A URNA Nunca pensei que pudesse acontecer comigo. A verdade é que - TopicsExpress



          

A URNA Nunca pensei que pudesse acontecer comigo. A verdade é que todos acham que situações infaustas só acontecem com os outros. Mas no meu caso não foi aparição, nem assombração. Nem mesmo criaturas fantasmagóricas me rodeando. A coisa morava ali. Eu era a invasora. Gosto muito de objetos antigos, carregados de impressões. Louças, quadros, espelhos cheios de histórias. Não é atoa que vim parar aqui neste lugar. O Rio de Janeiro antigo, ilustrado por construções histórias. Belíssimas arquiteturas dos séculos XVIII e XIX. Igrejas repletas de acontecimentos passados. Cemitérios e fantasmas. Sim, era o que eu procurava. Sussurros, passos pesados, lustres balançando, ranger de portas, vento frio, vozes. Aqui encontrei prédios imponentes e sinistros. Vim estudá-los para um projeto de arquitetura. Em minha lista de visitas estava o Hospital Frei Antônio, em São Cristóvão, que no tempo antigo era chamado Hospital dos Lázaros, lugar que servia como asilamento de leprosos. Ainda guarda relíquias centenárias e incontáveis contos bizarros que não me atrevo a revelar. Sendo fã do terror não poderia deixar de ir ao cemitério São Francisco Xavier, no Caju, e conhecer as sepulturas perpétuas daquela necrópole de respeito. E também passar pelo Arco do Teles na Praça XV, guardando um pedacinho do passado no coração e nas fotografias. Quem sabe até capturar em uma das imagens um fantasma, um daqueles que andam pelas vielas do Arco pela madrugada. Aluguei um quarto em um sobrado vermelho na Rua Mem de Sá, no centro do Rio de Janeiro para passar alguns dias durante meus estudos. Este sobrado de estilo eclético data de longo tempo, mas nada comparado àquela admirável casa. A vi quando passeava pelas ladeiras sinuosas e estreitas de Santa Teresa, um autêntico e lendário bairro carioca. A bela casa, grande e luxuosa, tinha dois andares, telhado de duas águas, varandas, detalhes neoclássicos e rodeada por jardins mortos. Apesar de seu aspecto grandioso a casa estava abandonada, quase em ruínas. Sua beleza decadente atraiu meus olhares e uma placa de aluga-se me deu uma ideia. Anotei o número do telefone para ligar mais tarde contando uma pequena mentira, que eu queria alugar. Liguei para o tal número durante todo o dia e ninguém atendeu. Voltei lá à noitinha e me sentei em um bar. Conheci Valdir. Ele trabalhou como cozinheiro na casa nos tempos em que funcionava como albergue e me contou tudo o que eu queria saber com muita gentileza. O casarão estava abandonado há pelo menos dez anos. Os quartos eram alugados para turistas. Em uma determinada época, um casal de estrangeiros passou uma noite por lá e logo de manhã se foram, deixando para trás alguns objetos e nenhuma notícia. No dia seguinte da ida deles, coisas estranhas aconteceram. Rápidas demais para o entendimento das pessoas. Três hóspedes morreram estranhamente. Os outros que estavam hospedados davam desculpas para irem embora antes do prazo, abatidos e com medo. A semana se seguiu com sentimento de inquietação. Quem permaneceu, aos poucos perdia a saúde. Os jardins da casa ficaram opacos, murchos, sem cor, sem cheiro. As árvores perderam as folhas. Os passarinhos não cantavam mais. A energia da casa se transformava. Parecia que alguma coisa estava sugando o fluido vital e a seiva do lugar e das pessoas que entravam ali. Os donos adoeceram e tiveram que ser internados, suas duas filhas também se abateram, mas continuaram na casa. Os cozinheiros e arrumadeiros foram embora mortificados e fracos. O gerente tentava uma investigação sem sucesso. Seu Valdir contou que não era só a energia que mudava. Sombras flutuavam pelas