ARS CURANDI - Arte Médica 5 1.3. Acerca da Dimensão - TopicsExpress



          

ARS CURANDI - Arte Médica 5 1.3. Acerca da Dimensão Científica do Conceito de Medicina Ciência e Medicina são conceitos correlatos e inseparáveis há mais de vinte e cinco séculos, ainda que não se superponham inteiramente e frequentemente se distanciem, mas nunca devem conflitar. Porque, havendo uma contradição entre eles, deve prevalecer a ciência. Assim como, dando-se um conflito entre o técnico-científico e o moral, deve prevalecer o interesse, a norma ou o valor moral. Deixando de lado todas as fantasias menos verossímeis sobre a origem da Medicina, sem falar nas inteiramente inverossímeis, pode-se pretender que seu caráter de atividade simultaneamente sócio-laboral, tecno-científico e ético-humantário exista mesmo embrionariamente desde os primórdios das culturas conhecidas. Ainda que não houvesse consciência disso, nem que alguma delas estivesse suficientemente elaborada para ser entendida de imediato. Pois, parece impossível saber, com a necessária certeza, se a Medicina iniciou como trabalho social, como expressão aplicada de conhecimento (comum ou protocientífico, não importa) ou como exercício humanitário de solidariedade para com alguém sofrendo). Não obstante, parece bastante provável que, pelo menos, estes fatores estivessem presentes na sua gênese em épocas pré-históricas. Com relação aos tempos chamados históricos, os registros escritos não permitem dúvidas de que isto tenha ocorrido. Neste capítulo é preciso enfatizar que valorizar a ciência não significa fetichizá-la. Nem, muito menos, divinizá-la. Não esquecer que a atividade científica é tão falível quanto as pessoas que a realizam. Principalmente não se deve esquecer jamais que aquilo que é um remédio ou um exame para o paciente, é uma mercadoria para quem os produz e negocia. E que, para estes, o lucro pode ser o motivo mais importante de sua ação. Neste trabalho há módulos específicos para cuidar do caráter técnico-científico e laboral da Medicina. Aqui e agora, levantam-se somente alguns pontos mais amplos destes temas, de modo a possibilitar uma visão global do tema, antes que cada um de seus aspectos seja mais aprofundado. Um dos volumes deste trabalho tratará especificamente da medicina como atividade científica com um pouco mais de detalhamento. Aqui, o tema será posto a vôo de pássaro. Por causa de seu caráter de instituição social de caráter científico e do prestígio social que cerca tudo que se identifica com a ciência, é frequente que se destaque a dimensão científica da Medicina, quando a atividade médica é mencionada, principalmente no âmbito do senso comum. Entretanto, outra assertiva deve ser levada em conta. As ciências (médicas, paramédicas e auxiliares) ainda não dão resposta a todas as necessidades dos doentes. Nem das pessoas ameaçadas pelas enfermidades. A Medicina racional, tal como foi elaborada pelos médicos hipocráticos a partir do século V antes da nossa era, representou uma das raízes mais importantes do pensamento científico antigo. Desde aquela época, os médicos sempre estiveram na linha de frente do progresso científico e tecnológico. A tal ponto, que até o século XVIII ciência e Medicina se confundiam na consciência social. Em geral, as pessoas comuns imaginavam que todos os cientistas fossem médicos. E todos os médicos, passaram a ser chamados homens de ciência. E isto não deixava de ser verdadeiro naquela época, quando surgiram os físicos, os químicos e os biólogos. A maior parte do prestígio social desfrutado pelos médicos decorre da confiança depositada na cientificidade de sua atividade. Embora isto existisse desde a Antiguidade, foi bastante ampliado mais recentemente. Nos últimos dois séculos, a confiança das pessoas na ciência foi comunicada à imagem pública da Medicina. A Medicina é uma ciência, dizem muitos. Os que se referem a ela assim, fazem-no equivocadamente. Embora a Medicina seja quase sempre uma aplicação científica, uma atividade cada vez mais científica, já não é uma ciência. Não resta qualquer dúvida que se trata de uma atividade predominantemente científica e cada vez mais cientifizada, mas não se pode pretender que seja uma ciência especificada, singularizada, uma disciplina da ciência. Ninguém pode negar o caráter científico da atividade médica (ao menos, em termos ideais), nem que esta qualidade se amplia cada dia mais. Contudo, a Medicina, já há muito, muito tempo não deve ser tida como uma ciência individualizada. Isso, caso não se empregue a mais antiga concepção de ciência. Uma disciplina científica isolada. Uma atividade cognitiva que emprega os meios mais fidedignos e mais confiáveis possíveis para descobrir coisas sobre seu objeto em busca de obter informações que desvelem aquilo que ele tem demais essencial e quais são as relações mais essenciais que ele entretenha com as outras coisas do mundo. Uma coisa é certa, hoje e à muitos séculos, não existe uma disciplina científica chamada Medicina. Quando se mencionava a Medicina até há bem pouco tempo, isto inicialmente, pretendia se referir unicamente à soma (ou síntese) das crenças e dos conhecimentos encerrados naquela atividade e que justificavam sua prática. O conhecimento médico, qualquer conhecimento sobre enfermos e enfermidades, qualquer que fosse a fidedignidade e validade contidas nele. Analogamente, a concepção de ciência não é a mesma desde o início do uso desta palavra até hoje. No passado remoto a palavra scientia abrangia qualquer conhecimento, qualquer que fosse sua origem ou sua natureza, desde que proveniente do estudo acurado, da prática atenta e meditada de alguém que fosse considerada uma autoridade pelos seus contemporâneos. Desde que elaborado com a maior fidedignidade e validade possíveis. Conhecimento sobre qualquer objeto, estudado sob qualquer ponto de vista. A fidedignidade (o quanto as coisas se parecem com sua designação) e a validade (o quanto uma proposição reflete a realidade a que se refere) das proposições científica são, até hoje, as pedras de toque mais eficazes que permitem o reconhecimento da ciência e da metodologia de investigação científica. E como os recursos de determinação da fidedignidade e da validade se aperfeiçoam com o tempo, este é um dos propulsores do progresso científico na prática. Por certo, outra motivação relevante há de ser o prestígio social alcançado pela ciência e, em particular pelas ciências médicas, bem como o prestígio social que todas as culturas atribuem ao que é considerado científico, o que se acentuou nos últimos tempos. Nenhuma outra atividade humana ou instituição social ganhou mais prestígio nos últimos dois séculos do que a ciência. E, entre as atividades científicas, destaca-se a Medicina. Este