulo 8 Lamento. Um terrível - TopicsExpress



          

A Flor do Meu Jardim. Capítulo 8 Lamento. Um terrível lamento. O batuque dos tambores africanos retumbava. O som fúnebre ecoava pela floresta, savana, rios, deserto, céu e mar. A aldeia banta a exemplo de tantas outras estava em polvorosa. Mães procuravam seus filhos, mulheres a seus homens, homens chamavam pela amada e não encontravam ninguém. O caos se instalou ali. Os raros habitantes choravam a perda da sua gente. Alguns foram assassinados, outros sequestrados. O que mais lhes doía é o fato de saberem que não os veriam de novo, pois resgatá-los do cativeiro era uma tarefa impossível. Os tambores ecoavam um som de tristeza e dor. O futuro da aldeia se achava comprometido, por causa da redução do número de pessoas em cada linhagem. O drástico despovoamento ameaçava seriamente a perpetuação da espécie banta. O ruído melancólico acordou Kuami. A princípio imaginou ter despertado de um espantoso pesadelo. Neste sonho aflitivo homens cruéis invadiram a aldeia e levaram embora a querida Ambá. Olhou ao redor e notou o pessoal correndo pra lá e pra cá. A choradeira coletiva, o canto fúnebre lhe fez entender que não se tratava de um simples sonho, mas, sim, de um episódio medonho. E eles cantavam. Invocavam a proteção dos ancestrais que não se manifestavam, que não vinham socorrê-los. A mente confusa o atrapalhava raciocinar, o impedia agir, por isso, instintivamente, correu em busca do sacerdote ou Kimbanda: - Mestre o que faremos? - Orar, meu filho. Pedir ajuda aos ancestrais e aguardar. - Temos de ir atrás do nosso povo. Preciso encontrar Ambá. - Eles foram seqüestrados, meu filho. Encontrá-los aonde? Não temos gente suficiente. Sobrou um punhado de velhos, quatro ou cinco guerreiros e algumas poucas crianças. O que podemos fazer... - Não sei... Reagir... - Kuami, nem o “Grande Ndua” o oráculo mais respeitado da mãe África poderá resolver este problema. - “Grande Ndua”? - Sim, Kuami. É ele quem julga as divergências entre as tribos e culpados de crimes. Os réus culpados diante do oráculo são vendidos como escravos. Mas, neste caso, não há como pedir ajuda ao “Grande Ndua”. - Por que Kimbanda? - A esta altura nosso povo já foi vendido para mercadores de além-mar ou para comerciantes muçulmanos. Alguns deles já devem estar dentro de algum navio seguindo para terras distantes. Outros sofrendo com a travessia do deserto. Não temos saída Kuami. Infelizmente não temos saída. - Kimbanda não posso aceitar esta situação. - Você terá de lutar contra gente poderosa. Muito mais poderosa do que você pode imaginar. - Como você sabe disso, mestre. - Uma vez, quando ainda era jovem fui capturado. Vi os brancos e suas enormes canoas. Consegui fugir. Não sei como... Mas, escapei. É um pessoal diferente... - Será que Ambá... Posso tentar ajudá-la a se safar desta... - Não Kuami. É muito arriscado. Vamos procurar outros irmãos bantos e nos unirmos a eles para garantir a perpetuação da nossa linhagem, senão estaremos perdidos. - Não consigo me conformar, mestre. Não consigo. - É difícil. Muito difícil. Como vamos enfrentar os imbangalas, os brancos, os muçulmanos? Não temos guerreiros... Nosso futuro está seriamente comprometido. Não faça besteira... Não morra jovem... Você representa o futuro do nosso povo. - A morte. Não temo a morte, Kimbanda. - Ah! Quando você estiver diante dela, você temerá. Certamente, temerá. Deus fez os homens tirarem a sorte da pedra e da banana. Eles repudiaram a pedra por não ser comestível. A pedra dar-lhes-ia a imortalidade, entretanto o povo preferiu a banana que se come daí a morte. - Conheço esta verdade, mestre. - Você não é imortal Kuami. Não cometa a tolice de procurar Ambá. Ela não nos pertence mais. Acredite. - O que vai acontecer Kimbanda? - As crianças serão castradas pelos imbangalas e virarão eunucos. Os que sobreviverem serão vendidos aos muçulmanos. Homens e mulheres serão vendidos como escravos, tanto para muçulmanos quanto para os brancos de além-mar. É mais ou menos isso. - Crianças que sobreviverem? - Só uma entre dez capados sobrevive. Costuma dar contaminação e aí eles morrem de febre alta. - Cruz, mestre. - Nem sempre a vida compensa meu filho. Às vezes ela é dura, muito dura... Agora temos de enterrar os mortos. Você conhece o ritual? - Mais ou menos mestre. - Preste atenção porque você será um dos coveiros. Primeiro temos de colocar o cadáver numa barca, lavar o corpo com água e ervas, menos as costas. Fechar os orifícios e envolver a cabeça com um pano branco. - O que farei? - Você e os outros jovens sobreviventes farão o caixão e cavarão o túmulo. Quando cavar o túmulo não pode deixar cair uma só gota de suor senão você morrerá. Isto é muito importante. Você não pode deixar cair no túmulo uma só gota de suor. Entendeu? - Entendi. - Seguindo o ritual, começa o velório com os cantos de dança os quais terminarão com o interrogatório do defunto. - Interrogatório? - Kuami, toda morte é de origem sobrenatural, por isso é preciso saber se o falecido foi atingido por um