Batons Atrevo-me a escrever, mais uma vez, o que não cabe dentro - TopicsExpress



          

Batons Atrevo-me a escrever, mais uma vez, o que não cabe dentro de mim. Empurro a tampa dessa caixa , mas os fantasmas insistem em fugir, insensíveis, e me martirizar com gritos e escárnio. Observo os livros para ler, seus títulos e mil páginas, escuto músicas que mil vezes já escutei. Não olho minha cara no espelho, sei que é sempre a mesma de sempre: mesmos olhos brilhantes de lágrimas presas, mesmas rugas de expressão fechada, mesmas sobrancelhas por fazer, lábios, dentes, orelhas, cabelos. Tudo igual e, me pergunto, o que há de rrado em mim? Qual é a peça que não se encaixa? Onde está toda essa profundidade, todo esse abismo que me assusta? Não está na minha juventude, decerto. Nem na pele macia, os músculos firmes. Nem em nada. Nada que posso enxergar. Pensei em tanta coisa bonita de ser dita e escrita. Tanta cena bela da natureza, digna de ser retratada e nunca esquecida.E, quando tento escrever, tudo some. Só me resta eu. Nada escrevo de belo ou sublime, apenas lamentações vazias em frases sem sentido, reclamações e angústias fugidias como o sol se escondendo por entre nuvens. Tenho vinte batons e não uso nenhum. Escrever é um atrevimento que cometo cheia de culpas, dores e remorsos, embutidos em cada letra, sinal, traço. Sou mulher e não entendo esse mundo humano de homens. Minhas raízes no brasil estão apodrecidas e sinto pertencer a qualquer outro lugar. Mesmo assim, o poema está em português. Mas nem o idioma é daqui. O que é daqui afinal? Não, nem eu. Mas talvez eu só esteja exagerando por querer, somente, ir embora assim e sem olhar pra trás. Talvez a distância seja mais saudável para nós dois, ou para mim, somente. Ou nem isso. Tenho vinte batons e não uso nenhum. Eu tocaria violino, se soubesse. Um sonata num piano, se o tivesse. Por isso, escrevo. Só tenho isso. É só o que me resta. Não servi para os esportes. Nem para matemática. Nasci com o coração errado: nasci poeta. À bordo desse navio que não escolhi, com essa missão que me deram e não sei qual é. Sei que escrevo, mas não sei a quem e nem qual a finalidade disso tudo. Nem mesmo sei se sou poeta ou se poetas existem de verdade ou são apenas poeira que escondem embaixo dos tapetes sociais. Acho que os poetas são pessoas entre aspas porque vem com defeito de fábrica e ninguém quer trocar. Não vem com garantia, nem seguro de vida. Coração de poeta não vale muita coisa. Um relógio que marque as horas bem direitinho, com um cuco cucando de hora em hora, vale bem mais que um coração de poeta. Todos os poetas vêm defeituosos. Peças faltam, peças sobram. O jogo com cartas repetidas. Dados com lados iguais. Peças de xadrez num jogo de dominó. Não fazem doações de coração de poeta. As pessoas nunca aceitam. Tem até um carimbo na carteira verde-identidade: Não-doador, e o motivo: poeta. Dizem que é porque temos um mal-de-século incurável. Tem gente que fala que é culpa do Werther que nos assombra a cada um. Não ligo, veja bem, eu não ligo. Se o Werther estivesse aqui, eu namoraria ele, não escreveria essa paranóia patética. Se alguém estivesse aqui, eu amaria e não escreveria versos. Se escrevo é porque não há ninguém aqui. Só eu e eu não me basto. nem mundo. Nem tudo. Só o outro. mas o outro certo. Isso é assunto de outra hora. Tenho vinte e cinco batons e não uso nenhum. Mas, veja bem, deixa eu aqui quieta com esse coração esquisito mesmo. Eu já me acostumei, acho que ele também, eu não sei, nunca perguntei, não faço ideia do que ele pensa. Estou com frio e tudo que escrevo é um monte de besteiras sem sentido. Quando eu morrer, ninguém vai querer parar para ler nada disso, não traz nada de novo, nada de interessante. É poesia e por isso é inútil como inútil é