prestígio estimula o desejo de ser médico. Mesmo que se limite a ser uma fração de médico. No entanto, o desejo inatingido de se fazer médico regularmente, pode fomentar tentativas de representar este papel a qualquer custo. Sem falar, para não correr o risco da cabotinice de estabelecer um paralalelo com o fenômeno psicossocial da inveja. Que, por certo estará motivando ao menos alguns dos antimédicos. O lastro científico da Medicina, intimamente relacionado com seus objetivos característicos, parece ser o principal motor de seu crédito social e o componente mais significativo da situação e do estatuto de especiais de seus praticantes. Não é atoa que a Medicina seja frequentemente identificada como ciência, como as demais atividades profissionais de nível superior. A ciência médica, no caso. Ainda que valha a pena destacar que a influência da ciência no crédito social da profissão médica e do trabalho dos seus agentes no prestígio que auferem na sociedade. Ainda que os aspectos mais humanistas e humanitários da assistência médica possam diminuir, na medida em que parece crescer no mundo a influência individualista e neoliberalista da cultura que supervaloriza o mercado e as relações mercantis sobre todas as outras relações sociais. Cultura excessivamente impregnada de superstição e de crendices (tal como sucedeu com o primeiro Império Romano, que lhe parece servir de modelo paradigmático). Nos três planos existenciais em que se processa a relação médico-paciente, o médico costuma ser relativamente superior na dimensão técnica. Enquanto que na dimensão econômica, pode-se notar superioridade do cliente. É na dimensão inter-humana da interação do médico com quem necessita, às vezes desesperadamente dele, que sua superioridade se mostra mais evidente. Por isto. a dimensão inter-humana, deve ser essencialmente ética, e a ela devem ser subordinadas as vertentes técnica e mercantil (que não podem nem devem ser negadas, até porque são elementos essenciais na estrutura daquela interação). A dimensão ética, humanitária, inter-humana e intersubjetiva do exercício clínico assinala o que há de mais essencial na relação do médico com o seu paciente, o que vem a ser a espinha dorsal do trabalho médico, configurando a dimensão mais essencial da atividade profissional da Medicina. Embora a relação médico paciente tenha um caráter técnico e outro, mercantil, sua dimensão ética deve ser sempre considerada como mais importante. Podendo-se, repetir aqui algumas cogitações bastante comuns Medicina será uma ciência? E o que há de ser uma ciência? Ou será uma práxis profissional na qual se agente procura ser o mais científico e humanitário ue lhe for possível em cada atendimento, de cada paciente?. Os que responderem por esta última alternativa estarão mais próximos da verdade. Evolução do Conceito de Ciência A palavra ciência percorreu uma longa e penosa trajetória desde sua origem. De início, a expressão latina scientia significava apenas conhecimento, qualquer conhecimento ou saber. Com o mesmo sentido que se emprega na burocracia em tomar ciência. A diferenciação que se faz atualmente entre o conhecimento científico e o conhecimento vulgar e o conhecimento filosófico é relativamente recente e assinala o estágio atual desta evolução civilizatória. A significação que as pessoas atribuem à palavra ciência varia muito de pessoa para pessoa, de uma cultura para outra e de um momento histórico para outro. O significado atual do conceito de ciência resulta de um processo constante de atualização permanente no qual são geradas sucessivas e simultâneas conceituações sobre seu objeto que traduzem o seu constante e progressivo aperfeiçoamento. Cada momento desta evolução cultural, especialmente da evolução tecnológica, produziu o melhor conhecimento científico que era possível obter nele, tanto em termos de confiabilidade (confiança que merecia em relação às possibilidades da época de correlacionar a palavra com seu significado) e de validade (grau de correspondência daquele conhecimento com a parte da realidade a que ele se refere). Sobretudo, porque só se deve chamar “científico” em cada momento, o conhecimento caracterizado pelo maior teor de fidedignidade e de validade que for possível gerar ali. Da mesma maneira que produziu os melhores (porque mais eficazes) recursos de diagnóstico das enfermidades e de tratamento dos enfermos, em um processo de constante aperfeiçoamento, permanente evolução. Mas que, igualmente, produz meios ideológicos e recursos propagandísticos cada vez mais eficazes para convencer os clientes a adquirirem ou prescreverem seus produtos. As palavras da linguagem comum tendem a mudar mais ou menos espontaneamente de significação com o passar do tempo, em função de um grande número de motivos, que não vem ao caso mencionar aqui e agora. Ainda que valha a pena destacar o significado da consagração do uso errôneo. Semântica é a designação que se dá a este fenômeno linguístico. Analogamente os termos científicos podem sofrer este processo, ainda que isso se dê com menor frequência, intensidade e velocidade e a mudança deva ser sempre intencional e programada. As regras da linguagem científica inibem a semântica na ciência. Mas, a dinâmica do conhecimento, sobretudo com a evolução do conhecimento, pode obrigar a haver mudanças mais ou menos importantes no conteúdo significativo dos termos científicos. Tal fenômeno pode se mostrar muito acentuado quando os termos científicos conservam sua presença na linguagem comum com a mesma forma verbal e idêntico significado ou significado muito próximo. O conceito de ciência, como qualquer outro, constitui uma estrutura verbal, lógica e psicológica que sintetiza três elementos interativos: uma ideia, que é representada por uma palavra, que sintetiza as características mais essenciais e mais gerais que podem ser reconhecidas em seu objeto ou conteúdo conceitual. No caso específico de que se trata aqui, o conceito de ciência tem como objeto os procedimentos científicos de obtenção de conhecimentos e, igualmente, os conhecimentos resultantes daí. Contudo, nem sempre esta palavra teve esta mesma significação. O significado da palavra ciência vem mudando no tempo, na medida em que a prática científica se aperfeiçoa (permitindo-lhe mais profundidade e que a sociedade exige mais dela em termos de possibilidade de explicar e de prever) e na medida em se modifica sua importância social. Tal como acontece com a noção de conhecimento e muitas outras, no conceito de ciência, deve-se considerar este duplo significado e sua evolução temporal. Ciência significa uma modalidade da atividade mental para conhecer o melhor que for possível um aspecto particular do mundo; (o que o faz um sinônimo de conhecimento