“CULTURA É O QUÊ?” - REFLEXÕES SOBRE O CONCEITO DE CULTURA - TopicsExpress



          

“CULTURA É O QUÊ?” - REFLEXÕES SOBRE O CONCEITO DE CULTURA E A ATUAÇÃO DOS PODERES PÚBLICOS Daniele Canedo1 Resumo Este artigo é baseado na dissertação de mestrado “Cultura, Democracia e Participação Social: um estudo da II Conferência Estadual de Cultura da Bahia”. Tem como foco central de análise os diferentes usos e conceitos de cultura em voga na contemporaneidade. Inicia-se traçando um breve panorama da evolução do termo e das compreensões que geraram as teorias universalista e particularista da cultura. Em seguida, parte-se do conceito acadêmico de cultura para investigar qual compreensão é a mais aceita pela população na vida cotidiana. Tal estudo foi realizado através da pesquisa de opinião com os participantes da II Conferência Estadual de Cultura da Bahia, realizada entre agosto e outubro de 2007. Palavras-chave: cultura; gestão pública; políticas culturais. Definir o que é cultura não é uma tarefa simples. A cultura evoca interesses multidisciplinares, sendo estudada em áreas como sociologia, antropologia, história, comunicação, administração, economia, entre outras. Em cada uma dessas áreas, é trabalhada a partir de distintos enfoques e usos. Tal realidade concerne ao próprio caráter transversal da cultura, que perpassa diferentes campos da vida cotidiana. Além disso, a palavra “cultura” também tem sido utilizada em diferentes campos semânticos em substituição a outros termos como “mentalidade”, “espírito”, “tradição” e “ideologia” (Cuche, 2002, p.203). Comumente, ouvimos falar em “cultura política”, “cultura empresarial”, “cultura agrícola”, “cultura de células”. Ao que se conclui que, ao nos referirmos ao termo, cabe ponderar que existem distintos conceitos de cultura, no plural, em voga Na contemporaneidade. Parte desta complexa distinção semântica se deve ao próprio desenvolvimento histórico do termo. A palavra cultura vem da raiz semântica colore, que originou o termo em latim cultura, de significados diversos como habitar, cultivar, proteger, honrar 1 Graduada em Produção em Comunicação e Cultura (UFBA). Mestre em Cultura e Sociedade e doutoranda do PPG em Cultura e Sociedade (UFBA). Docente dos cursos de Produção em Comunicação e Cultura (UFBA) e de Jornalismo (UNIME). [email protected] com veneração (Williams, 2007, p.117). Até o século XVI, o termo era geralmente utilizado para se referir a uma ação e a processos, no sentido de ter “cuidado com algo”, seja com os animais ou com o crescimento da colheita, e também para designar o estado de algo que fora cultivado, como uma parcela de terra cultivada. A partir do final do século passado ganha destaque um sentido mais figurado de cultura e, numa metáfora ao cuidado para o desenvolvimento agrícola, a palavra passa a designar também o esforço despendido para o desenvolvimento das faculdades humanas. Em conseqüência, as obras artísticas e as práticas que sustentam este desenvolvimento passam a representar a própria cultura. Tanto Denys Cuche, na obra A Noção de Cultura nas Ciências Sociais (2002), quanto Raymond Williams, em Palavras Chaves: um vocabulário de cultura e sociedade (2007), apontam os séculos XVIII e XIX como o período de consolidação do uso figurado de cultura nos meios intelectuais e artísticos. Expressões como “cultura das artes”, “cultura das letras” e “cultura das ciências” demonstram que o termo era, então, utilizado seguido de um complemento, no sentido de explicitar o assunto que estava sendo cultivado. A partir deste período, a cultura passa a conformar sentidos distintos em países como a França e a Alemanha, de modo que Cuche alerta que “sob as divergências semânticas sobre a justa definição a ser dada à palavra, dissimulam-se desacordos sociais e nacionais” (2002, p.12). No pensamento iluminista francês, a cultura caracteriza o estado do espírito cultivado pela instrução. “A cultura, para eles, é a soma dos saberes acumulados e transmitidos pela humanidade, considerada como totalidade, ao longo de sua história” (Cuche, 2002, p.21). No vocabulário francês da época, a palavra também estava associada às idéias de progresso, de evolução, de educação e de razão. Cultura e civilização andavam de mãos dadas, sendo que a primeira evocava os progressos individuais e a segunda, os progressos coletivos. Neste sentido, há uma diferenciação entre o estado natural do homem, irracional ou selvagem, posto que sem cultura; e a cultura que ele adquire através dos canais de conhecimento e instrução intelectual. Decorre daí a idéia de que as comunidades primitivas poderiam evoluir culturalmente e alcançar o estágio de progresso das nações civilizadas. Este pensamento também deu origem a um dos sentidos mais utilizados em nossos dias, que caracteriza como possuidores de cultura os indivíduos detentores do saber formal. No século XIX, a noção francesa de cultura se ampliaria para uma dimensão coletiva, se aproximando do significado de civilização e, até mesmo, o substituindo. Na Alemanha, os primeiros usos do sentido figurado de Kultur no século XVIII guardavam similaridade com o pensamento francês. A idéia de cultura como civilização era