a queda de uma folha da árvore. Ou de um fio do meu cabelo. Cai uns mil por dia, qual a diferença disso no mundo? Nenhuma. Eu deveria parar de baboseira de escrever e fazer outra coisa. Mas só sei fazer isso. Bem que eu gostaria de ser outra. Juro. Eu poderia arrumar coisas novas, eu sei. Isso tudo é porque sou uma pessoa acomodada e preguiçosa que não leva nada a sério, eu sei. Ouço isso tudo de todo mundo que diz que é simples mudar tudo e ser outro. E talvez seja mesmo. Eu é que sou molenga. Molenga. Eu acho que não quero mudar nada não. Por que eu não posso ficar assim mesmo? Viver sentada, escrevendo e lendo... hoje consideradas atividades inúteis a menos que a cada letra, uma fortuna me fosse dada. Por mais que digam que não. Não não ninguém diz que não. A verdade é que temos que ganhar dinheiro, poetas. Temos que fazer dinheiro e não poemas bobalhões. E, no fim, eu sou só uma inútil. Uma peça com defeito. Um cd arranhado. Um disco riscado. Um quadro mal restaurado. E qualquer coisa que eu faça sempre tem alguém que faz melhor e cobra menos. Eu não cobro nada. E nada do que eu penso é novo. E nada do que eu escrevo é novo. E nada do que eu sou vale a pena copiar e colar. Nem conhecer, porque até o conhecimento dessa coisa -eu é armadilha. Amor então... coitado. É o sentimento mais inútil, porém o mais falado e requisitado e convidado, e eu acho até que nem existe mais mesmo que falem tanto eu acho, sinceramente, que nem existe mais. Será? Tenho trinta batons numa caixa e não uso nenhum. Às vezes, eu sinto vontade de chorar. Quase sempre eu estou com vontade de chorar. Nunca choro. Coisa feia chorar. Lágrima não existe, é invenção. Porque não existe lágrima pra tanta dor. E, sendo sincera, chorar dói mais que prender choro. Já me acostumei com a dor constante no peito, um quase infarto, e andar com o coração amarrado na sola do pé esquerdo porque piso mais forte desse lado e amassa melhor igual latinha de alumínio. Ele é que nunca acostuma. Reclama, briga, me xinga do que não presta. Mas caramba, ele não entende? O que eu podia fazer? Passar todos esse dias e noites sozinha... já é pesado demais. Ainda carregar esse coração encharcado de lágrimas, cheio dessas sensibilidades afloradas, dessas emoções escancaradas, essas coisas me desmascarando pra todo mundo? Aí não dá, cara, assim fica difícil de qualquer um acredita nessa raiva. Até a raiva também é fingimento. Eu tô sendo sincera, sério. Mas coração não entende mundo. Coração não entende nada. na verdade, ninguém entende. A gente só faz cara de que entendeu e continua andando. Se parar pra analisar, acaba com tudo, deita embaixo das cobertas e reza pro dia acabar logo. Ah... eu não explico nada pro coração também, nem tento porque me cansa, e não fico falando de nada mesmo a esse respeito com ninguém, ninguém mesmo. Não faz sentido falar isso, ninguém entende, embora sinta o mesmo. Ninguém presta atenção, ninguém fica em silêncio. Vontade de chorar aumenta quando está silêncio total, bate um desespero, uma agonia. Pior que morrer. Eu sei. Já morri umas mil vezes. Então eu não falo mesmo sobre chorar com ninguém. Só com o vento gelado, a madrugada fria, a lua branca. Mas eles não respondem, não é da natureza deles ficar aconselhando. Eu fico sempre na mesma, falando com as paredes e tentando tirar algum significado dos dias. Acho que já sei o que ninguém percebeu: o amor não existe mais. Ou melhor, será que algum dia, existiu? Tenho quarenta e cinco batons em duas caixas de sapatos e não uso nenhum. Tenho uma garrafa de areia colorida que forma desenhos. Me dá uma vontade de chorar. Chorar é tão difícil de falar assim. mas é uma necessidade maior do que eu mesma porque eu tenho vontade de chorar o tempo inteiro com tudo errado, com tudo certo ou nem uma coisa