científico). Entretanto, a palavra ciência significa também cada ciência, cada disciplina científica em particular, dentre tantas que existem no mundo, nas quais se acumula o conhecimento resultante do processo de conhecer cientificamente. A Física e a Química são ciências, é uma frase que exemplifica este sentido. Ademais, o conceito de ciência (igualmente aos demais conceitos, que variam, inclusive, em função de sua importância social), resulta de um processo de atualização permanente no qual são geradas sucessivas e simultâneas conceituações sobre seu objeto; conceituações que estão sendo constante e progressivamente aperfeiçoadas, modificando-se com o tempo, gerando significações que vão se sucedendo ou se acumulando. Sendo ordenadas em teorias. Teorias que são verificadas, comprovadas ou não. Se comprovadas parcialmente, por menor que seja o fato verificado, ele se somará aos já acumulados. E os não comprovados também têm sua serventia. Na pior das hipóteses, servirão para economizar esforços no futuro. Todos os conceitos científicos são construtos. Construções psicológicas e ideológicas. Elaborações pessoais e sociais. Mas não são só isso. São representações mais ou menos fidedignas e progressivamente válidas da realidade. As palavras mudam de sentido no tempo. Todos os conceitos, embora isso possa acontecer mais evidentemente em uns que em outros, apresentam uma trajetória etimológica e histórica, na qual, os seus significados são transformados lenta ou rapidamente, na medida em que se obtêm e reúnem mais e melhores informações sobre seu objeto. E, também, como consequência de determinadas exigências sociais e políticas. Sobretudo, variando em função da importância que a sociedade e as pessoas atribuam à coisa conceituada. Em geral, quanto mais importância uma pessoa ou uma cultura atribua a uma coisa, mais exatidão exige do conhecimento sobre ela e sobre a palavra que a expressa. Exige-se, também, cada vez maior exatidão dos conceitos que se referem a coisas consideradas como mais importantes para a cultura. E isto decorre de uma necessidade objetiva e não de outros fatores, a atividade científica sobre coisas capazes de influir diretamente na sobrevivência das pessoas deveria ser priorizada. Infelizmente, prioriza-se a a possibilidade de lucro. Mas é bastante difícil imaginar uma sociedade em desenvolvimento que possa se dar ao luxo de cultivar uma concepção obsoleta acerca da ciência (inclusive da Medicina e das ciências médicas, paramédicas e auxiliares). Pode-se observar que o próprio avanço da ciência torna os cientistas mais exigentes com respeito ao rigor dos procedimentos que emprega e da veracidade dos resultados que obtém. Pois, uma das caraterísticas mais comuns do avanço científico reside exatamente na maior exigência que se desenvolve com respeito à sua exatidão, validade e fidedignidade. Inclusive ou principalmente, de sua linguagem. Dos símbolos que emprega para construir seus conceitos, suas proposições e suas teorias. Entretanto, convém destacar que a palavra ciência não é um termo científico, ao menos não era originariamente científico. O termo ciência tornou-se uma categoria da epistemologia na medida em que foi se desenvolvendo e centrando cientificidade e, consequentemente, respeitabilidade. Estudando-se a evolução temporal do conceito de ciência, percebe-se que, nos diversos momentos da história, entendeu-se o que seria ciência de maneiras bastante diferentes. Diferenças de significado que descobrem a evolução das ideias vigentes sobre o que é ciência, põem em evidência as mudanças que teriam se dado na necessidade social com relação à atividade científica e o significado que a ciência, como prática social, desfruta na sociedade. Os diferentes sentidos que a palavra ciência vem assumindo ao longo da história desvendam a história deste conceito e que se revelam nas circunstâncias de seu aparecimento e nas mudanças de seus sentidos. Os mais importantes deles devem ter sido os seguintes: a) o primeiro sentido atribuído à expressão ciência, que foi característico da Antiguidade pré-clássica, foi o de qualquer conhecimento (como ainda hoje se pretende quando se diz: tomar ciência de algo); b) depois, ainda na Antiguidade clássica, o termo ciência passou a querer dizer conhecimento um pouco mais elaborado, sobretudo, qualquer conjunto mais ou menos organizado de conhecimentos, conhecimentos advindos da prática e da experiência ou conjunto de conhecimentos que possam contribuir com o progresso, mas incluía o saber fazer, a maior habilidade com que se realizava uma tarefa prática (como se vê, no início, a palavra ciência se confundia com o conhecimento comum, mas fundamentava a tecknê); c) um outro sentido que apareceu bem mais tarde (sendo típico da Antiguidade tardia, da Idade Média e do Renascimento) pretende se referir a saber adquirido pelo estudo prolongado, cuidadoso ou atento de um assunto qualquer; soma ou conjunto de conhecimentos que se tenha sobre certos assuntos ou objetos determinados (alquimia, teologia, astrologia, ciências ocultas); d) no Renascimento, o termo ciência passou a significar conhecimento com certeza, qualquer que tenha sido a sua origem ou o processo de sua aquisição, desde que experimentado subjetivamente como uma convicção; neste sentido específico, ciência, significa o oposto de opinião (o que, por esta época, queria dizer conhecimento provável, sem certeza), tal como instrução ou erudição, mas se referia principalmente a conhecimentos práticos, àqueles que têm uma finalidade determinada (ciência do mundo) ou todo conhecimento que possa ser reduzido a regras e preceitos; e) mais tarde, no Romantismo e no Iluminismo, o termo ciência já significava qualquer conhecimento, mas desde que obtido da observação ou da experiência sistemáticas (ciência é experiência) ou, mesmo assistemática, mas sujeita a alguma programação prévia (agricultura, música, homeopatia); f) depois, pelo século XIX, ciência passou a querer dizer conjunto organizado e mais ou menos sistemático de informações e noções ideológicas sobre um aspecto mais ou menos definido do mundo do conhecimento (ciência astrológica, ciência cristã, bruxaria, ciência espiritual, kardecismo, psicoanálise); g) atualmente, o termo ciência se refere ao estudo sistemático, orientado para um fim determinado, de um objeto definido e estudável objetivamente, no qual se utilizam meios e métodos adequados e que se dirige para a obtenção de conhecimentos cada vez mais amplos e profundos acerca de seu objeto, sendo que tais conhecimentos devem ser formulados em uma linguagem rigorosa e tão exata quanto possível (de preferência matemática), acompanhados de algum grau de convicção de que esses conhecimentos são verdadeiros; h) não obstante, atualmente