castigo divino, ou se foi vítima de magia negra. Aí, então, você e os demais coveiros levarão o caixão às costas. O defunto os levará pra lá e pra cá. Neste momento vocês perguntarão: “Quem te matou?” “Foi fulano?” A cerimônia é longa e cansativa. Vocês coveiros serão empurrados em várias direções. Depois os corpos serão levados para casa. Neste momento os anciões se reunirão para interpretar a mensagem do morto. O ritual durará sete dias. - Isso eu sei. Será que agüentarei? - Fique quieto e preste atenção para não cometer erros. Após, o caixão será embranquecido e levado através do rio até a cova onde se dará as últimas despedidas. Todos falam: “É dada a hora de nos separarmos. Nada podemos fazer contra o que a terra decidiu. Fizemos tudo que podíamos. Demos-lhe um enterro digno. Olha por nós. Afasta-nos de todo mal”. Batemos os tambores para afastar os maus espíritos, depositamos alimentos sobre o túmulo e saímos rápido para uma lavagem de purificação no rio. É assim, entendeu? - Sim, Kimbanda. - Há um outro fator que você desconhece. - Qual Kimbanda? - A fome. Enfrentamos o período da seca e este flagelo assola a mãe África. Muita gente está morrendo por falta de comida. Mães vendem seus filhos, os homens suas mulheres e alguns até se vendem como escravos em troca de alimento. Você não está preparado para sair da aldeia. A dificuldade bate a porta e a nossa esperança são os jovens caçadores. Ainda não estamos à míngua por causa do rio, mas ele está abaixando depressa. - Eu não sabia disso mestre. - Pois é. Os tambores estão avisando dia e noite. Chegou a temporada da adversidade. A penúria está por todo canto. Se você partir enfrentará mais este desafio. Está entendendo? - Estou... - Pense bem Kuami. Pense bem... Não faça asneira. Precisamos de gente que nos ajude e que não nos crie problemas. Entendeu? - Sim. Após a conversa, o Kimbanda observou Kuami retirar-se inteiramente arrasado. No dia anterior o jovem estava cheio de vida e esperança. Agora o destino acabara de lhe desferir um golpe fatal. Por mais que quisesse não pôde deixar de absorver a tristeza de Kuami, afinal a dor do rapaz era igual a sua própria dor e pensou: “Creio no oráculo, no grande Ndua, os cristãos em Cristo e os muçulmanos em Mohamed. Com certeza enfrentamos uma guerra de conquista desigual, onde os fortes prevalecem sobre os fracos, os violentos sobre os pacíficos. O que é a verdade? Dizimaram o meu povo. O que farei? Como conduzirei minha gente por caminhos tão tortuosos?” Capítulo 9 Aos importadores de açúcar da Europa interessava comprar o produto pelo menor preço e vendê-lo com um ganho extraordinário. Queriam, de qualquer maneira, influenciar a cotação do artigo no comércio atacadista internacional. A fórmula encontrada foi incentivar a migração da cana-de-açúcar do Brasil para Barbados, Martinica, Guadalupe, Jamaica, São Domingos e outras regiões. Se multiplicassem a oferta intensificariam a concorrência entre os países produtores do gênero alimentício. O resultado prático da manobra seria a redução da sua valia no mercado mundial. Atento a nova tendência, o rei de Portugal almejando minimizar o inevitável prejuízo na balança comercial, determinou a intensificação do tráfico de escravos. O Brasil necessitava de mais mão-de-obra barata para aumentar a produção do açúcar e diminuir os custos de fabricação. Somente assim, competiria com os novos rivais de forma eficiente. O imperador recebera o relatório despachado pelo Visconde lhe informando que em Angola existia diamante, ferro, sal e madeira de lei. Imediatamente o rei enviou desbravadores até a África, a fim de explorar o milionário patrimônio da colônia. Portugal precisava saldar dívidas, pois se tornara o maior pedinte de empréstimo aos bancos europeus. O monarca alegrou-se com o excepcional talento do Visconde, assim sendo não hesitou transferi-lo para o Brasil, onde as riquezas naturais, ainda, eram desconhecidas. A inesperada ordem imperial colheu o Visconde de surpresa. Acostumado a conviver com a misteriosa rede de intrigas da corte, por questão de cautela, evitou comentar a mudança, inclusive ficou meio preocupado. Ignorava até que ponto o Governador valera-se da influência pessoal para arquitetar seu afastamento de Angola. Ele usou todos os artifícios possíveis para conhecer o resultado das pesquisas. O Visconde não só lhe sonegou tais informações, como também enviou o documento ao Rei em caráter confidencial. Agora lhe faltava aguardar a chegada da embarcação e partir para o Brasil. A nova situação o deixava confuso. Ouvira falar da imensidão da terra, das florestas inesgotáveis, dos índios nus e nada mais. Empreenderia uma viagem ao acaso, com destino incerto. Naquele dia o Visconde se sentia particularmente apreensivo. Segundo lhe disseram apenas os navios negreiros ancorariam em Angola. À boca miúda lhe contaram sobre as condições subumanas em que transportavam os africanos. Não queria testemunhar o sofrimento dos pobres negros, mas, não tinha opção, precisava ir-se embora o mais rápido possível. A