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ARTIGO: Coisa de pele Marcos Fabrício Lopes da Silva * Como diria o poeta-sambista Jorge Aragão: “não dá pra fugir dessa coisa de pele”. É verdade. Quando o corpo é tomado por uma emoção arrebatadora, atingimos o sublime. Ruas descalças (2011), livro de Salvino Pires Sobrinho, expressa uma poeticidade encantadora, um mergulho no cotidiano capaz de demonstrar o quanto a nossa realidade é fértil em detalhes magistrais. Em pinceladas ágeis, o poeta prefere a abertura do especular ao fechamento do decifrar: “ando desconfiado/de que a vida não é mistério/é magia”. Estes versos estão presentes no poema “Reflexões no tempo”. Bem ao estilo gauche, o autor, em duas cartadas poéticas – “Na medida” e “Desconstrução” – reinventa o baralho. No primeiro texto, Pires Sobrinho problematiza o universo da leitura. Para ele, ler, antes de mais nada, é uma experiência importante de letramento e não uma atitude acumuladora e vaidosa de erudição: “leio o suficiente/para não ser totalmente iletrado/mas nem tanto que me faça perder/meu senso de ignorância”. No outro poema citado, temos: “um certo dia/como se os outros fossem incertos/perfeitos fossem defeitos/e o futuro fosse pretérito”. Futurista, desafiando o jeito retrô de se contar tradicionalmente uma história, que apela para o costumeiro “era uma vez”, o poeta arremata um clímax logo de primeira e considera as imperfeições aberturas para momentos diferenciados ou lacunas à disposição do duvidoso não abreviado pela letal explicação de tudo. Imbuído desse leitmotiv também está o poema “Passos”, cazuziano até o fio do cabelo: “malabarista do contra-senso/entre o torto e o perfeito/procuro o equilíbrio do certo/no exagero dos meus defeitos”. Em seu livro, Pires Sobrinho teve a audácia de destacar os impeditivos para uma sociabilidade saudável, causados pela timidez ou falta de ousadia. No poema “Comportamento”, formado por um verso, o nosso “complexo de vira-lata”, na acepção formulada por Nélson Rodrigues, é revirado: “não consigo ser solidário na vergonha”. A partir de uma linguagem transfigurada, no texto “Pássaros”, o poeta, em defesa da liberdade, protesta contra a censura do cárcere: “não sei se é canto/ou um grito de pranto/o som que parte das gaiolas”. A atmosfera de aprisionamento é retomada pelo eu-poético a partir de um sentimento de angústia que lhe assalta na percepção do espaço que o circunda: “postes alinhados aos fios pendentes/procissão de cruzes presas a correntes”. Tais versos fazem parte do poema “Ruas decadentes”. No campo da tristeza, o poeta transforma textualmente sofrimentos em vivências construtivas, longe de serem lições de moral a serem transmitidas ao público leitor. Lembrando a sabedoria de um Paulinho da Viola, quando canta: “quero chorar/não tenho lágrimas”, Pires Sobrinho é capaz, no poema “Acontece”, de desferir mais um verso portentoso, fruto de aguçado conhecimento íntimo: “a tristeza às vezes/nos pega tão desprevenidos//que nos esquecemos de chorar”. A coragem de poetizar também acolhe o medo do vivido. São textos que revelam os receios do eu-poético. Em “Lembranças de menino III”, o leitor vai se deparar com os seguintes fatos: “meus amigos eram medrosos//um tinha medo de assombrações e defuntos/o outro medo de cobras escorpiões e lacraias/um outro de fantasmas e mula sem cabeça/eu só tinha medo de tudo”. Ainda no capítulo da infância, o autor recorria a tática ‘sebo nas canelas’ na hora da confusão: “na nossa rua/eu era o mais magro e mais fraco/mas justiça seja feita/numa briga de turma/sempre fui o mais rápido/era o primeiro a correr”. O autor traz com leveza e humor a sua dimensão peralta de existir. Pires Sobrinho, sensível, não deixa para trás o campo do amor e da sensualidade. Em versos presentes no poema “O antes”, o gozo reúne fantasia e realização para o ápice do desejo compartilhado: “sobre teu corpo nu/quero nadar meus movimentos/destilar meu suor sobre tua pele/cochichar os meus gemidos/até regar o meu prazer/em tua enseada”. Percebe-se no texto em questão a presença de uma alucinação amorosa, marca registrada da paixão. Na paixão, a gente quer se fundir com o outro. De corpo e alma. É como se a voz poética ali presente partisse de um sujeito romântico à maneira cantada por Vander Lee: “Românticos são loucos desvairados/Que querem ser o outro/Que pensam que o outro é paraíso”. De forma transgressora e sem medo do ridículo, apaixonado é quem se amarra no outro. Por isso, a paixão, muito mais que “servidão voluntária”, é a revolução a dois. Salvino Pires Sobrinho salva a paixão de sua condenação etimológica, que associa o termo à palavra grega pathos, que significa doença ou sofrimento. Por isso, a fronteira é tão estreita entre o passional e o patológico. O filósofo Roberto Patrus, em Ética e felicidade: a aceitação da verdade como caminho para encontrar o sentido da vida, chega a propor uma distinção conceitual entre o amor e a paixão: enquanto o primeiro se define pela construção madura de “laços”, o segundo se refere pelo ímpeto dos “nós”, em que um se confunde com o outro. Houve aqui um entendimento da matéria que trata a paixão como sinônimo de obsessão. Por outro lado, a voz poética de Pires Sobrinho mostra muito bem que a paixão pode ser a fome de amor que alimenta a vida. * Professor das Faculdades Fortium e JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.
Posted on: Thu, 29 Aug 2013 04:57:10 +0000

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