paredes e tetos do casarão. Durante uma semana seu Valdir, o gerente e as duas meninas presenciaram a queda da majestosa construção. Os dois andares foram minuciosamente examinados, também por peritos da polícia, devido às mortes. Os acontecimentos eram incompreensíveis e inusitados. As quatro pessoas passaram por momentos de tensão inimagináveis nos dois últimos dias em que estiveram na casa. Vez ou outra uma sombra atravessava as paredes os observando. Eles chegaram perto do limite entre a loucura e a sanidade. Era impossível dormir. Seu Valdir revelou que eles ouviam ruídos vindos do segundo andar, do quarto onde estavam o casal de estrangeiros. Passos e gritos dentro do quarto. Pela casa apenas as sombras e uma delas muito escura, observava. As duas meninas estavam com sinais visíveis de desidratação e fraqueza. Seu Valdir e o gerente resolveram fechar os portões, foram embora sem olhar para trás. Depois que eu soube desta história fiquei mais curiosa para conhecer o interior do casarão mal assombrado. Já que estava abandonado há dez anos eu conseguiria entrar sem problemas. E foi o que eu fiz. De manhã bem cedinho fui para minha aventura levando comigo a máquina fotográfica. O portão estava apenas encostado, entrei com cuidado para não ser vista. Caminhei ao redor da casa, fotografando o que deveria ser um jardim. As árvores estavam secas. Examinando bem, não tinha vida ali, nenhum bichinho, isso era mesmo estranho. Senti um arrepio. Fiquei incomodada. A porta da frente estava trancada, a dos fundos estava com a maçaneta quebrada, consegui entrar. Perturbei-me com o clima da casa, estava mesmo pesado. Mas sem dúvida era muito linda. Fotografei os detalhes da arquitetura e decoração. As tábuas corridas do chão faziam barulho conforme eu caminhava. Isso era mesmo assustador. E mais que assustador era a sensação de ver sombras passando por mim. Tentei relaxar e fui para o segundo andar. Afinal era a experiência que eu queria. Subi as escadas receosa, me segurando firme no corrimão. Tremia não sei se de medo ou por falta de energia. Não quis percorrer todo o segundo andar, alguma coisa parecia estar ali me observando e me ameaçando. Um dos quartos estava fechado. Encostei-me na porta, não ouvi nada. Tomei coragem e abri. Nada parecia fora de ordem. Alguns objetos pessoais, a cama desfeita, nenhum sinal de fantasma. Em cima da cômoda um vaso de cerâmica decorado me chamou atenção. Era uma pequena urna funerária Marajoara. Encantei-me com aquele objeto esquecido ali. Tirei algumas fotos, não resisti, levei-o comigo. Ao sair do quarto pensei ter visto sombras me acompanhando. Arrepios. Precisava ir embora. Isso foi sem dúvidas uma experiência inesquecível e apavorante, que valeu muito a pena. Em minha bolsa estava uma extraordinária obra de arte milenar. Chegando ao sobradinho analisei-a atentamente. A urna era de forma curvilínea perfeitamente moldada, decorada e pintada delicadamente. Tinha desenhos de serpentes e de figuras humanas. Ótimo acabamento. Deixei-a em cima da mesa e me deitei. Estava muito cansada, ofegante, só queria dormir. Havia anseios de agitação e desassossego no ar. Então tive uma visão inconcebível de horror. Uma sombra muito escura com olhos brilhantes veio para cima de mim, apenas me olhava. Desfez-se em fumaça e sumiu. Eu não conseguia mais me mexer, sem forças, sem vontade e aterrorizada. Dormi. Não sei quanto tempo depois me acordei. Tentei levantar da cama. Vi passar sombras pelas paredes. Vi minha própria sombra se afastar. Ao me olhar na cama, eu era apenas uma casca seca sem vida. E o sobrado vermelho abandonado em ruínas.
Posted on: Tue, 02 Jul 2013 23:57:30 +0000

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