A Flor do Meu Jardim – capítulos, 85/91 Capítulo, 85. A - TopicsExpress



          

A Flor do Meu Jardim – capítulos, 85/91 Capítulo, 85. A euforia tomou conta de Prudente e Chico Bicudo. Os negros da senzala não compartilharam dessa sensação de bem-estar. Após incontáveis dias de apreensão, finalmente a bandeira comandada pelo mameluco Jaime Lemos chegou à Usina São Miguel. Os bandeirantes se esforçavam para disfarçar o cansaço. Desejavam causar boa impressão no novo armador e lhe mostrar que investira em homens dispostos, fortes, úteis. Esse detalhe não passou despercebido ao Prudente, muito menos a Chico Bicudo velho conhecedor do inofensivo truque. Enquanto Prudente comemorava, os escravos torciam o nariz. Rapidamente um negrinho dissimulado partiu em disparada para alertar o quilombo de Aboubakar. Nesse instante, nesse preciso minuto, Chico Bicudo o viu por acaso. Sem perda de tempo montou num cavalo baio arreado e disparou no encalço do astuto garoto. Mal pisou na floresta, Chico Bicudo já estava junto dele e o agarrou pelo braço. Deu-lhe uns sopapos na orelha, laçou-o e o puxou até a senzala, onde desferiu mais algumas bordoadas no menino e avisou: - Caso alguém se atreva a fugir ou sair da propriedade levará cinqüenta chicotadas. Eu mesmo as darei. Todos ao trabalho. A seguir foi ao encontro de Prudente. Embora conhecesse o plano desejava rediscuti-lo. Conhecia Prudente a fundo e não seria besta de assumir a responsabilidade do comando da operação sem a aprovação do chefe. Caso a expedição falhasse, Prudente também responderia pelo erro, pois ele adorava arranjar um culpado para pagar por sua própria burrada. - Como faremos nhô Prudente? - Em primeiro lugar vamos dominar o quilombo, depois exterminaremos os índios da região. Sem dó nem piedade. - E os jesuítas. Eles não gostarão. O governador tem que decretar guerra justa. - Quer guerra mais justa do que essa? Temos de nos defender dos índios. Neste fim de mundo ninguém saberá de nada. - Caso o governador venha saber? Mexer com os índios já deu e continua dando muita encrenca. - Então diremos que fomos atacados e nos defendemos. Diremos que não houve nem tempo de entrar em contato com ele. O que você acha? - Vosmecê é quem manda chefe. - Não tem nenhum palpite? - É o chamado risco calculado. Precisamos enfrentar a situação antes que os índios nos ataquem. Não poderemos ficar com a bandeira indefinidamente aqui. Não é isso? - Exatamente Chico Bicudo. Então fica assim. Primeiro os escravos, depois os índios. Temos de recuperar os negros foragidos e acabar com o maldito quilombo. Depois de descansarem, Jaime Lemos levantou acampamento e os bandeirantes, e os índios flecheiros e todo o aparato marchou rumo ao sul do Espírito Santo, em direção as Cachoeiras do Itapemirim. Marchavam para desmantelar o quilombo e capturar o máximo de negros possível. Muitos morreriam na batalha, porém a ordem era evitar o massacre e aceitar uma eventual rendição. Chico Bicudo os queria saudáveis para trabalhar. Da varanda da casa-grande Prudente e Conceição observava a bandeira ir-se embora. Olhavam a enorme fila parecida com uma gigantesca cobra se arrastar pelo chão e desaparecer na floresta. Dez homens permaneceram no engenho por questão de segurança. Como Chico Bicudo conhecia o caminho de cor acompanhou os bandeirantes, assim agilizaria a viagem. Começavam uma missão que segundo os cálculos seria longa, violenta. Os batedores guaranis, integrantes do grupo de flecheiros, que seguiam na frente para vasculhar o terreno em busca de índios hostis ou negros foragidos, retornaram e falaram na língua tupi com Jaime Lemos e Chico Bicudo: - Guerreiros aimorés adiante. São em número de oito, devem estar investigando alguma coisa. - Vamos aprisioná-los Chico. - Será que eles