o termo ciência também significa adicionalmente o acervo determinado e estruturado de conhecimentos obtidos com o estudo e a metodologia mencionados no item anterior (conceitos, categorias, juízos e leis) resultantes desse estudo sistemático mencionado no item anterior (as ciências como acervo de conhecimento científico). Cada um desses significados teve seu momento de atualidade, por representar a necessidade e a possibilidade daquele instante. Depois, foi superado por outro conceito mais consentâneo com aquele novo instante. Mas todas estas significações persistem como sinônimos na linguagem comum, ainda que apresentem variações mais ou menos importantes de sentido, sendo frequentemente empregados na linguagem vulgar, apesar de diversos deles terem se tornado francamente obsoletos, ao menos do ponto de vista da linguagem técnica e científica vigente atualmente. Também na tecnologia, nas modas e nas superstições, acontece o convívio pacífico, na vala comum da obsolescência, de coisas que podem ter sido bastante contraditórias e mesmo antagonicamente conflitivas quando modernas. Como acontece, por exemplo, com o convívio da homeopatia com a terapêutica dos chás, decoctos e tisanas, além de outros recursos terapêuticos que foram superados por ela, que surgiu em sua oposição. Atualmente, todos convivem na arca das “alternativas). O conceito vulgar contemporâneo de ciência abrange todos os significados listados acima, porque pode ser empregado com referência a cada um deles, pois, todos estão devidamente dicionarizados; embora, cada um destes significados específicos sintetize uma série diferente de atributos conceituais que lhe foram incorporados, em momentos diferentes de sua trajetória histórica, em razão da necessidade social daquele sentido particular. Por isto, na linguagem comum, o sentido preciso de ciência precisa ser decodificado em cada contexto particular. A linguagem científica, já se viu, não tem nem pode ter esta liberdade, embora muitos cientistas teimem em, ainda que agindo anticientificamente, emprestar um significado particular idiossicrásico àquilo que considera como ciência e àquilo que reconhece como científico. Dentre os diversos sentidos atribuíveis ao conceito de ciência, cada um deles compatível com um tipo de emprego, os dois últimos são os empregados neste trabalho, não porque representam o estágio mais moderno do seu significado, unicamente como uma formalidade, mas porque satisfazem as exigências atuais do conceito de ciência neste início do século vinte e um. Medicina e Ciência Mesmo o sentido comum proclama que a Medicina não é uma ciência, uma disciplina científica definida. Ao menos com o sentido atual de ciência-disciplina. Entretanto, a Medicina é e deve ser preferentemente uma atividade científica, uma práxis social cientificamente fundamentada. Mas não é ou já não é uma ciência. Ao menos não é uma disciplina científica específica. Nem pode ser uma atividade exclusivamente científica. Ao menos enquanto a ciência não for capaz de dar resposta eficaz para todos os problemas técnicos que os pacientes colocam diante dela. Mas nunca deve empregar um procedimento não científico que possa ser substituído por uma medida cientificamente verificada. De saída, pode-se perguntar porque a Medicina não é uma atividade exclusivamente científica. Resposta. Porque as ciências não atendem todas as suas demandas e, mesmo quando atende, isto se mostra insuficiente para atingir suas finalidades. Desde quando se iniciou a chamar a Medicina de ciência e, por muito tempo ainda, ela passou a ser considerada uma disciplina científica específica, a ciência médica. A disciplina científica voltada para a identificação das doenças e para o tratamento dos doebtes. Isto porque atendia as exigências que, naquela época, vigoravam para que uma atividade cognitiva qualquer fosse considerada científica e denominada como uma ciência. Como se há de ver na unidade deste livro destinada a tratar da cientificidade da medicina e das ciências médicas. Pois, o conceito de ciência sofreu diversas transformações radicais ao longo da História da Humanidade, como se há de verificar no capítulo dedicado à evolução semântica do conceito de ciência. Presentemente, a Medicina já não é mais considerada como uma ciência individualizada, isolada, a ciência médica ou ciência Medicina, porquanto foi dividida em uma grande quantidade delas, como parte do desenvolvimento científico e técnico da humanidade. Hoje existem as ciências médicas, secundadas pelas ciências paramédicas, pelas ciências auxiliares da Medicina e pelas ciências situadas mais distantemente no espectro da atividade científica, mas que podem ser aplicadas no trabalho médico ou apoiarem algum aspecto teórico da Medicina ou alguma de suas formulações cognitivas. O substantivo ciência e os adjetivos científico e científica, derivados dele, também se empregavam no passado mais remoto com significação bem distante da que lhe é atribuída agora, o que será visto mais adiante, quando se tratar da evolução do conceito de ciência em cada momento da história. Pois, a noção de ciência evolui no tempo. Quando começou a ser empregada, a palavra ciência significava apenas saber alguma coisa (exatamente o sentido de tomar ciência, que contém até hoje na burocracia); depois, evoluiu para conhecimento refinado, meditado, eficaz, comprovável ou com alto grau de verosimilhança. Devendo-se destacar agora que, durante muito tempo, o significado daquilo que se chamava arte se confundiu com a significação atribuída à palavra ciência, significando saber e saber fazer bem feito. Ao menos com o sentido de ciência aplicada, de aplicação científica, de atividade profissional fundamentalmente científica. Esta confusão talvez tenha sido feita de modo mais ou menos deliberado, tendo decorrido do prestígio social que a ciência adquiriu em todas as culturas ocidentais. Nestas, diferentemente do que ocorreu nas civilizações orientais, nas quais o misticismo e as superstições se fizeram mais valiosos que o conhecimento objetivo, o prestígio da ciência chegou a suplantar o das religiões. Daí porque, dá-se tanto destaque ao que é científico e porque, procura se fazer passar por científica, muita coisa que não merece esta designação. Mesmo uma doutrina religiosa completamente anti-científica pode pretender se fazer passar por uma produção da ciência, como acontece com a religião denominada ciência cristã. Não há quem não queira posar de cientista e ser tido como tal pelos outros. Afinal, ser considerado cientista proporciona bastante prestígio social. Ainda mais, depois que se descobriu que o adjetivo científico ajuda a vender qualquer produto, todo vendedor de um bem ou de um serviço costuma apresentá-lo como tal. Seja ou