nem outra. Só tenho vontade de me derramar, me debulhar até quando estou nos braços de alguém que me faz feliz em algum momento. Tudo é lágrima quase-caída ou caída mesmo, mas escondida. E até a oração é dolorosa porque o contato com Deus também me dá vontade de chorar. Tudo é lembrança de lágrima marcada em carta que nunca escrevi nem recebi. Que você nunca escreveu porque eu sei que você não existe. Nunca existiu, nem existirá. Assim como esse amor que tenho, e é seu, mesmo sem saber quem você é. Tenho uma coleção de batons em caixas de sapatos escondidas pelo quarto inteiro e não uso nenhum. Antigamente eu achava que você morava no Japão e eu queria ir pro Japão procurar você naqueles lugares todos e dentro da barriga dos peixes e dentro das flores de cerejeira e dentro dos corações dos monges que nem sei se são mesmo de lá. Eu confundo os lugares todos. Depois mudei você pra Londres porque você era de Londre e como eu não tinha me dado conta ainda? E seus olhos eram cinzentos como aquele céu de fuligem de Londres e tinha as mãos frias duras e morava em Fleet Street e tomava chá das cinco com a rainha no jardim. E agora eu acho que você está na Alemanha escondido segurando o espirro nas poeiras do muro de berlim. Mas você me escapa e foge o tempo todo quando acho que te achei você sempre dá um jeito de mudar de lugar. Ufa... Tenho um monte de batons perdidos também e não uso nenhum. Você ri pouco e baixo. Tem gestos curtos, mãos pequenas. Não te chamo de desengonçado se você não me chamar de destrambelhada. Você tem um monte de sotaques misturados. Você é alto, magro, cabelo liso e escuro, bem escuro. E parece com um cara que encontrei uma noite dessas por aí pela rua. Mas você não é ele. Ele é passageiro. Você, você é estrangeiro. Um estranho nesse mundo que, como eu, leu kafka com dez anos e achou muito curioso o jeito como o K. ficava falando no meio do livro do Processo quando leu muitos outros anos depois. Você, só você, sabe a sensação de ter o pai, cara, o pai longe e não chorar porque não pode. Você é forte como eu. E não morrer porque não deve. Você é forte como eu. E sabemos nossas fraquezas e juntos conversamos sobre todas elas, sem lágrimas. Sem lágrimas, mas também sem sorrisos. Não somos de sorrisos exagerados. Não somos de sorrisos. Você sabe. Você sabe bem. Amar alguém que não existe mas que te faz companhia desde que você ia pra escola sozinho e tinha medo porque era de manhã e estava muito frio e o caminho era deserto. Você sabe porque também é alguém que não existe, menos que um fantasma, menos ainda que uma lembrança mal lembrada. Você é a sombra que mora nos meus gritos. Você não encontrei pra ser lembrança minha. E eu nem sei se vou te achar em toda essa inexistência. E se eu fosse matemática, já tinha desistido: as probabilidades são míseras. Mas anime-se. Sou poeta. E não ligo pra essas matemáticas cheias de letras sem poesia. Tenho vontade de chorar todos os instantes da minha vida, desde aquele choro que prendi na sala de parto. E a vonatde não passa nem quando estou chorando. Tenho vontade de chorar agora, mas prendo. Prendo dentro. Amarro e empurro bem pro fundo da caixa do peito. Tranco a porta. Quando essa mola voltar e empurrar meu coração de volta, pra fora, você pega na minha mão e me leva pra viajar? Meu sonho de mulher ridícula é só esse: encontrar esse homem que conheço, não vi e não sei onde está. A não ser aqui, dentro de mim. Ora, deixem-me ser mulher ridícula! Deixem-me amar minhas impossibilidades! Eu não sei se ele existe. Ele também não sabe se eu existo. Eu sinto saudade dele. Mas como sinto isso de alguém que não sei quem é? Tenho todos os batons do mundo e não uso nenhum.
Posted on: Fri, 05 Jul 2013 04:18:58 +0000

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