nos localizaram Jaime? - É o que temos de investigar. - Bem, vamos cercá-los então. Mandarei trinta homens, entre brancos e índios flecheiros. Vamos ver se conseguimos capturar algum deles vivo. - O grupo partiu. Esquadrinharam uma área com cerca de cinco quilômetros, depois retornou: - Nada? Que diabo de índios são esses que evaporam no ar Chico Bicudo? - Não sei. Ainda não os conheço direito. Segundo comentam são um grupo de selvagens estúpidos e fracos. - Será Chico? - É o que dizem Jaime. É o que dizem. Capítulo, 86. Nem bem a bandeira desapareceu no meio da mata, Conceição entrou na casa-grande com um olhar triste, e esse olhar a acompanhava há muito tempo. A mulher dinâmica de outrora se transformou em alguém apática, indiferente a tudo. Prudente nem se preocupava ou nem percebia Conceição morrer aos poucos. Já não achava forças para lutar contra o desânimo. Jamais poderia supor que amasse Valentim de forma definitiva. Desde quando acordava, até a hora de dormir, e raramente conseguia conciliar o sono, ele não lhe saía do pensamento um segundo sequer. A saudade a torturava. Seus olhos viviam vermelhos de tanto chorar. Suas forças se esvaiam, enxergava o mundo sem cor. Gostava dele, gostava da presença, do jeito e do humor do negrinho. O dinheiro, as roupas caras, a fartura, a riqueza não lhe interessava mais. Só Valentim seria capaz de alegrá-la, só a presença dele: “Meu Deus como eu amo o escurinho”. A aflição da recordação a atormentava. Antes ele passava, ora rindo, ora emburrado em frente a ela, agora não. Achava-se bem longe, em algum lugar padecendo, quem sabe, ainda na cadeia. Não lhe importava abraçá-lo, beijá-lo, entregar-se a ele, daria tudo para vê-lo por um momento. Sentar-se ao lado dele, conversar um pouco, ouvir sua voz e nada mais. Numa crise de ciúme condenou-o a perder a virilidade, aleijou-o, inutilizou-o como homem, como escravo, como gente, como o seu amor. Às vezes se arrependia do que fez às vezes um ódio repentino a sacudia e lhe dizia que agira bem, que fizera o certo, afinal ele a traíra com outra, a ferira... Como um modesto escravo podia ter tanta força, podia enfeitiçá-la dessa maneira? Ela andou pela casa, entrou na cozinha, tomou um copo de água e descobriu uma garrafa de cachaça. Abriu-a, bebeu uma dose que desceu queimando sua garganta. Achou-a horrorosa. Caminhou até o quarto, deitou na sua cama, deixando para trás as escravas fofocando pela suas costas: - O que será que mordeu a sinhá? - Falta de homem minha filha. - O marido nem lhe presta atenção. Mulher sem homem acaba virando mula sem cabeça... - Esconjuro. Conceição não bebia, por isso sentiu o efeito do álcool imediatamente. Bocejou meio zonza e pensou no seu querido Valentim. Seus olhos se fechavam devagar e ela murmurava: “Ai coração por que me trai dessa maneira. Ai coração ajude-me a esquecer esse homem que nunca mais verei. Ai coração... Ai coração”... Então caiu no sono. Não longe dali, o Capitão Tom Hawkins aproximava-se da costa brasileira, após uma viagem repleta de contratempo. Enfrentou a calmaria e a agitação do mar, até que por fim ancorou perto do porto clandestino de Prudente. Dentro do navio os piratas agitados com as armas em punho e os canhões carregados aguardavam a ordem de atacar. Quando a primeira bomba explodiu no terreiro, ninguém entendeu direito o que acontecia. Depois detonaram uma saraivada de tiros de canhão e o pessoal da Usina São Miguel entrou em pânico. Correram assustados e sem rumo para um lado e para o outro. A confusão reinava, não existia uma única alma disposta a enfrentar o colossal assalto. Todos tremiam de medo. Conceição despertou assustada, Prudente berrava sem saber ao certo como repelir o ataque, os negros corriam para a mata, e os seguranças em número menor também