não seja. Por isto, se uma determinada atividade é considerada uma ciência (ou, ao menos, uma atividade científica) e deixa de sê-lo, isto é sentido como um rebaixamento, uma desvalorização. Mesmo que seja uma atividade religiosa ou política. Uma “terapia”, então, nem se fala. Para muitos, não basta que seja científica. Deve ser a mais científica. Lembrando que, no século dezenove havia na Europa quem concedesse status de ciência até à equitação, ao espiritismo e a outras atividades que, hoje não são mais consideradas científicas. Absolutamente. O que ninguém tem direito de ignorar é que o progresso da Medicina nos últimos dois séculos foi consequência do avanço do conhecimento científico em sua área e que este processo se avulta em progressão geométrica. Fato reconhecido e que constitui a fonte de seu prestígio. Veja-se os sacrifícios que quem pode pagar faz para ter plano de saúde nos países em que o Estado não cumpre seu dever. Com é o caso brasileiro. Ainda que, analogamente, também não se deva atribuir todo progresso social e todo incremento dos índices de bem-estar diretamente à ação dos médicos e da Medicina. Uma fração significativa do progresso social e da melhoria da vida social tem origem extra-médica. Origina-se nas condições de vida e bem-estar das pessoas. Mas a Medicina tem ajudado muito. As atividades empírico-espontâneas e mágicas dos curandeiros e dos feiticeiros atravessaram os períodos paleolítico e neolítico da História da humanidade sem sofrerem grandes transformações, até se institucionalizarem no sacerdócio, quando do surgimento das religiões. Naquele momento, dentre os sacerdotes-médicos, destacou-se um grupo de médicos leigos, os asclepíades, que constituíram a teknê médica, a Medicina Racional. Esta foi a raíz da Medicina científica, tal como é conhecida até hoje. A teknê médica. Ou seja, a Medicina concebida inicialmente como arte, como uma atividade social fundamentada em um saber especializado, refletido e muito exercitado com uma teoria de apoio, ou seja, saber técnico — teknê. Como diz Maria Dolores Lara Nava. 7 Esta é que é a característica mais essencial daquilo que se denominava arte na Antiguidade e na Idade Média. Porque naquela época, o latim foi mais importante para a cultura do que o grego. Mas foi também ali que o termo arte adquiriu diversos sentidos paralelos que obscurecem seu entendimento até hoje. 7 Na nota 3 sobre os comentários sobre a obra A Medicina Antiga, in Tratados Hipocráticos, Ed. Gredos, Madrid, 1a. ed., 2a. reimpressão, 2002, volume I, p. 135 Ainda que no princípio a noção de teknê fosse atribuída a qualquer arte manual, sobretudo aos ofícios artezanais, pouco a pouco as atividades assim denominadas foram se sofisticando e algumas das tékhnai foram adquirindo importância social cada vez maior, sobretudo, por serem objeto de reflexão teórica e exigirem aprendizado sistemático e bem cuidado. Deste então, a teknê passou a ser distinguida da epistême, (sabel com certeza) porque não era puramente teórico-dedutiva; enquanto se diferenciava da empeiria (saber prático), porque não dependia só da experiência prática de seu agente. Diferentemente de ambas, a teknê supunha um sistema logicamente estruturado de regras e categorias teóricas que a fundamentasse. O prestígio social das teknai (plural de teknê) na Grécia Clássica que, deve-se saber aqui, não estava restrito à Medicina, também incluía a escultura, a poesia, a literatura, a arquitetura, a ferraria, que eram concebidos como trabalhos sociais diferenciados que deveriam ser especialmente distinguidos dentes os demais. A Medicina nem era a mais importante. A imagem socialmente favorecida destas teknai (ou artes) que existia na Antiga Grécia dependia tanto de sua fundamentação em um conhecimento reconhecido como útil, válido e especializado, quanto da importância que era atribuída ao resultado do seu trabalho para a sociedade. O reconhecimento público do valor social de uma atividade laboral já era considerado essencial para sua promoção a uma teknê, uma arte (ou profissão, dir-se-ia muito mais tarde). Pois, desde sua origem na Grécia Clássica, é este sentido especial de valor social e de prestígio que separa a ocupação da profissão. E aí se teria assentado o primeiro momento da construção da ideia de profissão. Por isto, não é exagero dizer que aí estava a primeira raíz das profissões baseadas nas ciências aplicadas e foi o nascimento da Medicina como atividade científica. Mas, mais ainda, o primeiro momento de seu reconhecimento como profissão. E como profissão destacada e desejada. Ardentemente. A Medicina racional grega, tal como formulada pelos hipocráticos mas que lhe foi anterior, se diferenciou da prática empírico-espontânea dos curandeiros, da magia dos feiticeiros e dos procedimentos religiosos dos sacerdotes. Este foi o passo essencial de seu progresso e foi o passo que lhe abriu caminho do futuro. Os agentes sociais que praticaram a Medicina até seu surgimento foram superados, porque esta estava assentada em regras e princípios que podem, legitimamente, ser chamados de científicos (para aquela época, é claro). E persistem sendo, ainda que se considere a evolução do conceito de ciência, daquele momento até hoje. Na mesma obra citada acima, a autora identifica as colunas mestras dos primeiros princípios da cientificidade médica no mundo antigo. Ou seja, os princípios que se reconhecia como os princípios técnicos ou científicos mais fundamentais da Medicina hipocrática. O que passou a a se chamar archê médico (com o duplo valor de postulado lógico e de princípio para a ação. Porque este duplo enfoque sempre foi o eixo do conceito de tekhnê (ars, arte). Lara Nava também destaca o fato de que, pela primeira vez, os praticantes desta nóvel ciência médica adquirem consciência de sua existência como entidade social respeitável e de sua validade como coletividade útil à polis, como corpo social, como corporação médica. Esta consciência corporativa, surgida na coletividade médica da Grécia clássica foi essencial para o futuro da profissão médica, por diversas razões: porque foi o primeiro ofício a se organizar como tecnê, servindo de modelo para todos os demais pretendentes a tal status; porque assentou as bases mais remotas da tradição profissional no ocidente; porque consolidou um sistema ético de controle profissional autogerido; criou um sistema de relacionamento com a clientela e com a sociedade que subsiste até hoje mais ou menos íntegro. Talvez porque jamais tenha sido superado em seus fundamentos éticos. A mesma Lara Nava, na mesma obra citada acima, à p. 137, nota 4, lista os princípios que, na opinião da autora, transformaram a prática médica helênica em uma práxis científica universal. Tais princípios fundamentadores de todas as teknai são os seguintes: 1. A existência de uma investigação metodologicamente estruturada (e cada vez mais confiável aos olhos dos seus contemporâneos), investigação que dá lugar a descobrimentos que cada vez mais são reconhecidos como válidos e confiáveis; Aspecto em que se destaca a necessidade da pesquisa sistemática, metodologicamente confiável e culturalmente reconhecida, que ainda hoje fundamenta a atividade científica em toda parte. 