A sensação de que era observado atormentava-o... desde há uns - TopicsExpress



          

A sensação de que era observado atormentava-o... desde há uns dias que sentia que olhos atentos seguiam cada um dos seus gestos. Desde que tinha entrado em um reality show na TV que sentia isso... mesmo ao descer as escadas do prédio antigo junto ao Rossio sentia que era observado. "Vazia"... mais uma vez a caixa do correio estava vazia. Tinha entrado com a esperança de vir a ter propostas de trabalho e boas oportunidades de futuro. De início gostava de sentir o apoio do público, de ver como repetiam as suas frases, como lhe davam palmadinhas nas costas e adorava ver o sorriso das pessoas ao trocarem com ele breves palavras sobre o tempo... era como ter feito milhares de amigos de um dia para o outro. Só ao fim de umas semanas é que notou as diferenças. A pastelaria onde todos os dias bebia o seu café e comia (quando havia) o seu queque de amora tinha agora na vitrine espelhada toda uma fila de queques de amora. O seu café, que exigia grande e em uma caneca cinzenta, era agora habitante regular em todas as mesas que agora, raramente, estavam vazias. De início não percebeu, pensou que simplesmente as pessoas tinham descoberto as delícias dos queques de amora e a eficácia de um bom e forte café... depois percebeu que o faziam por ele o fazer e encheu-se de orgulho por ser visto como um modelo... depois percebeu, e tremeu e sentiu de novo os olhos que teimava em sentir nas costas a cado passo que dava, que faziam o que ele fazia, comiam o que ele comia, analisavam cada um dos seus gestos e hábitos... e tremeu de novo. Filho de um contabilista e de uma advogada, não estava preparado, na sua vida pacata, para ser agora modelo ou exemplo... a pressão crescia e o medo de desiludir os fãs cresceu dentro dele... o medo de não estar à altura das expectativas... "Vazia" de novo... a caixa do correio teimava em estar vazia, Pedro sabia que o mais certo era a mensagem chegar por email e não por correio regular, mas todos os dias seguia a sua rotina: acordar, ver o email, tomar duche, ver o email, sair de casa e ir ver a caixa do correio e beber o seu café e comer o seu queque de amora, voltar para casa e ficar sentado em frente ao computador à espera que a mensagem chegasse. Uma boa proposta teimava em não vir e tudo parecia agora fazer confusão a Pedro... até o Sr. Inácio, a quem comprava os jornais diários, o começava a irritar... a forma como lhe pedia que dissesse todos os dias a sua "frase" antes de lhe dar o troco... Pedro não entendia como ele começava a rir mesmo antes dele dizer "bolas cachimbo" como se esta fosse mudar o seu dia... mesmo quando o dizia como quem confirma no dentista que vai arrancar um dente... Naquele dia, como todos os dias, Pedro entrou na pastelaria e ficou a olhar, por minutos, para a fila imensa de queques de amora... a vitrine espelhada que outrora albergava um único queque de amora agora tinha uma fila infindável deles... nem ouviu a empregada que repetia em tom cada vez mais alto se queria o costume... ficou a olhar, apático, sem reacção... só quando a viu ir já com a pinça para tirar o queque de amoras que teimava em multiplicar-se é que disse (pelo silêncio que se seguiu mais deve ter gritado) que não... que não queria o costume... olhou pela vitrine espelhada que agora mais parecia um mar de pintinhas pretas... lá ao fundo, com ar de já nem ser do próprio dia, estava sozinho, isolado, um queque alaranjado e com ar sofrido... "Quero aquele" disse Pedro com um sorriso no rosto como há muito não sentia... os olhos cravaram-se na face cada vez mais pálida e magra de Pedro, o sorriso teimava em não desaparecer dos seus lábios secos e gretados pelo vento que entrava pela janela nas noites em que não dormia e ficava sentado apenas o olhar a rua e quem nela passava... a necessidade de agora ficar simplesmente a ver a vida passar imperava... sentia necessidade de entender quem o tinha observado a ele e agora se achava no direito de opinar, comandar, pressionar a sua existência... por algumas vezes disse em voz baixa, que nem ele