fugiam. Quando Prudente deu por si estava cercado pelos piratas. Invadiram a casa, aprisionaram os escravos e escravas que não escaparam. Dois piratas seguravam Conceição com força. Ela vinha praticamente arrastada e aos gritos, como se gritar adiantasse alguma coisa. Rapidamente dominaram a Usina São Miguel. Capítulo, 87. O trágico acontecimento, como uma sombra de mau agouro, encheu de tristeza o alegre Armazém São Manoel. Sem Valentim, Dasdores e Esmeralda o recinto não possuía o mesmo clima risonho de antes. O primeiro sempre simpático aceitava com ótimo humor as zombarias dos fregueses. As belas mulatas, não menos espirituosas, vez por outra apareciam para dar uma mão quando o movimento aumentava. Suas presenças divertidas, além de enfeitar, animavam ainda mais o ambiente agradável. Não só os assíduos freqüentadores notavam a mudança da atmosfera leve para pesada, como o próprio “seu” Manoel não se esforçava em amenizar o tom melancólico do lugar. Ao ser colhido de surpresa pelo episódio, não parava de pensar na razão de tamanha ingratidão de dois ex-escravos alforriados por ele e da escrava Esmeralda tratada com ternura. Alguns fregueses mais próximos tentavam consolá-lo: - Eles são mal-agradecidos de doer “seu” Manoel. Esqueça. A vida é curta e não compensa. - Sempre os tratei bem. Praticamente faziam parte da família. - Digo e repito, pra negro tem de dar pão, pano e pau. Não tem jeito, “seu” Manoel. - Também começo a pensar assim. Na verdade sua principal mágoa recaía sobre Valentim. Achava uma bobagem punir Esmeralda e Dasdores por causa de uma bagatela. Aliás, ao se aproximar do dia do castigo interveio discretamente a favor de ambas. As duas deveriam passar um curto tempo no Calabouço, mesmo assim sem serem torturadas. A opinião pública quase não as acusava, a revolta maior pesava nas costas do escurinho. “Seu” Manoel se sentia um ermitão. Além de a filha ter voltado para o marido, também perdera três companhias queridíssimas. A casa vazia significava a imagem viva da saudade e da solidão. Os mexeriqueiros de plantão, freqüentadores do armazém, não lhe davam trégua. Vira e mexe lhe faziam uma pergunta indiscreta ou um comentário mordaz. Como se tratava de freguês e eles têm sempre razão, “seu” Manoel absorvia as estocadas com calma. No entanto, não conseguia enganar seu coração. A terrível saudade de Esmeralda o deixava abobalhado, de alma entorpecida. Não imaginava que gostasse tanto da mulata. Somente agora, com a ausência dela, chegara a essa conclusão. “Ai, mulatinha como sinto falta de você”. Naquele dia de comércio fraco e muito calor, “seu” Manoel não via a hora de fechar o armazém e se recolher com sua amargura. Daria tudo para reencontrar Esmeralda, inclusive já se decidira: “Irei visitá-la no Calabouço. Ando pelo final da vida e dei sorte de encontrar um amor a essa altura dos acontecimentos. Não deixarei a minha Esmeralda presa indefinidamente por causa de umas insignificantes patacas. Dane-se. Irei soltá-la e trazê-la. Darei umas broncas nela, depois tudo ficará bem de novo. Não deixei machucá-la, não vou deixá-la presa nem por mais um segundo. Pros diabos os comentários. Afinal ela é minha escrava. Pra onde irá senão retornar pra casa?”