2. na base desta investigação, encontram-se intimamente ligados, tanto a epistême (que significa teoria, o saber com certeza, atividade racional, conhecimento científico), quanto a empeiria (o fazer, a prática, a experiência, o saber prático); e Se tal preceito dialético fosse obedecido ao longo de seu desenvolvimento, ao menos no ocidente, a ciência teria, há muito, superado a divisão artificial e artificiosa que opõe o racional ao sensorial, o teórico e o prático (e tantos outros análogos) como se fossem antagônicos e excludentes. 3. graças a estas diretrizes, a Medicina logrou superar o campo da tychê, de onde se originara, dando lugar à teknê que se desenvolve mais a cada momento. Esta transformação de tychê em teknê ilustra a transformação do conhecimento espontâneo, assistemático e acrítico do senso comum (expresso pelo radical gnose) em conhecimento científico ou conhecimento com certeza (que se revela no radical episteme) e, ao mesmo tempo, a evolução da prática empírica espontânea em práxis (atividade humana assentada na consciência, na razão, na crítica e na autocrítica originou a Medicina Racional que evoluiu a para a Medicina Científica. Ars sine scientia nihil (a arte sem ciência é nada, não tem qualquer importância). Neste proverbio cunhado pelos romanos, as palavras latinas “ars” e “sciencia” (ou episteme, como diziam os gregos) não têm os mesmos significados que atualmente designam “arte” e “ciência”. Os sentidos que estão sendo buscados aqui são os seguintes: a profissão sem conhecimento (sem saber meditado, sem conhecimento científico) não é coisa alguma, pode ser comparada a nada. Sem forçar nada, somente ajustando os sentidos das palavras, poder-se-ia dizer, uma profissão sem teoria científica não tem qualquer valor. Esta foi a trajetória desempenhada pelo termo tecknê, que os romanos traduziram por arte: prática > prática habitual > prática refletida > prática apoiada na teoria. A Medicina, as Ciências Médicas e Outras Ciências Em cada momento da história, os procedimentos médicos refletiam o melhor conhecimento existente. Melhores porque mais válidos e mais viáveis. E, por isto, mais científicos. Embora não seja uma ciência, com o sentido de uma disciplina científica singular, a Medicina é (ou deve ser) uma atividade cientificamente fundamentada. Com o sentido de atividade científica, a Medicina-ciência unifica as atividades científicas que lhe permitem explicar, prever e intervir com eficácia sobre seu objeto. O que se manifesta em dois planos: o cognitivo: de diagnosticar enfermidades e o operativo: de tratar os enfermos. Atividades inseparáveis em sua aparente diversidade. E as profissões devem ser atividades cientificamente fundamentadas, pois esta é uma demanda civilizatória, ao menos na cultura ocidental. A Medicina é grande demais para caber em uma única ciência ou em um grupo homogêneo delas, como as ciências médicas. Aqui se coloca outra crença a ser desmistificada, a Medicina não é ciência biológica, nem tem nas ciências biológicas, necessariamente, sua única fonte de cientificidade. A tendência a biologização é fatointeiramente contingente e transitório. É mais um reflexo da cultura do que dela própria. Entretanto, que se trata de tecnologia, ninguém duvida. A Medicina foi considerada durante muitos séculos como uma disciplina científica definida, uma ciência específica. A ciência médica. No seu início havia uma única ciência médica, uma única disciplina científica que estuda as doenças e os doentes: a Medicina-ciência, com o sentido de ciência médica. Uma ciência individualizada que reunia o conhecimento sobre as enfermidades e os enfermos. A designação ciência médica vem daí, da convicção no caráter científico da Medicina. C Com o passar do tempo e a ampliação do conhecimento sobre o seu objeto (o enfermo, a enfermidade e suas relações mútuas) e, mais ainda, com o aumento exponencial das possibilidades técnicas e dos recursos tecnológicos exigidos pela sua prática, aquela única ciência médica se pulverizou em muitas outras. Que passaram a ser chamadas ciências médicas, para indicar sua pluralidade. Às estas ciência médicas se acrescentaram outras, as chamadas ciências paramédicas. As quais, por sua vez, vieram a justificar o surgimento das profissões paramédicas e a fundamentar suas atividades técnicas. São disciplinas científicas que sugiram ao lado das ciências médicas. Convém explicar para os mais açodados e menos conhecedores o significado da expressão paramédico(a), substantivo e adjetivo), porque ela produz muita bulha. Muito mais que deve. Ao contrário do que muitos parecem pensar, ela não tem nada de depreciativa nem humilhante. Não indica inferioridade nem sujeição. Veja o que informa um estudo etimológico da palavra em questão. O prefixo para_ conduz o significado de proximidade, que está próximo de, ao lado de, ao longo de; também pode significar elemento acessório, subsidiário a; semelhante a; também pode significar defeito, desvio (mas este último sentido é bastante restrito, aparecendo em poucos termos científicos voluntariamente construídos, como parageusia ou parafilia, por exemplo. Ainda que, mesmo nestes casos, originalmente significasse ao lado de, junto de. As ciências e as profissões chamadas paramédicas são denominadas assim por terem brotado da Medicina e ou funcionarem ao seu lado; ao menos, em uma proporção muito grande dos casos. Quando o substantivo paramédico é empregado isoladamente, indica os agentes sociais incumbidos de prestar os primeiros socorros, de remover um ferido ou doente até o serviço médico em que será atendido. Na maior parte dos estados brasileiros, os policiais militares bombeiros costumam desempenhar este papel com rara perícia e eficácia. Além destas, existem outras atividades científicas chamadas ciências acessórias das ciências médicas (como existem das ciências paramédicas). Essa dimensão da Medicina, que se extende por sua vertente científica, alberga uma multiplicidades de instrumentos metodológicos (teóricos) e metódicos (práticos) pelos quais ela se revela uma prática científica cognitivamente responsável e útil para os seres humanos considerados individualmente e para a humanidade, em geral. No entanto, a responsabilidade dos médicos não se restringe ao campo cognitivo, mas se aplica nos