competição internacional estava acirrada e anualmente já exportavam cerca de 20.000 cativos para as “plantations” da América e pelo Saara escoavam em torno de 7.000 escravos. Por efeito da súbita transferência, o Governador estampava no rosto uma indiscutível felicidade. Haviam lhe retirado uma pedra bem tinhosa do sapato. Após a partida do Visconde, agiria livremente sem o incômodo, aliás, inquietante, de tomar cuidado com uma vigilância tão intransigente. Por isso, avaliou os acontecimentos e concluiu que valia a pena o esforço de disfarçar a satisfação íntima. Não titubeou, fez cara de tristeza e chamou Malaquias com a única intenção de sondá-lo: - Estou triste Malaquias. - Por que Senhor Governador? - Soube que o Visconde partirá de Angola. Gosto tanto dele. Esta terra ficará mais enfadonha sem o nosso Visconde. - Também acho Senhor Governador. - O Visconde é um homem tão competente, tão trabalhador, tão dedicado aos interesses da Coroa... - É verdade Senhor Governador. - Pense bem... Como trabalhou em Angola... Viajou por terrenos áridos, embrenhou-se na floresta virgem, navegou por rios perigosos, enfim vasculhou Angola de cabo a rabo. Malaquias, você sabe se ele descobriu algo de valor por aqui? - Sei não Senhor Governador. O Visconde é muito discreto. - Ele não comentou nada com você? - Nada. Absolutamente nada. - Vai ver que é por isso que o Rei o transferiu para o Brasil. Foi uma punição... O que você acha Malaquias? - Pode ser Senhor. Ficar sem encontrar alguma riqueza... O rei não deve estar satisfeito. - Coitado do Visconde. É um homem batalhador, honesto... Dizem que o Brasil é enorme. Vai ser difícil o nosso querido Visconde trabalhar naquela terra. É muito chão pra percorrer. Você já foi ao Brasil Malaquias? - Não. Já ouvi falar dos índios que andam nus por lá. Será que as índias são bonitas? Capítulo 10 Propondo-se resguardar a mercadoria, o rei de Portugal baixou um Alvará Régio regulando a acomodação, o transporte e alimentação dos negros aprisionados. A lei exigia o fornecimento de ao menos três refeições diárias, dois litros e meio de água e revisão médica para o cativo. Cumprir a disposição prevista na regra jurídica elevava o custo, por isso os traficantes só agiam segundo o próprio interesse, e, tal procedimento ajudava a aumentar o risco de revolta. Os barracões já abrigavam mais de mil e oitocentos escravos. Agora, o Governador e os soldados andavam bem preocupados com uma possível resistência. Este fato enchia a feitoria de expectativa. A despeito das muralhas protegerem o entreposto, os portugueses tinham plena certeza de que haviam capturado guerreiros altivos e destemidos. Caso permanecessem muito tempo nos depósitos, poderiam disseminar o vírus de uma rebelião. Tratava-se de prioridade embarcá-los de acordo com a ordem de chegada, a fim de livrarem-se do estorvo urgentemente. O tempo no cativeiro os fez conhecer a rotina da feitoria. Este detalhe, quase imperceptível, poderia constituir o fator decisivo para encorajá-los a arriscar uma fuga em massa. Tal receio acompanhava o Governador e a Guarnição o que lhes dava a certeza de que era o momento dos mais antigos partirem. Quando a pomposa e barulhenta caravana de Aboubakar atingiu os arredores de Luanda, tanto o povo quanto o comerciante respiraram aliviados. Para os habitantes a chegada do mercador significava redução dos encarcerados nos malcheirosos calabouços. Já o negociante acalmou-se, pois vencera a incrível distância e suplantara o perigo das possíveis emboscadas durante a primeira fase da rude jornada. Para um e outro, naquele dia, tudo era motivo de comemoração. Foi uma festança. Embora no harém de Aboubakar habitassem quarenta odaliscas, mesmo assim desejava encontrar uma virgem jovem para ocupar o lugar da preferida. Analisou atentamente o grupo de moças expostas à venda, untadas de óleo, inteiramente nuas e visivelmente envergonhadas. Ao pôr os olhos na menina Ambá seu coração disparou. Aboubakar examinou o rosto, os dentes, os seios firmes, as ancas e as coxas da garota. Submetida a uma desonra humilhante Ambá não reagiu. Manteve-se firme. Desligou-se dali, desdenhou o tratamento infame e voltou seu pensamento para os momentos felizes na aldeia banta ao lado do amado Kuami. O cativeiro a ensinou obedecer sem discutir, seguir as regras ao pé da letra para evitar algum tipo de represália, sempre instantânea e penosa. Aboubakar não hesitou, escolheu-a rapidamente. Depois, separou em lotes cinqüenta eunucos, cinqüenta homens e tirante Ambá levou de quebra, mais cinqüenta mulheres formosas. Acostumado com o negócio, não ignorava que na travessia do deserto morreriam, pelo menos, dez por cento das peças compradas. Apesar disso e por causa do lucro formidável, faria um magnífico negócio com os sobreviventes. Pagou em caurim, uma concha branca e transparente usada como moeda do Sudão à China. Após o acerto de contas, descansou de dois a três dias, levantou acampamento e foi-se embora. O desiludido Visconde observava a cena com viva curiosidade. Aquele mercador famoso