. - Aonde vai “seu” Manoel? - No calabouço, soltar Esmeralda. - Já? É por isso que os negros não tomam emenda. - Cuide dos seus escravos. Dos meus cuido eu. - Em minha opinião... - Quem pediu sua opinião. Vá cuidar da sua vida. - Cruz! Comeu areia? - “Seu” Manoel está apaixonado. - Não é pra menos. Também com uma mulata daquela. - Até nós que somos mais bobos. “Seu” Manoel andava depressa, pretendia libertar Esmeralda rapidamente Não queria que a machucassem... “E se abusaram dela? Não posso nem imaginar. Arranjarei um tremendo buchicho. Ai de quem mexer com minha nega. Ah! Virarei a cidade de cabeça pra baixo. Vou criar uma baita confusão”. Mil hipóteses o perturbavam. Enquanto meditava acelerava o passo para chegar ao calabouço. Então o avistou. Sombrio, tenebroso, estático e cruel. - Como não está? - Não estão. Os três fugiram. - Fugiram?Vou reclamar com o Governador. Mandarei uma carta ao rei de Portugal de quem sou amigo. Vou... Vou... - Ora, “seu” Manoel esse não é o primeiro caso de fuga de preso. Vamos dar o alarme e capturá-los. Agora nos dê licença, por favor. “Seu” Manoel limitou-se a se pôr de lado e se sentar no banco encostado numa pilastra, perplexo, inconsolável, com o olhar perdido no horizonte: “E agora o que será de mim? Pra onde minha Esmeralda fugiu? Ai, meu Deus como sou infeliz”. Capítulo, 88. Na aldeia aimoré ouvia-se o ruído típico da floresta. Os pássaros gorjeavam, um bicho do mato rugia ao longe, os grilos e as cigarras sibilavam, os agitados macacos pulavam de galho em galho soltando grunhidos. Na maloca as mulheres teciam redes, alguns homens conversavam, umas crianças brincavam, outras choravam, enfim reinava tranqüilidade. Após a pescaria, Tupurapo se deitou numa pedra na beira do rio para pegar o sol brando de outono. Uma algazarra por causa da chegada de três ofegantes batedores o despertou. Levantou-se depressa e caminhou com serenidade até o centro da taba, onde um grupo de índios se aglomerava ao redor dos recém-vindos. Ao verem o famoso guerreiro, eles abriram alas e o deixaram passar. Tupurapo olhou-o atentamente, esperou-o se recompor e perguntou: - Terminou de respirar? - Sim.O que houve? - Intrusos. - Onde? - Mais ao sul. - Quantos? - Muitos. - E os outros guerreiros? - Ficaram para os acompanhar e não perdê-los de vista. Os invasores sabem andar na mata. São brancos com índios guaranis bem armados. - Eles os viram? - Não sei Tupurapo. - Acamparam há quantas luas daqui? - Duas, andando muito rápido, mas um grupo de guerra demora quatro luas, mais ou menos. - Então vamos nos preparar para partir. Dito isso se encontrou com Itaici, o puçanguara, para estabelecer a estratégia: - Pelo visto é uma coluna de guerra forte Tupurapo. - Não são invencíveis. Derrotamos os brancos antes e os venceremos de novo Itaici. Basta armar a emboscada com atenção e lutarmos com coragem. - Também acho. - Sua opinião é importante Itaici. O que dizem os espíritos. - Vou preparar o ritual para consultá-los. Por ora não há nenhum inconveniente. - De qualquer forma temos de buscar proteção nas entidades. - É o que farei Tupurapo. Como disse, até agora não há problema. - Sempre há problema na guerra. - Com certeza. Os imprevistos existem. Farei a consulta. - Então vá. Itaici retirou-se para averiguar os presságios. A tribo não partiria antes dele desvendar o futuro, de divulgar a predição e os perigos que cercavam o combate. Eram assim, corajosos, astutos, porém muito cuidadosos, principalmente com os rituais. Depois das rezas e transes Itaici e Tupurapo reuniram o conselho: - Os espíritos mostram o caminho livre. Podemos levantar acampamento e enfrentar os invasores. - Confio em você Itaici. Vamos embora, antes falarei com a tribo. - A seguir os chamou e disse: - Irmãos! Mais uma vez eles invadem nossa terra. O branco é uma gente insensata. Nada os satisfaz. Temos de guerrear contra eles novamente. Não devemos temer. O puçanguara já leu os augúrios, tudo nos favorece. A tática já foi combinada... Cada qual sabe exatamente como proceder. É preferível morrer do que fugir e deixar nosso chão para os invasores. Eles estão há poucas luas daqui. Vamos encontrá-los e expulsá-los. A resposta foi um colossal grito de apoio a Tupurapo, o Jaceguai, chefe de guerra dos aimorés. E, toda a tribo o acompanhou, sem medo, em direção ao campo de batalha. Capítulo, 