campos ético e jurídico. O saber alguma coisa é radicalmente diferente de ter a devida habilitação para fazer aquilo. Embora possam ser identificados entre as atividades científicas médicas e as diversas formas especializadas do trabalho médico numerosos pontos de superposição e coincidências, não se deve confundir as ciências médicas com as especialidades da Medicina. Da mesma maneira que não se deve confundir um ciência com a modalidade de trabalho especializado que ela fundamenta. As primeiras, as ciências chamadas médicas, são ramos do conhecimento científico, disciplinas científicas que interessam precipuamente aos médicos e à formação médica, mas abrangem o interesse de muitas outras categorias de pessoas. Enquanto as segundas constituem áreas de preferência na atuação profissional, vinculadas mais à organização do mercado de trabalho e emprego do que à atividade científica. Espaço social privativo dos médicos. Os aspectos científicos da Medicina serão considerados mais detalhadamente em outro módulo deste texto, o que tratará especificamente da cientificidade da Medicina e do conhecimento médico, quando se tratar dos fundamentos científicos da Medicina, na sequência deste trabalho. Ciências Médicas e Profissão Médica Há muito, a Medicina não é uma ciência. A Medicina é uma profissão que ostenta inegável caráter técno-científico. Não obstante, ao menos do ponto de vista deste autor, sua dimensão científica sequer é ou deve ser predominante nela. A vertente ética, solidária e humanitária deve dar o tom de seu desempenho. Henry E. Sigerist, 8 médico suisso e um dos mais conceituados historiadores da Medicina, exemplifica alguns autores que negam à Medicina o caráter de ciência. Não apenas de uma ciência individualizável ou, sequer, uma atividade fundamentalmente científica; uma aplicacão científica. Para Sigerist "a medicina não é um ramo da ciência nem o será nunca; e se nos atrevemos a afirmar que a medicina é uma ciência, haveria de ser melhor pretendê-la uma ciência social". Para Sigerist a Medicina é o conjunto de atividades que têm como propósito prevenir as enfermidades, curá-las e devolver os enfermos à vida normal. E para isto introduz no discurso médico-histórico elementos que escapam extremamente do quadro das ideias científicas. O que é perfeitamente natural, tendo em vista que o conhecimento científico estabelecido não permite dar resposta para todas as necessidades clínicas de todas as pessoas os que padecem problemas médicos. Para Virchow, herói da Medicina moderna e do pensamento fisiopatológico, justamente considerado como o pai da patologia celular, que exerceu uma das influências mais importantes na Medicina moderna e precursor da Medicina Social, “a medicina é uma ciência social”, dizia ele com fervor. Precursor da tendência doutrinária que sustenta que tudo que é humano, inclusive suas enfermidades, expressa-se nos planos biológico (anatomo-patológico) e psicossocial da realidade humana. E que a Medicina não podia ser exceção. 9 Noutro plano, situam-se os que pretendem a Medicina como algo extremamente limitado. Como Laplantine, por exemplo, que reproduz sem qualquer crítica ou restrição a opinião de Péquignot, que “define a Medicina” como “o encontro de uma técnica com um corpo.” 10 Caracterização tão restrita que, mesmo à primeira vista, se mostra incapaz de abarcar senão ínfima parte de seu objeto. Ao mesmo tempo que é tão ampla que pode abarcar uma infinidade de outros objetos. Como o trabalho do veterinário, do açougueiro, do massagista, do prostituto, do torturador, do pescador e de uma infinidade de outras técnicas que se encontram com outros corpos, além da Medicina. E todos radicalmente diferentes dela. Outro enfoque, igualmente restritivos, é a concepção do sacerdócio médico, que pretende a prática médica como sendo, antes e acima de tudo, um exercício de solidariedade, de humanidade e de amor. Uma relação unicamente de ajuda entre quem sofre de quem o pode ajudar a minimizar ou a superar aquele sofrimento. Mas este é outro reducionismo a ser evitado. É verdade que a dimensão humana da Medicina deve se caracterizar essencialmente por ser uma relação de amor; amor como amizade ou atração amistosa (phileo). A amizade é um sentimento que se mostra, em si mesmo, bastante complexo. Complexidade que se revela em sua estrutura linguística, especialmente, na semântica. A amor à humanidade (p philantropia), amor pelo trabalho (philotécnica) e amor pelo conhecimento (philosofia). Mas a perspectiva mais limitada de Medicina, ainda não foi escrita mas já se insinua nas condutas. É a que a supõe como um conjunto de técnicas limitadas que se apresenta como um arquipélago de executores mais ou menos cegos de procedimentos limitados por sua metodologia, pela enfermidade que o paciente a presente, pelos órgãos ou pelos sistemas do organismo. Um médico para os olhos (ou quem sabe, um médico para cada olho), um para os músculos e ossos (ou mais, um para operar, outro para imobilizar, outro para massagear, outro para exercitar, quem sabe quantos mais caberiam? Quantos aparecessem e se dispusessem). 8 Sigerist, H.E., A History of Medicine, Oxford, 1961. 9 Pequignot, H., in Laplantine, F., Antropologia de la Enfermedad, E. del Sol, Buenos Aires, sd, p. 16. E isto também é verdade, a Medicina é basicamente uma profissão. Para Ortega y Gasset esta é a tônica de sua identidade social. Diz Ortega y Gasset: 11 "A Medicina não é ciência. É precisamente uma profissão, uma atividade prática. Como tal, significa um ponto de vista diferente da ciência. Propôe-se a curar ou a manter a saúde da espécie humana. Para este fim, lança mão de qualquer recurso que pareça a propósito: entra na ciência e toma de seus resultados quando os considera eficaz, porém deixa o resto. Deixa da ciência sobretudo o que é mais característico dela: a predileção pelo problemático. Bastaria isto para diferenciar radicalmente a Medicina da ciência”. Neste texto Ortega y Gasset pretende que a diferença resida em uma tendência natural e essencialmente humana de descobrir e a inventar problemas para si mesmo. Quanto mais problemas se propõe, mais parece sentir que cumpre sua misssão cognitiva. Como sucede com as outras atividades cientificas, a Medicina existe para apontar soluções para problemas. Se estas soluções puderem ser científicas, isto é de ser melhor. Porém não é absolutamente necessário que o sejam. Podem proceder de uma experiência milenar que a ciência ainda não explicou nem sequer consagrou". A única condição para que um problema seja considerado de interesse científico, é ser um problema humano”. A práxis médica é uma atividade basicamente técnico-científica, deve funcionar a contento e atingir seus objetivos, pois foi criada para isto. Em