e rico parecia não se importar senão com sua segurança pessoal, o lucro exorbitante e o luxo. Viu-o vasculhar o corpo da moça em cima, no meio e embaixo. Virou-a pelo avesso a procura de um único defeito estético. Tudo em vão. Notou também a humilhação e a desonra que ela teve de suportar em absoluto silêncio. Enquanto a caravana do mercador sumia no horizonte, os navios negreiros ancoravam no porto de Luanda. O Visconde refletiu feliz: “Certamente jamais verei o tuaregue outra vez.” Entretanto, não duvidava que, guardaria a figura de Aboubakar em sua lembrança para sempre. Guardaria porque, ele caminhava como um rei e ria como uma hiena. Esqueceu o mercador tuaregue e fixou a atenção nos dois tenebrosos navios ancorados no porto aguardando o embarque dos escravos. Ambos navegariam com destino ao Brasil. Passadas questão de hora e meia, ele escutou quatro toques suaves na porta. Autorizou a entrada: - Pois não. - Sou o Capitão do Santa Maria e trago uma mensagem do rei. - Para mim? - O senhor não é o Visconde José Feliciano? - Sim. - Aqui está com o selo do próprio rei. A recomendação foi para lhe entregar em mãos. O Visconde abriu a carta. Ao lê-la surpreendeu-se com o teor da determinação Real. Viajaria com destino ao Rio de Janeiro no navio Santa Maria. Engoliu a seco. Preferiu não comentar o conteúdo da mensagem. Guardou-a no bolso e perguntou: - Quantos escravos cabem no Santa Maria? - Setecentos e no outro que é menor cerca de quinhentos. Isto é o que cabe, no entanto levamos o máximo possível. - Por quê? Assim eles podem morrer. - Não tem jeito. Cerca de quarenta por cento dos negros morrem nos primeiros seis meses após o aprisionamento no interior da África a caminho do litoral. Doze por cento dos sobreviventes morrem durante o mês em que ficam nos portos aguardando o transporte. Durante a travessia perdemos cerca de nove por cento e metade dos que chegarem ao Brasil morrerão durante os quatro primeiros anos. - Não é possível. Vocês não se importam? - Ora, eles deixarão de ser pagãos. Seguirão para um país cristão. Até deveriam estar contentes. Aprenderão as coisas da fé. Além do mais, daqui por diante deixarão de comer cães, ratos e cavalos. - Meu Deus. O capitão pensa assim? E a lei? - Não só eu. Todo mundo. Quanto à lei... A gente faz o que pode... - Como assim o que pode? - Temos de lucrar. Não podemos perder. É o nosso ganha-pão. - Mesmo desrespeitando a lei? - Aqui pra nós Senhor Visconde, a lei foi feita pra não ser cumprida. Não podemos perder... É nosso ganha-pão. Afinal, estou dando trabalho pra muita gente. Nesta crise. Pessoas precisando de trabalho. Estou ajudando e muito. - Meu Deus... Mudando de assunto... Este navio está indo para... - O Rio de Janeiro. - Qual é o tempo de viagem, capitão? - De trinta e cinco a cinqüenta dias se a viagem for normal. Caso enfrentemos alguma calmaria ou correntes adversas a travessia poderá se prolongar até seis meses. - Seis meses? - É isto mesmo. Até seis meses. - Este pessoal vai todo espremido no porão? - Todos juntos. Urinando, defecando e vomitando. O difícil é a gente suportar o mau cheiro e o risco de doença. Mas, eles serão civilizados... Ah! Serão sim. Capítulo 11 “Juventude! Juventude! Como impor limites a um garoto ousado, abrir seus olhos, domar sua afoiteza e coragem, se ele anseia enfrentar desafios sem medir conseqüências? Que foi feito de você Kuami? Lembro-me bem do seu nascimento e da sua primeira caçada. Cadê o jovem tranqüilo de olhar cativante, de sorriso largo? Você Kuami sempre agiu como um bravo, mas nunca deixou de ser dócil e bom, especialmente, bom. Onde está você rapaz? Não há no mundo conselho capaz de conter um adolescente impetuoso. Não importa o quanto nos esforcemos para orientar os moços. Equivale a lutar contra a natureza, pois uma das características da mocidade é a imponderação e o inexplicável desejo de se meter em aventuras. Eu, o Kimbanda sei disso porque um dia também fui menino.” O curandeiro ia resmungando consigo, enquanto percorria os destroços da aldeia a procura de Kuami. Ao aconselhá-lo aceitar a insuportável situação, desconfiou estar jogando palavras ao vento. Ele imaginava que no íntimo, no fundo do coração Kuami já decidira só fazer o que lhe desse na telha. O pai falecera a algum tempo num combate entre bantos e yorubas. Agora acabava de perder violentamente a mãe, os amigos e a amada Ambá. Tratava-se de afronta, de sofrimento demais para alguém com espírito guerreiro suportar a situação sem reagir. Desde então, o velho Kimbanda o observava, diariamente, cheio de preocupação. Ao seu sentir Kuami encontrava-se prestes a declarar guerra ao mundo. A visível mudança de comportamento divergia da serenidade de outrora. Para seu espanto, inclusive, o surpreendera invocando Calunga, o espírito da morte e Zumbi dos mortos. Ultimamente vivia de cara amarrada e o sacerdote acreditava que ele andava se metendo com magia negra, crime grave na concepção banta. Durante o funeral, Kuami executou o ritual banto corretamente. Cantou as músicas fúnebres com