89. Mesmo para um explorador experiente a floresta pode se tornar um labirinto, impenetrável, penoso, intrincado. Transpor os obstáculos naturais da selva requer perícia, conhecimento e determinação. Valentim e Dasdores embrenharam-se na mata sem ao menos ter noção de direção. Não conheciam os pontos cardeais, não conseguiam apontar nem o norte, nem o sul, nem o leste, nem o oeste. Caminhavam completamente perdidos há semanas, tropeçando aqui e ali. Sofriam desesperadamente com os ferimentos provocados pelos tombos e pelas picadas dos insetos. Andavam mortos de fome, porque não sabiam pescar ou caçar. Sentiam que não sobreviveriam àquele local agreste, misterioso. Provavelmente nunca encontrariam o quilombo de Aboubakar. Estavam desanimados e prestes a desistir da fuga: - Talvez Esmeralda tenha sido mais sensata do que nós Valentim. - Já estou começando a pensar assim também. Nasci na cidade, trabalhei no comércio como vendedor e nada sei sobre a mata. Estamos perdidos Dasdores. - Deveríamos ter ficado na casa de Sá Edite. Pelo menos tínhamos comida. Aqui passamos fome, sede, frio, calor. Tudo ao mesmo tempo. ...E esses malditos insetos. Não vamos resistir Valentim. - Até pra regressar está difícil. Não me lembro mais do caminho de volta. - Ai, meu Deus. Vamos apodrecer aqui. – Disse Dasdores em prantos. - Não chore Dasdores. Isso só vai complicar ainda mais nossa situação. Temos de manter a calma... - Calma? Estou faminta e com medo Valentim. ...E, esses malditos insetos. Como são vorazes! Vamos retornar ao Rio de Janeiro. Ainda dá tempo. Não estamos tão longe assim... - Eu não posso Dasdores. A minha situação é muito complicada. - Você fez aquilo com a sinhá? - Você roubou as patacas Dasdores? - É... Estou falando bobagem. Foi tudo armação dela. Por quê? - Vamos mudar de conversa. Temos de dar um jeito de sair daqui. Pra isso precisamos nos controlar. - Quero ir embora. Quero sair daqui... - Vai me deixar Dasdores? - O que posso fazer Valentim? Não quero morrer tão jovem. - Então vou lhe ajudar a chegar ao Rio. Depois peço um pouco de comida a Sá Edite e pego o caminho do litoral. Edite vai querer ficar com você. Quanto a mim, preciso fugir, se permanecer no Rio de Janeiro eles vão me aniquilar. - É verdade. Com extrema dificuldade e muita sorte, Valentim e Dasdores acharam um meio de pegar o rumo certo. Suspiraram aliviados ao chegarem na casa de Sá Edite. Bateram na porta e ela não os reconheceu imediatamente, tal o estado deplorável de ambos: - Por onde vocês dois andaram? - Enfrentar a mata virgem é complicado Sá Edite, nos perdemos e damos graças a Deus que conseguimos voltar. Estamos mortos de fome. - Entrem, entrem... Alguém poderá reconhecê-los. - Obrigado Sá Edite que Deus lhe dê em dobro. - Deixem de bobagem. Tomem um banho e peguem comida no fogão. Depois conversaremos. - Está bem. - Tomaram banho e se fartaram: - Ficarei aqui com a senhora Sá Edite. Sei que precisa de gente para ajudá-la. - Você é alforriada? - Nós dois somos donos do nosso nariz. Ficarei a troco de comida e dormida. Está bem? - Por hora está Dasdores. Depois conversaremos sobre isso. - E você Valentim? - Pegarei o litoral. Não posso ficar no Rio de Janeiro. Sou um homem marcado. - E a Esmeralda? - Ela não quis ir com a gente. Disse que ficaria. Não sabemos do paradeiro dela. - Descanse um pouco Valentim, pegue algum mantimento e depois parta. Acho melhor você fugir. - Obrigado Sá Edite. - Quanto a Dasdores poderá ficar. A gente dá um jeito na situação dela. Afinal, “seu” Manoel não é uma pessoa má. Após alguns dias, Valentim despediu-se e partiu. Tinha plena certeza de que não veria Dasdores outra vez, pois a relação entre eles terminara. Enveredou-se por uma trilha que desembocava no litoral e seguiu adiante. Levava no