A LOIRA E O TIO NALDO Minha avó materna, dona Adelaide, era - TopicsExpress



          

A LOIRA E O TIO NALDO Minha avó materna, dona Adelaide, era uma contadora nata de histórias macabras com fundo religioso. Contava com tal convicção que o ouvinte nunca sabia se era coisa verdadeira ou fábula da velha. Era tão convincente que, em algumas ocasiões, o poder de convencimento era tal que “estórias fabulosas” se transformavam em “histórias verdadeiras” tal o tom sinistro e assustador da narrativa. Para crianças, como eu, tinham um poder avassalador: ao mesmo tempo, quanto mais eu não queria ouvir, de assombro, de medo, mais eu queria ouvir à medida em que a trama se desenrolava, tal a eloquência e a veemência com que vó Delaide impregnava a narração. Certa vez minha avó contou um episódio que, na época, para criança, pareceu dantesco, mas, passada a inocência da infância, se modificou em conto burlesco. Dizia vó Delaide que tio Naldo, filho mais novo dela, jornalista, poeta, moço bonito tipo galã de cinema, mulherengo, boêmio, sujeito ímpio, herege da doutrina cristã/católica, incrédulo sobre a existência das “almas” a quem minha avó professava sua crença para proteção dos filhos e parentes, certa noite, voltando do jornal para casa, passageiro do bonde da Vila Nova, bairro onde moravam, avistou andando pela calçada, à frente do bonde, uma mulher de corpo escultural, com longos e lisos cabelos loiros a deslizar pelas costas sinuosas. Tio Naldo não perdeu tempo. Pediu para o motorneiro parar logo a seguir, na esquina das ruas Buarque de Macedo com Carolina Florence, na Vila Nova. Desceu do bonde e começou a andar mais rápido para tentar alcançar a loira que caminhava à sua frente e para abordá-la, quem sabe convidá-la para um drink no bar do Aníbal, que ficava na esquina da Rua Carolina Florence com a Rua Pedro Anderson, na Vila Nova, e, de lá, talvez, para a cama, caso a cantada vingasse. A loira ia à frente do tio Naldo, rebolando aquele traseiro polpudo, mais parecendo um travesseiro da NASA, aquele que ao deitar abraça e molda a cabeça. Os cabelos loiros batendo nas costas davam aquela impressão de espaldar ainda mais os quadris da fêmea. À medida que apressava o passo, mais aumentava o desejo do tio Naldo. Tio Naldo, pegador, especialista na arte da sedução, boêmio convicto e assíduo frequentador dos lupanares da noite, seguia a loira com sofreguidão e cautela. Alcançou-a um quarteirão antes do bar do Aníbal. Emparelhou-se a ela, tocou-lhe o ombro e disse: - Moça! Posso .... Não terminou o pedido. Ato contínuo a loira virou-se e, para espanto e terror do tio Naldo, surgiu no meio da penumbra da noite iluminada por fracas luzes de energia elétrica, um rosto esquelético, quase uma caveira que, ao ver o susto do abordador, soltou uma sonora gargalhada, estridente, aterrorizante. Tio Naldo não pestanejou. Saiu correndo pela calçada por um quarteirão, até alcançar o bar do Aníbal. Ao vê-lo entrar, branco como neve, lívido, os gatos pardos da noite, companheiros de copo, os irmãos da opa do tio Naldo, estranharam: - O que aconteceu? Fala Nardo! Fala! O que foi? Tio Naldo só conseguiu dizer: - Fecha as portas! Corre! E eu vi uma assombração. Tá vindo pra cá pela calçada. É uma alma penada e tá vindo pra cá em forma de uma loira. Os chapados sararam na hora (tio Naldo tinha credibilidade). Marmanjões encharcados de álcool derrubaram cadeiras, deslocaram mesas, derrubaram garrafas e copos ao chão, no atropelo para descer as portas do bar antes de a assombração loira alcançar o recinto. Ali ficaram sitiados no boteco-cativeiro de portas cerradas. Enquanto esperavam o tempo – e a loira assombração - passar, continuaram a beber ouvindo o tio Naldo contar a peripécia e a surpresa desagradável. Aquela foi uma longa noite. Por fim, quando o dia amanhecia, tomaram coragem e abriram as portas do bar. Nada havia. Foram todos pra casa, dormir e depois curtir a ressaca, da visagem do tio Naldo, bem entendido. Ao chegar a casa, tio Naldo narrou o acontecido pra mãe, vó Delaide, que não perdeu a oportunidade pra tripudiar sobre a descrença do filho nas orações que fazia pras almas: - Tá vendo! Isso é pra você parar de ficar se engraçando com tudo o que é rabo de saia! Isso foi um aviso. O único problema é que você interpretou errado o recado: em vez de vir correndo pra casa, entrou no bar e ficou lá bebendo a noite toda. Da próxima vez vai ser um tropel de boêmios saindo em leque daquele bar, se borrando nas calças, porque ela vai entrar lá e apavorar todo mundo. Tio Naldo, extenuado pela epopeia assombrosa, não disse palavra. Foi pro quarto dormir. A partir de então, minha avó, com a perspicácia e a malícia que só uma avó fabulosa pode ter, usava essa estória/história para alertar os netos e crianças da vizinhança: - Cuidado quando ficam à noite na rua, fazendo algazarra e conversando debaixo do poste de luz, porque, a qualquer momento, pode surgir uma alma do outro mundo disfarçada de gente pra assustar vocês. A verdade, talvez, é que, provavelmente, a tal loira fosse boa de corpo por trás e uma loja de ferro-velho no rosto. Mas, pra vó Delaide não importava o fato em si, mas sim a versão a ser contada sobre ele. Uma fábula é como uma lenda. Não se pode dizer que é verdade, mas também não se pode afirmar que é mentira. História verdadeira? Fábula? Não importa. Pra vó Delaide o que importava era convencer. E para as crianças, como eu, ela era muito convincente! A partir de então, por via das dúvidas, toda vez que estávamos à noite na rua, mantínhamos em revezamento um plantão: por algum tempo, um de nós ficava numa esquina e outro na outra. Vai saber. Vai que de repente a velha tivesse razão.
Posted on: Mon, 11 Nov 2013 17:18:36 +0000

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