ardor e paixão. No interrogatório do morto não hesitou um segundo sequer. Terminado o enterro o Kimbanda não o viu de novo. Ele simplesmente desapareceu. Por isso resolveu ir ao seu encalço. Caminhou pra lá e pra cá, foi até o leito do rio, depois seguiu em direção a floresta. Chamava por Kuami, em resposta escutava, apenas, o eco da própria voz. Desanimou da busca e pensou: “Rapazinho tolo. Correu atrás de encrenca. Se não morrer no caminho, poderá se tornar escravo. Sofrimento inútil. Desperdício desnecessário”. Não havendo mais nada a fazer o Kimbanda desistiu e retornou para liderar os outros desamparados. Afinal, neste instante muita gente dependia dele. O sacerdote sabia que não tinha com quem contar. O enigmático e impenetrável destino se encarregara de transformá-lo no chefe da aldeia devassada. O Kimbanda acertou em cheio. Nas circunstâncias, Kuami prestava atenção, somente, na revolta do seu coração. Ouviu a sugestão do curandeiro sem olhos e sem ouvido, em resumo: desatento. Resolveu não permanecer ajoelhado, chorando e lamentando as perdas insubstituíveis. Jamais se furtou de acatar respeitosamente as opiniões do mestre, aliás, o escutava cheio de admiração. Kuami o considerava o homem mais sábio, poderoso, inteligente e melhor informado das coisas da vida. Na face da terra não havia outro igual ao Kimbanda. Desta vez, pela primeira vez, não seguiria ao pé da letra a recomendação do curandeiro. Permanecer na aldeia significaria se sujeitar a uma vigilância constante. Não vislumbrando outra solução definiu partir imediatamente. Retirou-se de fininho e caminhou por onde os imbangalas levaram os prisioneiros. As pegadas espalhadas em torno da margem do rio apontavam, claramente, que perseguia a pista certa. De repente, os rastros sumiram e uma dúvida tomou conta de Kuami. Não sabia se descia ou subia pela beira do rio. Após breves minutos de indecisão preferiu descer. Cedo ou tarde aquele amontoado de água desembocaria no mar e isto o auxiliaria a não se perder no caminho. Marchou em passo acelerado durante meio-dia completo com o sol escaldante o maltratando. Ao cair no mundo, às pressas, se esquecera de se prevenir. Não carregou consigo alimento de qualquer espécie. Então, debilitado pela fome e fadiga decidiu parar, descansar um pouco, caçar, pescar, enfim encontrar algo para fartar-se. Na visão de Kuomi, uma maldição esquisita desabara sobre si. Tudo corria muito bem, de súbito a sorte o abandonou. Ora desejava desistir do plano e regressar, ora prosseguir até o fim, desse no que desse. A exaustão variava seu humor da mesma forma que a natureza muda o curso do vento. Repousou o suficiente e prosseguiu na infeliz peripécia. “Pelo visto, concluiu, o meu grande inimigo será a tortura da fome e a canseira.” Saiu dali rogando praga por não ouvir os conselhos do Kimbanda. O tempo passava rapidamente. A esta altura, com a cabeça embaralhada, Kuami desconhecia há quantos sóis ou há quantas luas transitava na beirada do rio que secava a olhos vistos. Ao entardecer topou com destroços de uma embarcação grande, com corpos malcheirosos espalhados numa e noutra margem. Ao notar que estava no rumo certo, acelerou o passo animadamente. A noite chegou de mansinho... Esperando abrandar a escuridão, acendeu uma fogueira, arriscou armar uma tocaia para ver se abatia um animal noturno. Efetivamente sua estrela não lhe favorecia. Não alcançou êxito e acabou dormindo. Ao amanhecer tentou outra vez. Desta feita a sorte o socorreu. Pegou um bom peixe e deu cabo de três ratos silvestres. Catou lenha, revigorou a fogueira, os assou, os comeu e continuou a viagem. Capítulo 12 Desde priscas eras, a África sofre com o terrível suplício da seca. Especialmente, no ano de 1645 o povo se surpreendeu ao vê-la os alcançar de jeito. A devastadora estiagem os colheu de surpresa, principalmente porque habitavam um lugar onde os líderes militares e políticos não conseguiam organizar um Estado centralizado e eficiente. A falta de chuva se alastrou a ponto de atingir os moradores do vale do rio Senegal. Metade da população Tombuctu morreu de sede e inanição. O caos se espalhou de tal maneira que a África se transformou numa grande contradição. Escravos fugiam sem serem perseguidos, pessoas se auto-escravizavam, enfim a população enfrentava um estado de calamidade pública pernicioso. A miséria tomou conta do Continente já fragmentado. Os oportunistas ajudavam aumentar o sofrimento da população e o banditismo a exemplo da seca provocava um estrago proporcional ao causado pela estiagem. As conseqüências de ambos os males foram ruinosas. Atento ao flagelo imposto pela natureza, o Governador de Angola reuniu o gabinete para analisar a perigosa situação. Como todo homem público inábil, encontrou a solução do problema. Após exaustivos debates, decidiram enviar patrulhas constantes e bem armadas nas imediações de Luanda, a fim de desestimular os saques dos esfomeados e a tentativa de fuga de escravos. Ao invés de cuidar do sofrimento dos súditos pretendiam proteger, unicamente, os interesses