«A verdade definitiva é sempre, no fim das contas, uma - TopicsExpress



          

«A verdade definitiva é sempre, no fim das contas, uma falsidade. Quem consegue provar que tem razão revela que antes era errado e pernicioso. Mas quem provará que tem razão? Só se saberá mais tarde. Enquanto isso, somos forçados a agir a crédito e a vender a alma ao diabo, na esperança da absolvição da história. Dizem que o N.º 1 conserva O príncipe, de Maquiavel, permanentemente à sua cabeceira. Tem de fazer assim: desde Maquiavel, nada de realmente importante se disse a respeito das regras da ética política. Fomos os primeiros a substituir a ética liberal do ‘jogo limpo’ do século XIX pela ética revolucionária do século XX. Nisso também estávamos certos: uma revolução dirigida segundo as regras do críquete é um absurdo. A política pode ser relativamente limpa nos espaços em que a história toma fôlego; nas curvas críticas não há outra regra possível além da velha: o fim justifica os meios. Introduzimos o neomaquiavelismo neste país; os outros, as ditaduras contra-revolucionárias, nos imitaram canhestramente. Fomos neomaquiavélicos em nome da razão universal – essa foi a nossa grandeza: os outros, em nome do romantismo nacional, que é o seu anacronismo. Eis por que no fim seremos absolvidos pela história: mas eles, não... Contudo, no momento, estamos pensando e agindo a crédito. Como lançamos ao mar todas as convenções e regras da moralidade tipo críquete, o nosso único princípio diretor é o da lógica conseqüente. Encontramo-nos sob a terrível compulsão que nos leva a aprofundar o nosso pensamento até sua conseqüência final e a agir de acordo com ele. Navegamos sem lastro; portanto, qualquer toque no leme é uma questão de vida ou de morte. Pouco tempo atrás, o nosso principal agrônomo, B., foi executado com trinta de seus colaboradores porque sustentava a opinião de que o adubo artificial de nitrato era superior ao carbonato de potássio. O N.º 1 é inteiramente pró carbonato de potássio; portanto B. e os outros tinham de ser liquidados como sabotadores. Numa agricultura centralizada nacionalmente, a alternativa nitrato ou carbonato é de enorme importância; pode decidir o desfecho da próxima guerra. Se o N.º 1 estava com a razão, a história o absolverá, e a execução dos trinta e um homens será uma simples ninharia. Se estava errado... É apenas isto que importa: quem objetivamente está certo. Os moralistas à críquete agitam-se diante de um problema muito diferente: estava B. subjetivamente de boa fé quando recomendou o nitrogênio? Se não estava, de acordo com a ética deles devia ser executado, ainda que depois ficasse demonstrada a superioridade do nitrogênio. Se estava de boa fé, então devia ser absolvido e ter permissão para continuar fazendo a propaganda do nitrato, ainda que o país viesse a arruinar-se em conseqüência disso... O que é, naturalmente, um cabal absurdo. Para nós a questão da boa fé subjetiva não tem interesse. Quem não tiver razão deve pagar; quem tiver razão será absolvido. Essa é a lei do crédito histórico; era a nossa lei. A história nos ensinou que freqüentemente a mentira lhe serve melhor do que a verdade; porque o homem é preguiçoso, tem de ser conduzido pelo deserto durante quarenta anos, antes de qualquer passo em seu desenvolvimento. E tem de ser levado pelo deserto com ameaças e promessas, com terrores imaginários e consolações imaginárias, a fim de que não se assente prematuramente para descansar e distrair-se adorando bezerros de ouro. Aprendemos a história melhor do que os outros. Diferençamo-nos de todos os outros na nossa coerência lógica. Sabemos que a virtude não importa à história, e que os crimes ficam impunes; mas que todo erro tem suas conseqüências e vinga-se até a sétima geração. Por isso concentrávamos todos os nossos esforços na prevenção do erro e na destruição de suas próprias sementes. Jamais na história, como no nosso caso, tanto poder sobre o futuro da humanidade se concentrou em tão poucas mãos. Toda idéia errônea que seguimos é um crime cometido contra as gerações futuras. Portanto, temos de punir as idéias erradas como os outros punem os crimes: com a morte. Fomos tidos por loucos porque levávamos cada pensamento até sua conseqüência final e agíamos de acordo com isso. Fomos comparados com a Inquisição porque, como ela, constantemente sentíamos em nós mesmos todo o peso da responsabilidade pela vida superindividual futura. Assemelhávamo-nos aos grandes inquisidores porque perseguíamos as sementes do mal não só nas ações dos homens, como também nos seus pensamentos. Não admitíamos esfera privada, nem mesmo dentro do crânio do homem. Vivíamos sob uma compulsão, elaborar as coisas até suas conclusões finais. Nossos espíritos estavam tão carregados e tensos que a mais leve colisão causava um curto-circuito mortal. Estávamos fadados, assim, à destruição mútua. Fui um desses. Pensei e agi como devia; destruí pessoas das quais gostava, e dei o poder a outros de quem não gostava. A história me pôs onde estive; esgotei o crédito que me concedeu; se estava com a razão, nada tenho de que me arrepender; se estava em erro, pagarei. Mas como pode o presente determinar o que será considerado verdade, no futuro? Estamos fazendo obras de profetas sem ter esse dom. Substituímos a visão pela dedução lógica; mas embora todos partíssemos do mesmo ponto, chegamos a resultados divergentes. A prova refutou a prova, e finalmente tivemos de recorrer à fé – à fé axiomática na justeza do próprio raciocínio. Eis o ponto crucial. Jogamos todo o lastro ao mar; só uma âncora nos segura: a fé no próprio eu. A geometria é a realização mais pura da razão humana; mas os axiomas de Euclides não podem provar-se. Quem não acreditar neles verá todo o edifício desmoronar. O N.º 1, tenaz, pachorrento, taciturno, inabalável, tem fé em si próprio. Sua âncora tem a corrente mais sólida de todas. A minha desgastou-se nestes últimos anos... O fato é este: não acredito mais na minha infalibilidade. É por isso que estou perdido.» (Arthur Koestler, "O Zero e o Infinito")
Posted on: Mon, 24 Jun 2013 00:47:06 +0000

Trending Topics



Recently Viewed Topics




© 2015