ouvia, para a senhora que passeava o cão todas as manhãs que o levasse antes ao outro lado da rua onde as árvores eram mais e os canteiros floridos... já conhecia sem ver o andar da vizinha dos 2ª direito e da D. Amélia do rés do chão... já sabia que o vizinho de frente acendia a televisão logo pela manhã só para ter o som como companhia... tentava nesta observação sistemática compreender os sentimentos de quem o via a ele, de quem o conhecia melhor que ele próprio... "O de cenoura?" Perguntou a empregada a medo como se estivesse a violar uma regra sagrada... "sim, o de cenoura"... Pedro nem gostava de cenoura, nem crua nem cozida nem de maneira nenhuma mas o sentimento de pela primeira vez em meses ser ele a decidir o que queria fez com que o sorriso se mantivesse inalterável... O Sr. barbudo que estava sentado com duas crianças olhou-o de cima a baixo, com ar reprovador... "Já não és o mesmo, mudaste, a fama subiu-te à cabeça"... Pedro ficou sem reacção... teria ele de ser sempre o mesmo para sempre? Teria ele de ver a vida dos outros mudar consoante a sua vontade e desejo e a dele devia permanecer, imutável, parada, resignada para agradar a outros? Percorreu a calçada que o levava a casa de olhos baixos, pregados nas pedras do caminho... não lhe saiam da cabeça as palavras reprovadoras e os olhares críticos... a maneira como o condenavam e criticavam por querer ser gente, por querer decidir a sua vida... Sentou-se em casa junto à janela e viu o mundo passar através do vidro. A chuva começou a cair, primeiro a medo e depois violentamente como se o céu sentisse compaixão de Pedro... ao ritmo da chuva as lágrimas teimavam em deslizar pelo rosto e Pedro desejou voltar atrás... voltar ao tempo em que era apenas o Pedro que saía com os amigos, que estudava, que teve o seu primeiro trabalho como estafeta para pagar a faculdade... o Pedro que se divertia, que vivia, que tinha liberdade de ser gente... "Vazia" a caixa do correio continuava vazia, as oportunidades, as ofertas, o futuro melhor que esperava demorava a vir... Os dias passavam lentamente e o mundo lá fora continuava a correr, pela janela Pedro via o mundo passar e tinha medo de ser livre, tinha medo de ser julgado, tinha medo de ser criticado... Mais uma noite sem dormir... os amigos bem que tentavam que Pedro saísse com eles e seguisse a sua vida mas continuava a sentir os olhos cravados na nuca... os olhares feriam cravados em cada parte do seu corpo... Pedro sabia que tinha de fazer algo, ou lutava e vivia a sua vida ou iria viver escravo para sempre da idealização que tinham feito dele. Como seria Pedro se não mudasse? Aos 6 anos Pedro tinha um imenso medo do mar, a culpa era do pai que lhe tinha mostrado todos os filmes de "O Tubarão" do Spilberg... durante anos Pedro ia à praia e molhava apenas as pontas dos dedos... foi só no dia em que o pai lhe comprou uns óculos para ver o fundo do mar que Pedro ganhou coragem... pensou que o seu medo dos tubarões o impediam de ver as belezas que o mar esconde e mergulhou... O Pedro tinha mudado, a vida tinha-o mudado, as experiências tinham-no mudado e ele sentia necessidade de mudar... de ser o mesmo Pedro de sempre mas marcado pelas novas experiências, pelas novas descobertas... Pedro saiu de casa e nem parou na caixa do correio... passou pela pastelaria de sempre e seguiu em frente... entrou na pastelaria pequena que ficava na curva da livraria e sentou-se numa mesinha pequena de ferro forjado... pediu um queque de amora (porque o Pedro gostava de queques se amora e tinha decidido que agora só fazia o que queria e lhe dava prazer) e bebeu o seu café... passou a tarde no jardim a ler um livro de receitas, porque o novo Pedro queria aprender a cozinhar... ao fim do dia regressou a casa cheio de sacos de compras com sabores novos que queria experimentar... "Vazia" de novo a caixa do correio mas nem isso importava agora... Pedro tinha ganho algo mais importante... tinha-se ganho a ele de volta... e sabia agora o que queria ser... queria ser Ele! AC
Posted on: Fri, 23 Aug 2013 10:31:11 +0000

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