da Coroa. Malaquias nunca gostou de trabalhar, muito menos de conviver com a arraia-miúda. Acostumado a transitar pelos corredores do palácio, se movimentava livremente no meio dos figurões e donos do poder. Entre cumprimentos, sorrisos, bajulações, tapinhas nas costas, ele seguia feliz da vida ao lado da elite. Agora, andava bem revoltado, pois tinha de se preocupar com a ronda dos soldados, seja preparando a escala do dia, seja participando ativamente das batidas policiais. Em comparação com a extensão do território, Malaquias dispunha de um contingente militar insignificante. Mesmo assim, não cochilava quando se tratava de atender a ordem do governador, porquanto temia perder o comando da guarda e os benefícios que o posto lhe trazia. Malaquias não passava de um grandessíssimo medroso. Disfarçava este importante detalhe contando fanfarrices homéricas. Era capaz de converter ações enfadonhas e rotineiras em atos de bravura. Os recrutas acreditavam nas histórias de Malaquias, tanto assim que procuravam copiar sua tagarelice. Na condição de líder da guarda não poupava os homens, os colocava sob ordens na frente de batalha e permanecia na retaguarda na mais completa segurança. Cumprindo a determinação do Governador, ele e quinze soldados saíram para inspecionar os arredores de Luanda. Mandou três militares seguir na frente e ficou atrás junto do restante da tropa. Quase dava à hora de retornar ao quartel, quando um dos batedores chegou com o coração saindo pela boca: - Fugitivos... Comandante... Eu vi... - Que tipo de fugitivo? - Escravos. - Quantos? - Um. - Quantos? - Acho que um. Mas deve ter outros escondidos nas imediações. - Soldado. Você está apavorado por causa de um escravo que fugiu? - Bem... Eu vi um. Deve ter mais... Muito mais. - Onde eles estão? - Bem ali adiante, comandante. - Então vamos espalhar e pegá-los de surpresa. - De surpresa, comandante? - Claro. É melhor assim. - Também acho. - Vamos evitar que fujam. Espalhem... Espalhem... A esta altura dos acontecimentos, Kuomi caminhava cambaleando e caiu exausto, faminto. A inanição o emagrecera sensivelmente. O garoto forte, musculoso e ágil de meses atrás virou um farrapo de gente. Na beira do riacho se achava estendido um corpo cadavérico, esquelético, moribundo. O rio e Kuomi tinham algo em comum. O rio caudaloso de antes se transformou num córrego miúdo, raquítico. A seca também o consumira. No momento em que se viu cercado por um contingente de homens brancos, vestindo uma roupa esquisita e o ameaçando com as armas, Kuami apavorou-se. Sem condições de reagir, continuou estatelado com os olhos arregalados. Neste instante, sentiu que sua jornada terminara ali. Os brancos falavam uma língua esquisita e ele não entendia coisa alguma. Conservou-se imóvel, olhando-os em silêncio, assustado. - Este é o bando de negros fugitivos? - Bem comandante... Eu pensei que havia outros. - O crioulo está mais morto do que vivo. Acho que nem vale a pena levá-lo. Dificilmente escapará. Já ta quase morto mesmo. Nem para ser vendido como escravo ele serve. Quem vai querer comprar isso? - É... Ele está meio magro... - Soldado, e os outros? Onde está o bando de escravos fugitivos? - Comandante eu pensei... - Soldado não pensa, soldado cumpre ordens e dá informações precisas, monte de estrume. - O que vamos fazer com ele comandante? - Acabar com o desgraçado. Se o levarmos para lá só vai dar despesa. Está faltando comida. Tem gente se auto-escravizando em troca de comida. Será mais uma boca. Ele não é fugitivo. É um filho da mãe sem tamanho. É um morto de fome. Mate-o. Ele não tem utilidade. Não gaste a munição que é cara. Use o sabre. Dito isso, retirou-se não tinha coragem de matar uma pessoa naquele estado. Temia receber algum castigo por parte de Deus. Capítulo 13 À medida que as portas dos depósitos se abriam, os negros iam ficando surpresos. A desconfiança geral pairou no ar. Embora convivessem com os brancos há pouco tempo, rapidamente, aprenderam a suspeitar das ações deles. Homens armados se posicionaram estrategicamente com a única intenção de desestimulá-los a reagir. O período, que permaneceram encarcerados, fora suficiente para entenderem o aviso. Carregavam consigo uma convicção, os europeus não guardavam nada de bom para nenhum dos cativos. Esta certeza lhes trouxe insegurança, mãe da dúvida e do receio. Se na aldeia possuíam uma rotina baseada nos seus costumes e tradições, nos barracões das feitorias nem sequer imaginavam como seria o amanhã. Dormiam e acordavam sem futuro, sem esperança. Conviviam diariamente com outra cultura, com uma civilização totalmente desconhecida. Saíam dos depósitos em fila caminhando devagar na direção dos navios. A aguda tensão emocional calava a boca dos traficantes e dos próprios escravos. Ouvia-se apenas o barulho abafado provocado pelos passos da enorme fileira. Antes de entrar no barco, os padres os batizavam colocando sal na língua de cada um. Recebiam um nome português, os traficantes os marcavam a ferro no peito, no ombro ou na coxa para humilhá-los