bolso uma linha com anzol, no ombro um punhado de mantimento e em seu coração a esperança de localizar o quilombo de Aboubakar. Desta feita, viajava com um pouco mais de experiência, apesar disso, o temor e a insegurança o acompanhava. Por falta de opção, precisava vencer esse desafio ou morrer tentando. Permanecer no Rio de Janeiro seria suicídio. Dasdores gostava de Valentim, mas não o suficiente para sacrificar a própria vida por ele, portanto se sentiu aliviada quando decidiu ficar. Escolheu a estabilidade. Ele foi-se embora, temendo o desconhecido. Não havia amanhã, não existia esperança, só o risco da nova empreitada e uma fé: “O destino é incerto. Ele pertence a Deus. Não importa onde fiquemos ou o que façamos, o futuro é sempre de Deus”. Capítulo, 90. Não se tratava de uma festa decente, e sim da própria insanidade promovida por gente desalmada que transformou a Usina São Miguel na capital do inferno. A balbúrdia começou cedo e prosseguia na noite, quase noite alta. Os piratas bêbados andavam de um lado para o outro, agarrados a uma mulher nua que passavam de mão em mão. Eles sorriam, ou gritavam, ou dormiam jogados num canto qualquer. Todos tinham algo em comum: A embriaguez e a luxúria. O Capitão Tom Hawkins mantinha Conceição ao seu lado, exibindo-a como um troféu, fruto do seu triunfo. As negras haviam sido estupradas ininterruptamente, Conceição também. Os negros assustados e sob a mira das armas nada podiam fazer salvo olhar com o coração partido as mulheres servirem a lascívia, a volúpia de indivíduos devassos. Durante todo o dia interrogaram Prudente: - Onde está a mina de diamante? - Não existe mina. Não há diamante. - Não? - Não. - Toda a Europa sabe da existência da mina. - Não existe mina. Quando morei em Angola comprei alguns diamantes e os vendi ao Capitão van Dorf. Não tenho mais, eles se acabaram. Negociei apenas um lote e nada mais. - Bata mais neste cachorro, depois o queime com ferro quente. Ele contará. - Não, não me torture mais. Existe um restinho. Entregarei a vocês. - Restinho? Onde está o restinho? - Guardado lá dentro. - Então vamos pegar o restolho. Depois você me contará onde está a mina. - Não existe mina de diamante aqui. Comprei esses em Angola. Já disse. Sobrou um pouco. Podem levar, mas não me torturem mais. - Arranque as unhas do desgraçado. - Não! Pelo amor de Deus, não! - Que Deus coisa nenhuma. Ferro quente no peito e faca na unha do miserável. - Não! Por favor. Não há mina de diamante por aqui. Só em Angola. Os piratas pegaram os diamantes. Continuaram torturando Prudente até que ele não suportou tanta dor e morreu: - Esse aí partiu para o inferno. - Não sabia que era tão mole. Nem começamos a trabalhar. - O Capitão não vai gostar. - Problema dele. Mandou torturar, então torturamos. Não temos culpa se o homem é frouxo. A partir daí supliciaram os escravos para descobrir onde se localizava a jazida. Tudo em vão os negros além de desconhecerem se mostravam perplexos. Alguns nem sabiam o que era diamante. Por fim os piratas concluíram: - Não há mina de diamante Capitão. O chefe daqui não agüentou e morreu. Caso houvesse, com certeza, ele diria. - E os negros? - Interrogamos um a um e ninguém sabe de nada. Os diamantes são esses. Tem um punhado aqui. Dará um bom dinheiro. Segundo o tal Prudente existe uma jazida em Angola. - Isso eu sei. Mas lá a conversa é diferente. Então, vamos deixar de lado. Abasteceremos o navio com água, frutas e mantimentos. Daqui a uns dias zarparemos. - O senhor é quem manda Capitão. - Havia necessidade de matá-lo? - Não queríamos. O tal usineiro não era de nada, não passava de um fracote, não agüentou o tranco. - É. Está feito. Abasteçam o navio. Capítulo, 91. Sentado no banquinho encostado na pilastra do calabouço, o solitário “seu” Manoel, parecia