A sopa não era de cenoura. Estava a ser por isso difícil. O pão - TopicsExpress



          

A sopa não era de cenoura. Estava a ser por isso difícil. O pão - que, como o avô que não conheceu, é imprescindível para ele - era o refúgio da fome para ver se enganava o tempo e eu de cansaço lhe dizia comes o bife, deixa lá a sopa hoje, coisa improvável. Mas, numa trinca mais forte, o dente da frente começou a sangrar. Estava a abanar há semanas mas nunca pensamos que saísse por si só - a mãe teve de tirar todos os dentes de leite e ele já tirará três. Estava surpreendentemente por um fio, numa boca ensanguentada pelo choro e o pânico da dor. Agarra-se à pila quando sofre, note-se. Não sei porquê, mas talvez em vez de Freud seja Darwin a explicar. Fomos à casa de banho, o pânico do pai era maior que o do filho. A Ana, impávida e serena, como se fosse normal a criança andar agarrada à pila pela casa. E era. Ligámos à dentista que nos disse que se deveria tirar, colocar gelo primeiro com uma compressa para anestesiar e depois rodar. Eu chamei-o à cozinha para lhe explicar que o gelo anestesia, colocando um pouco no seu braço e confirmando in loco a hipótese quando lhe pedi para apertar a pele e ver se doía - não dói, pois não, Gui? Não. Isto de ser de ciências dá nisto - experimentar e explicar tudo, a razão é a minha fé. Entretanto a dentista tinha falado num gelado e eu sabia que a paz chegaria pela gulosice. Já estava mais calmo - ele, não eu... - a ver bonecos no quarto. Fui lá perguntar se queria um calipo. Disse que sim, que entre a sopa que não era de cenoura e o calipo de morango a escolha não se afigurava difícil. A mãe achava melhor comer-mos primeiro, os bifes estavam a ficar frios que a crise instalara-se terminava ela de os fritar e a paz e serenidade de uma mãe é muita sapiência junta. Mas não consegui. Vesti por cima do pijama um fato de treino e fui em busca do Santo Graal da Olá. Na estação do Oriente parecia só haver da Nestlé e a dúvida era enorme - levo este no risco de ele o não querer ou procuro mais? Mas o discernimento voltou e consegui ver a meio metro os da Olá. Sempre lá estiveram, mas eu estava tolhido pelo dente pendurado. Encontrei o cálice e voltei num ápice. Era, portanto, altura. Começou por comer o gelado enquanto jantávamos. A Ana preocupava-se com os facto de os bifes estarem frios. As mães são as mais altas coisas que os filhos criam porque sabem da relativa gravidade das coisas - os pais não. Por isso são elas as mães, aquelas que o Eugénio tão bem celebrou. Somos apêndices, nós. No fim do bife sentou-se no seu colo na poltrona da sala. Chorava e agarrava-se à pila. A Ana a certa altura pediu para lhe segurar o outro braço. Ele chorava de expectativa e eu tinha de o prender. Nunca uma coisa me custou tanto. A Ana, impávida e serena, rodou o dente e ele saiu. Ele chorou com a descarga de adrenalina. A compressa na boca para estancar o sangue e eu mais calmo e bater palmas orgulhoso do meu filho que finalmente largara a pila. Ou então a bater palmas ao pai por se ter portado bem. Quando - e lembrei o avô que ele não conheceu, de tão igual a este pai - foi a mãe o tronco que segurou a crise. Este abanava com o vento. Fui passado uns minutos tirar a compressa. O dente esperava agora a fada. Que chegou de noite, deixando as mesmas moedas que há dias tirámos do seu mealheiro por ter conseguido juntar o dinheiro necessário para o que queria comprar. Acordou agora. Já ouvi as moedas voltarem ao sítio delas. A pila está descansada, ouvem-se os bonecos na televisão, vou preparar-lhe o pequeno almoço de todos os dias. Tudo voltou à normalidade e ele conseguiu não comer a sopa, claro.
Posted on: Tue, 01 Oct 2013 07:03:46 +0000

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