A divergência jurisprudencial (ou Melkor, a voz dissonante) Na - TopicsExpress



          

A divergência jurisprudencial (ou Melkor, a voz dissonante) Na semana passada, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento de que a ação rescisória é cabível não apenas na hipótese de a decisão ser contrária à lei (dentre outras hipóteses), mas também no caso de ser contrária à jurisprudência pacificada do próprio Superior Tribunal (REsp 1163267/RS, j. 19/9/13). O Relator, Ministro Luis Felipe Salomão, aproveitou ainda o ensejo para salientar o seguinte: “De fato, a dispersão jurisprudencial deve ser preocupação de todos e, exatamente por isso, tenho afirmado que, se a divergência de índole doutrinária é saudável e constitui importante combustível ao aprimoramento da ciência jurídica, o dissídio jurisprudencial é absolutamente indesejável.” Ora, é certo que o nosso sistema jurídico se ressente de decisões teratológicas e absurdas, insustentáveis a partir de uma interpretação sistemática do conjunto normativo. Todavia, acrescer ao nível de norma a jurisprudência “pacificada” e ainda mostrar desconforto com decisões dissonantes, pra mim já foi demais. Não sei o porquê, mas acabei me lembrando do solitário Melkor, personagem do conto “Ainulindalë”, do Tolkien. Para quem não sabe, Melkor era um dos Aiunur, seres angelicais que surgiram do pensamento de Eru Ilúvatar, o criador onipotente. Em síntese, cada Aiunur conseguia cantar apenas de uma forma específica o que gerava uma natural desarmonia quando tentavam cantar em coro. Todavia, à medida que passaram a cantar juntos, progressivamente tornaram-se harmônicos. Eru, achando aquilo bom, então lhes propôs um tema para cantar. Todavia, o Aiunur mais poderoso, Melkor, quis criar uma música própria. E aí começou reacendeu-se a desarmonia. Notando a divergência de Melkor, Eru propôs um novo tema, mas Melkor novamente o desafiou. Eru então propôs um terceiro tema (os filhos de Eru), mas, outra vez, Melkor o confrontou. Então, meio que chateado daquilo, Eru fez cessar completamente a música. Todavia, a pouco música entoada foi suficiente para criar o mundo, os elfos e os seres humanos. O ponto interessante deste conto é que, mesmo as notas dissonantes de Melkor foram aproveitadas na criação deste mundo. E seria este mundo que nós vivemos hoje, com pessoas diferentes, realidades distintas e desigualdades sociais e políticas. Queiramos ou não, assim é a realidade: a divergência, a diferença, é pra nós tão natural quanto o próprio cotidiano. Já disse alguém que só encontramos apoio naquilo que oferece resistência. E que somente nos tornamos pessoas melhores no confronto de nossa personalidade com a do outro. Por isso, me causa estranheza a posição do Ministro Relator ao adjetivar posições contrárias como “recalcitrância judiciária”, “vaidade judiciária” ou – minha preferida, “rebeldia judiciária”. E, preocupa-me ainda mais o “absolutamente indesejável”, ao final. Primeiro porque a divergências, sejam doutrinárias ou jurisprudenciais, ao contrário do que foi dito, são salutares, vez que mantém arejada a mutação dos institutos jurídicos. Exigir que tais mutações sejam apenas boas, e nunca ruins, passa muito mais pelo conceito destes extremos do que pela apreciação do mérito da mudança. Enquanto alguns consideram determinada alteração de entendimento uma evolução, outros podem considerá-la uma involução. Segundo, e ato contínuo, a evolução da compreensão de um determinado instituto não surge apenas em nossas cortes superiores, mas está muito mais propensa a surgir no juízo de primeiro grau, que vive a realidade brasileira de forma mais imediata e é mais hesitante em importar modelos alienígenas para solucionar uma determinada lide. Com efeito, a mais sólida (e genuína) mudança vem das bases, do interior, e não do alto. Terceiro, porque mesmo as cortes superiores têm suas divergências de entendimento, com suas idas e vindas doutrinárias. Cito um exemplo recente do Supremo Tribunal Federal. Na Ação Penal 470/MG o STF entendeu que “quando a perda do mandato parlamentar for decretada pelo Poder Judiciário, como um dos efeitos da condenação criminal transitada em julgado, ao Poder Legislativo cabe, apenas, dar fiel execução à decisão da Justiça e declarar a perda do mandato, na forma preconizada na decisão jurisdicional. Consequentemente, não cabe ao Poder Legislativo outra conduta senão a declaração da extinção do mandato” (j. 13/12/12). Já na Ação Penal 565/RO, cuja apreciação ocorreu sob nova configuração da Corte, menos de um ano depois, entendeu-se que a condenação criminal transitada em julgado não é suficiente, por si só, para acarretar a perda do mandato eletivo do parlamentar. Decidiu-se que, com o trânsito em julgado da condenação, o STF deve oficiar à mesa diretiva da respectiva casa legislativa, para que delibere sobre a perda do mandato (j. 8/8/2013). Por sinal, pergunto incidentalmente, isso se trata de uma evolução? Bom , já no Superior Tribunal de Justiça existem numerosos casos de divergência entre as Turmas. Uma delas, por exemplo, é sobre a possibilidade de imposição de prestação de serviços ou prestação pecuniária como condição especial para concessão do sursis: enquanto a 5ª Turma entende ser cabível a imposição (HC 225166 / BA, j. 15/08/2013), no dia seguinte a 6ª Turma entende que não é cabível (AgRg no REsp 1359892 / RJ, j. 16/05/2013). Outro exemplo é sobre a prisão domiciliar. A 5ª Turma do STJ entende que a superlotação carcerária e a precariedade das condições da casa de albergado não são justificativas suficientes para autorizar o deferimento da prisão domiciliar (HC 240715/RS, j. 23/04/2013). Já a 6ª Turma do mesmo tribunal entende que a ineficiência do Estado em assegurar instituições em condições adequadas ao cumprimento de pena em regime aberto autoriza a concessão da prisão domiciliar (RHC 37854/ES, j. 15/08/2013). Desta forma, acho inadequado afirmar-se que “o dissídio jurisprudencial é absolutamente indesejável”, sob pena de, ao exemplo de Anu, acabarmos com a música e simplesmente sustarmos os novéis entendimentos – que poderão ser benéficos ou não – advindos dos juízos de primeiro grau e dos Tribunais estaduais e regionais. Ao contrário, deixemos a música tocar, com suas notas consoantes e dissonantes, e criar o mundo, mesmo que seja contra nosso particular e limitado entendimento que, afinal, pode não ser o melhor...
Posted on: Tue, 01 Oct 2013 18:57:57 +0000

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