um enfermo, anêmico, sem força. Levantou-se com dificuldade e caminhou com passo lento, bem desanimado, como se fosse para o pavilhão de isolamento de doente crônico de um hospital e não como alguém que retornava a sua casa. A dor da separação o pegara de surpresa. Gostava de Esmeralda. Não ignorava esse fato, contudo não imaginava que estivesse completamente apaixonado pela mulata e tal paixão irresistível quase o levava a loucura. Chegou e ficou observando o casarão escuro, tão abandonado quanto ele. Subiu a escadinha, pisou na soleira, enfiou a chave na fechadura. Ao abrir a porta percebeu que uma pessoa se escondia no canto escuro da varanda. Olhou um tanto assustado e perguntou: - Quem está aí? - Sou eu, “seu” Manoel, a Esmeralda. - Esmeralda minha querida, por onde você andou? - Não furtei as patacas... - Eu sei... Eu sei... Isso não importa mais. Pra mim o importante é você estar aqui. - Sinhá Conceição me deu as patacas e depois falou que as furtei... - Esqueça as patacas Esmeralda. De que vale algumas patacas, comparado ao que sinto por você? Não vamos perder tempo falando de ninharia. Já lhe disse, o importante é você ter voltado. Sua volta enche meu coração de alegria. - É, mas não sou ladra. Sou uma pessoa honesta. Escrava e pobre, porém correta. “Seu” Manoel me conhece bem. - Conheço sim. Não me importarei com o frio metal. Ele não enche minha casa de felicidade. Não passarei os dias da minha vida contando moedas, mas solitário e triste nesta habitação vazia. Posso até encher uma casa com pataca, porém continuarei sozinho e cada vez mais só. O amor ao dinheiro afasta as pessoas, endurece nosso coração, até mata a ternura. Algumas patacas quase me fizeram perdê-la Esmeralda. Não vamos perder tempo com essa discussão. Venha, abrace-me, fique aqui comigo é isso que importa e não um monte de moeda escondida num canto qualquer longe da vista dos ladrões. Só o ser humano enche de vida o mais remoto deserto e não o dinheiro. Que bom que você voltou. - Ia embora com Valentim e Dasdores. Estava furiosa, envergonhada. No meio do caminho resolvi voltar. Não seria feliz longe do “Seu” Manoel. Aqui não me sinto uma escrava, porém mesmo que fuja, não importa onde esteja, sempre serei uma escrava. Voltei de saudade, voltei por amor e este amor me liberta, me acalenta. Gosto daqui “seu” Manoel. Aqui é meu lugar. - Que bom Esmeralda. Quem bom... - Só tem um detalhe. Não roubei as patacas... - Acredito em você. Certa feita Esmeralda armou uma tocaia para descobrir se Valentim e sinhá Conceição mantinham um romance às escondidas. Espreitou-os muito mais por curiosidade do que por traição. Ela e Dasdores desconfiavam dos dois, portanto decidiu investigá-los sozinha. De madrugada, viu-o sair do seu quarto na ponta dos pés e entrar no da sinhá. Após certo tempo, pôs o ouvido na porta. Escutou os corpos vibrando, os gemidos, os roncos loucos de volúpia e paixão. Ao desvendar o segredo sentiu medo e se calou. Não confiava em Dasdores, ela tinha a língua descontrolada, se soubesse do caso, certamente no dia seguinte a cidade do Rio de Janeiro não comentaria outra coisa, senão a aventura amorosa. Quando a sinhá se casou e partiu, Esmeralda testemunhou a tristeza consumir a alegria de Valentim. Ao vê-la retornar anteviu problemas no ar. Notou o ciúme e o ódio da mulher rejeitada estampados no rosto dela, então compreendeu perfeitamente o significado daquilo. A sinhá se vingaria, como efetivamente se vingou, Esmeralda só não conseguiu prever a extensão da mágoa e a proporção da retaliação. Agora, nada importava mais, importava apenas que voltou, que se acertou com “seu” Manoel, e estava feliz, e em paz com seu coração.
Posted on: Fri, 15 Nov 2013 02:29:16 +0000

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