e reduzi-los ainda mais a insignificante condição de escravo. A seguir, os traquejados marinheiros os embarcavam amontoando-os num porão de 70 m2 e os colocavam a ferros, ao menos até perder de vista a costa africana. Muito a contragosto o Visconde subiu a bordo do Santa Maria, um navio de 64 canhões. Os cativos já se encontravam no porão de onde se escutava alguns uivos e aquelas vozes queixosas o deixaram horrorizado. Os marujos davam os últimos retoques no convés superior. Ele examinou cuidadosamente sua cabine, uma câmara relativamente confortável. Através de uma janelinha observou o movimento do porto e percebeu que o barco zarpava barra afora. Apesar do mar liso, do tempo ensolarado e de soprar uma brisa favorável à navegação, ninguém poderia prever ao certo, quantos meses duraria a viagem até aportarem no Brasil. O Visconde retornou ao tombadilho. O comandante o avistou e o chamou: - Espero que a viagem seja breve e que encontremos o vento favorável. - Também espero. - Caso precise de alguma coisa é só avisar. O imediato tem ordens para lhe atender dentro das nossas possibilidades. Como o Visconde sabe este não é um navio de luxo... É um navio negreiro. - Obrigado. - Por isso, temos que diminuir as despesas. Para colocar o navio no mar, equipá-lo, adequá-lo ao tráfico, contratar tripulação, adquirir comida para a travessia, enfim é muita despesa. - Entendo. - Temos de levar o maior número de mercadoria possível, senão tomamos prejuízo. - O senhor quer dizer escravos. - Sim. Mercadoria. O escravo não é gente. É mercadoria. - Não sente pena deles Comandante? - Visconde, nós não temos sentimento uns pelos outros quanto mais por eles. Não passam de objeto de compra e venda. - É assim que pensa? - A vida é assim. Mas, vamos deixar de lado os escravos. O importante e que esteja à vontade Visconde. Para os escravos temos feijão, arroz, carne seca e farinha. Para a tripulação temos cerveja comum, cerveja preta forte, barris de vinho, licores de várias espécies, macarrão, tapioca da melhor qualidade, pecles inglês, charutos, uvas moscatel, tâmaras, amêndoas, nozes etc. etc. Os viveiros no tombadilho estão cheios de patos, frangos, e onze porcos. Não se preocupe o Visconde comerá bem. Nosso cozinheiro é da melhor qualidade. - Uma curiosidade: quanto custa um escravo aqui na África? - £ 3.5 cada. No Rio de Janeiro o preço de venda de um homem é de £ 52, mulher £ 41.10 e criança £ 31 cada. É um comércio terrível, extremamente lucrativo. - Estou vendo. Como o comandante virou traficante? - É uma longa história. Este é um trabalho de homens perdidos, sem alma. - Entendo... - Não... O Visconde pensa que entende... Bem tenho de tirar os negros do porão e trazê-los para cima. - É um gesto de humanidade. - Não se trata disso Visconde. O calor, o porão apertado, a sede e falta de ventilação... Amanhã haverá muitos mortos. Tenho de orientar a retirada deles, senão um vai querer passar na frente do outro em busca de ar para respirar. Nesta desesperada tentativa os mais fortes pisoteiam os mais fracos. Um puxa o outro para trás e aí acabam fazendo mais força para sair, e eles se esmagam, ou se ferem gravemente. - Nossa... - O negócio é feio visconde. Alguns pisoteados ficam com as vísceras aparecendo. Um estrangula o outro com a mão na garganta, e ficam com a língua totalmente de fora da boca. Outros tantos simplesmente morreram asfixiados. É um prejuízo enorme. Irei lá orientar os homens. Eles são treinados, são hábeis, mas gosto de ficar por perto para evitar morte desnecessária. Não posso perder. Trabalho pelo lucro. Não quero que minha mercadoria vire alimento de tubarão. - Comida de tubarão? - Sim. Eu não como carne de tubarão. Uma vez pescamos um enorme quando o cortamos tinha pedaço de africano no estômago dele. Hoje mesmo eu vi um de mais de quinhentos quilos e não o pesquei. Não pescamos tubarão... Nenhum de nós. Bem. Com licença Visconde. Até mais - Até mais, comandante. Passados alguns minutos os retiraram do porão e os levaram para a popa do navio. Ali se deitaram, recostado um no outro formando um estranho amontoado. Exalavam forte catinga produzida pela mistura de suor, urina e fezes. O visconde os olhou detidamente e constatou o estado deplorável dos negros cativos. Diante de si, estatelado e mudo, se achava uma esquelética sombra de gente. Capítulo 14 Chegando ao Oásis de Skura, após a árdua travessia do deserto e sucesso da expedição, Aboubakar agradeceu a Allah. Embora estivesse exausto, ainda achou tempo para contabilizar os lucros e conversar com Yazid, o etíope. Ele era o eunuco responsável pela administração do palácio: - Comprei uma nova escrava que se chama Ambá. Este nome será mantido, não desejo trocá-lo. Prepare-a, ensine-a a ler e escrever o árabe e o líbico. Converta-a ao islamismo. Aprenda com ela o dialeto banto e trate-a como uma rainha. Quando ela estiver pronta eu a receberei no meu leito. Farei de Ambá minha preferida. - Eu conheço o dialeto banto meu amo. - Conhece? - Claro. O africano normalmente conhece dois dialetos. O da tribo