princípio e por definição é uma prática cujos fundamentos devem estar apoiados na ciência; mas, ressalte-se que nenhum procedimento profissional pode ser anti-científico (em particular, os procedimentos médicos). Falando com rigor, a Medicina é uma práxis com o mais amplo sentido desta palavra. Uma atividade consciente, voluntária, inteligente e crítica preferentemente baseada na ciência e que se destina a realizar um certo trabalho; isto é, a concretizar uma dada mudança útil no mundo, na natureza ou na sociedade. O trabalho médico é uma espécie de atividade laboral voltada, essencialmente, para o diagnóstico das enfermidades e para o tratamento dos enfermos. Pois, diagnosticar doenças e tratar doentes são, das atividades médicas, aquelas que podem ser consideradas como mais essenciais. Pode-se verificar esta afirmação indagando-se de pessoas comuns o que é a Medicina e o que é o médico? .Neste caso, hão de ser obtidas respostas do tipo: a medicina é a ciência que estuda as doencas, ou a profissão dos que tratam as doenças, ou o trabalho de diagnosticar e tratar doentes. E o médico é o profissional que trata doenças.. Ou experimente-se indagar: qual o profissional que deve diagnosticar doenças e tratar doentes? O filósofo e historiador da ciência Francisco Fernández Buey conta o seguinte em sua História da Ciência: 12 História esta que é um dos mais respeitáveis trabalhos sintéticos sobre a matéria. George Sarton, en su History of Science, concedía un puesto importante a las ciencias y a las técnicas de la vida y asimilaba la medicina a la ciencia en general. Pero ya en 1935 este punto de vista de Sarton dio lugar a un polémica provocada por el médico y sociólogo suizo Henry E. Sigerist, autor de una importante historia de la medicina (A History of Medicine. Oxford, 1961,cuyo volumen II se ocupa de Grecia), quien mantuvo que "la medicina no es una rama de la ciencia ni lo será nunca; y si nos atrevemos a afirmar que la medicina es una ciencia, habría que decir que es más bien una ciencia social". 11 in Clavreul, Jean, El Orden Médico, Barcelona, ed. Argot, 1983 12 Buey, F.F., Historia de la Ciencia no sitio caminantes.metropoliglobal/index.htm. 52 En opinión de Sigerist, la Medicina es el conjunto de actividades que tienen por objeto prevenir las enfermedades, curarlas y devolver a los enfermos a la vida normal, todo lo cual introduce en el discurso médico-histórico elementos que escapan ampliamente del cuadro de las ideas científicas. Con el paso del tiempo la polémica no ha remitido del todo. Pero, con independencia de que esa polémica se replantee a veces, hoy existe, sin embargo, una acuerdo muy generalizado entre los historiadores de la ciencia en considerar a la medicina hipocrática como "la creación más científica de la época". Así lo dice, por ejemplo L.W.H. Hull, en su Historia y filosofía de la ciencia. Añade Hull que el mérito principal de Hipócrates fue “la finura y flexibilidad con que aplicó su método, a pesar de la superficialidad y vaguedad de las ciencias en que entonces se basaba su teoría médica, a saber: la anatomía o estudio de la estructura del cuerpo y la fisiología o estudio de las funciones de los órganos somáticos” (véase Bibliografía cit. págs.78-79). Los historiadores de la ciencia argumentan esta afirmación acerca del carácter científico (o mejor: intencionalmente científico) de la medicina hipocrática aduciendo principalmente dos hechos: la importancia concedida a la observación por los médicos autores del Corpus Hipocraticus (en adelante CH) y su naturalismo inmanentista. Hull, por ejemplo, escribe que "es sorprendente el hecho de que la observación, tan escasamente apreciada por los griegos en su primera física y en su astronomía ha desempeñado un papel prominente en su biología y en su medicina". Piensa Hull que la importancia concedida por los médicos hipocráticos a la observación se ha debido a la complejidad de los seres vivos, la cual compejidad impedía un tratamiento matemático. [Es interesante la reflexión que hace a Hull a este respecto. Según él, la matemática habría alejado a los griegos del experimento y de la observación, interesándoles por lo que podía ser deducido de principios axiomáticos y sugiriéndoles, de paso, la idea de que todo conocimiento debe ser de esa naturaleza. En cambio, la falta de influencia matemática en los orígenes de la biología y de la medicina griega, a causa de la personalidad de sus iniciadores (Hipócrates y Aristóteles, los dos griegos que más se han interesado en ese período por las ciencias de la vida, eran muy poco competentes en matemáticas, rasgo poco frecuente en la filosofía griega) habría sido sin duda una causa primordial del correcto desarrollo de las ciencias de la vida]. Pero todavía hay otra reflexión que vale la pena tener en cuenta al justificar la elección. Carlos García Gual [en la Introducción general a la traducción castellana de Tratados hipocráticos, I. Biblioteca Clásica Gredos, Madrid, 1983, pág. 14-15] escribe que es en la literatura médica donde se establece por primera vez en el ámbito cultural griego la distinción entre "profanos" y "profesionales", rasgo muy notable en la constitución de un saber científico. En este sentido recuerda la obervación hecha por Aristóteles ( Política III 11, 1282 a) cuando dice que se llamaba "médico" tanto al profesional de la medicina como al investigador experto y al hombre culto instruido en tal ciencia, "una distinción" -- comenta García Gual-que "es oportuno tener en cuenta para advertir la variedad de autores y de lectores de los escritos del CH: médicos, hombres cultos interesados por los avances de la ciencia y filósofos que quieren mantenerse al tanto de las opiniones médicas, como Platón y el propio Aristóteles. Caso a Medicina fosse uma ciência, se reduzisse só a um conjunto delas ou fosse simplesmente ciência aplicada, o que não é ocaso, sua identidade profissional, meramente técnica, seria bastante diversa da que ostenta nos últimos vinte e cinco séculos. Ao menos para os médicos fiéis à herança hipocrática. Mas como se trata de práxis, predominantemente humanitária ainda que de base científica, caso não se conheça explicação científica que justifique um procedimento necessário, ele pode e deve ser dirigido por outra justificativa; como a utilidade, a beneficência ou outra mais. Entretanto, não há justificativa aceitável para negar ao paciente um procedimento cientificamente justificado, se isto for viável. Só se justifica o emprego de uma atividade acientífica se a ciência não dispuser de alternativa. Mas, nunca deve ser anticientífica. Ainda que o limite da cientificidade seja o da humanidade.
Posted on: Wed, 17 Jul 2013 22:44:38 +0000

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