e um outro para fazer negócio. - É assim mesmo. - Vamos treiná-la. Depois de algum tempo ela estará preparada. Tenho certeza que a transformaremos na melhor, na mais doce odalisca. - Espero que sim Yazid. Faça-a se sentir a vontade. - Mas, se ela resistir... - Coloque-a para trabalhar no campo, na cozinha, deixe-a passar fome... - Certo, meu amo. - Não me enrole. Não a acuse em vão. Não o perdoarei. Você conhece a regra Yazid. - Conheço meu amo. - Transforme-a na mais bela odalisca do harém. - Assim será feito meu amo. - Outra coisa. Existe uma feroz competição por causa dos escravos. Capturá-los está cada vez mais difícil. Os muçulmanos não estão respeitando a proibição de escravizar outros muçulmanos. Os europeus não param de chegar. Estão cada vez mais poderosos e ambiciosos. Os imbangalas estão mais brutais do que nunca. São mercenários desalmados. Os piratas ingleses, holandeses, americanos, enfim a pirataria nos rodeia. Eles espreitam e atacam sem piedade. Estou preocupado com o nosso futuro Yazid. - Já aumentamos nosso exército... - Não basta só aumentar. Temos de torná-los eficientes, bem treinados. Os escravos e escravas que trouxe para vender já foram negociados. Restaram alguns. Quero que os adestre para a guerra. Trouxe bastante armamento e cavalos. Este animal é o principal elemento de superioridade militar. Não esmoreça prepare bem a tropa, pois pressinto que brevemente teremos de enfrentar algum tipo de ataque. - De quem? - Inimigo não tem nome. Não temos amigos aqui na África. Existe sim, interesse comercial. Fique atento e não deixe os soldados engordarem. Treine-os, exija disciplina e lealdade. - Perfeitamente meu amo. Mais alguma coisa? - Sim. Pare de me chamar de meu amo, meu senhor... Você é meu irmão Yazid. Meu irmão de fé. Allah nos uniu no céu. - Sim, meu amo. - Ora... Ora... Suma daqui. - Perfeitamente, meu senhor. – Risos. A assustada Ambá, depois de enfrentar a travessia do deserto foi alojada num aposento luxuoso. Cerca de quarenta mulheres dividiam o enorme espaço. Curiosamente todas aparentavam plena felicidade. Cada uma delas possuía duas camareiras particulares, comida farta, vestiam roupas elegantes e usavam jóias finas. Eram mimadas e tratadas com muito carinho. A despeito de estranhar o novo ambiente, Ambá logo percebeu que suas terríveis dores talvez terminassem naquele lugar. Quando o homem apresentou-se como Yazid e conversou no dialeto banto ela admirou-se: - Não podia imaginar que alguém conhecesse minha língua por aqui. De onde vim havia muitos negros e todos falavam dialetos diferentes. Até agora estou sem entender o que aconteceu. - Você foi capturada e se transformou em escrava. Pode ter certeza que deu muita sorte porque meu amo gostou de você. Caso não colabore sofrerá muito e não quero isso. Pode acreditar não desejo isso para você. - O que devo fazer? Yazid a explicou os fatos e retirou-se. Ambá pôs-se a chorar. Ainda amava seu querido Kuami com força. Acreditava que ele partira desta vida e já se encontrava ao lado dos seus ancestrais. Ela o viu estirado no chão durante o ataque a aldeia. Aquela gente impiedosa lhe arrancou o seu grande amor. Rasgou-lhe o peito, apunhalou-a no coração que não parava de sangrar de tanta saudade de Kuami. Mesmo rodeada de luxo e bem cuidada não se alegrava. Sua cabeça estava noutro lugar. Ambá sofria desesperadamente. Uma nostalgia mortal tomou conta da menina. Antes, qualquer coisa simples da aldeia lhe dava satisfação. Agora nada lhe agradava. A visão obscurecida, o raciocínio perturbado embaraçava-lhe a lucidez. Ninguém conseguia consolá-la e Ambá adoeceu. A princípio Yazid escondeu este episódio de Aboubakar. Notando que nem o médico, nem as odaliscas, nem as camareiras, nem ele próprio conseguia curá-la, resolveu relatar a situação: - De cama? Coloque-a para trabalhar na cozinha. - Não recomendo meu amo. Ela está doente. Não adianta puni-la. Isto não a curará. - Qual é o remédio então? - O tempo. Este fato é comum entre os escravos. Depois eles melhoram. Vamos dar um tempo a ela. - Quanto tempo Yazid? - Não sei. - Como não sabe? - Não sei. Não sei. Não sei. Já chamei o médico e nada. - O que ele recomendou? - Paciência. - Paciência? - E nada mais meu amo. - Não sei se terei paciência Yazid. - Ela é uma criança. - Criança! Tenho uma enorme quantidade de crianças escravas e já vendi muitos meninos escravos. Não necessitei de ter tanta paciência assim. - E, quantas morreram? - Não sei Yazid. - Pois é... Eu sei. Foram muitas... - É. Você tem razão. Este caso é diferente. Só não sei se terei calma. - Tente meu amo. Tente. Farei o possível para recuperá-la. - Qual é o nome da doença Yazid? - Banzo. É uma mistura de saudade da terra, da tribo, das linhagens, dos deuses. Enfim é uma grande melancolia. - Se todos amassem Allah seria bem mais fácil de entender. - Então não haveria o escravo meu amo. Um muçulmano não pode escravizar outro muçulmano. - É... Temos de ter paciência.
Posted on: Sat, 02 Nov 2013 00:22:21 +0000

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