comumente utilizada pelos príncipes da aristocracia alemã, que estavam “preocupados demais em imitar as maneiras civilizadas da corte francesa” (Cuche, 2002, p.25). Acontece uma inversão de sentido no momento em que a intelectualidade burguesa, que não compartilhava o poder com os nobres, passa a criticar a superficialidade dos hábitos cerimoniais dos príncipes alemães, relacionados com a civilização, em contraposição com a cultura, que caracteriza, neste pensamento, o que é autêntico, profundo e que contribui para o enriquecimento intelectual e espiritual. Segundo Cuche, a civilização, relacionada à nação francesa, passa a ser colocada em oposição à cultura que, entendida como uma marca distintiva da originalidade e da superioridade do povo alemão, adquire um importante papel nas discussões nacionalistas que se conformariam nos períodos históricos posteriores e que culminariam na Primeira Guerra Mundial. Estendida à “nação” alemã, ela [a cultura] participa da mesma incerteza; ela é expressão de uma consciência nacional que se questiona sobre o caráter específico do povo alemão que não conseguiu ainda a sua unificação política. Diante do poder dos Estados vizinhos, a França e a Inglaterra em particular, a ‘nação alemã’, enfraquecida pelas divisões políticas, esfacelada em múltiplos principados, procura afirmar sua existência glorificando sua cultura (Cuche, 2002, p.27). A evolução do significado de cultura no debate entre estes dois países marcou a formação das duas concepções de cultura que estão na base dos estudos das Ciências Sociais. O entendimento francês de cultura como característica do gênero humano deu origem ao conceito universalista. Já a concepção alemã de que a cultura é “um conjunto de características artísticas, intelectuais e morais que constituem o patrimônio de uma nação, considerado como adquirido definitivamente e fundador de sua unidade” (Cuche, 2002, p.28) origina o conceito particularista da cultura. A concepção universalista da cultura foi sintetizada por Edward Burnett Tylor (1832-1917) que, segundo Cuche (2002, p.39), é considerado o fundador da antropologia britânica. Ele escreveu a primeira definição etnológica da cultura, em 1817, onde marca o caráter de aprendizado cultural em oposição à idéia de transmissão biológica: Tomando em seu amplo sentido etnográfico [cultura] é este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade (apud Laraia, 2006, p.25). Todavia, Tylor defendia o princípio do evolucionismo, que acreditava haver uma escala evolutiva de progresso cultural que as sociedades primitivas deveriam percorrer para chegar ao nível das sociedades civilizadas. Contrário à concepção evolucionista, Franz Boas (1858-1942) foi um dos pesquisadores que mais influenciaram o conceito contemporâneo de cultura na antropologia americana. Ele é apontado como o inventor da etnografia por ter sido o primeiro antropólogo a fazer pesquisas com observação direta das sociedades primitivas. Em seus estudos, Boas concluiu que a diferença fundamental entre os grupos humanos era de ordem cultural e não racial ou determinada pelo ambiente físico. Sendo assim, defendia que, ao estudar os costumes particulares de uma determinada comunidade, o pesquisador deveria buscar explicações no contexto cultural e na reconstrução da origem e da história daquela comunidade. Decorre dessa constatação o reconhecimento da existência de culturas, no plural, e não de uma cultura universal. A partir desses estudos iniciais, outras abordagens do conceito de cultura se desenvolveram nas ciências sociais e em diversas áreas do pensamento humano como conseqüência do fenômeno que Albino Rubim chama de “automização da cultura como campo singular”, que mobiliza mercados consumidores e permite atuações profissionais, acadêmicas e políticas. Para o autor, “cabe propor mesmo uma centralidade para a cultura” no mundo contemporâneo (2006, p.2). Diante da multiplicidade de interpretações e usos do termo cultura, adotamos como referência neste trabalho três concepções fundamentais de entendimento da cultura, como: 1) modos de vida que caracterizam uma coletividade; 2) obras e práticas da arte, da atividade intelectual e do entretenimento; e 3) fator de desenvolvimento humano. Na primeira concepção, a cultura é definida como um sistema de signos e significados criados pelos grupos sociais. Ela se produz “através da interação social dos indivíduos, que elaboram seus modos de pensar e sentir, constroem seus valores, manejam suas identidades e diferenças e estabelecem suas rotinas”, como ressalta Isaura Botelho (2001, p.2). Marilena Chauí também chama a atenção para a necessidade de alargar o conceito de cultura, tomando-o no sentido de invenção coletiva de símbolos, valores, idéias e comportamentos, “de modo a afirmar que todos os indivíduos e grupos são seres e sujeitos culturais” (1995, p.81). Valoriza-se o patrimônio cultural imaterial - os modos de fazer, a tradição oral, a organização social de cada comunidade, os costumes, as crenças e as manifestações da cultura popular que remontam ao mito formador de cada grupo. Como salienta Botelho: Vale nesta linha de continuidade a incorporação da dimensão antropológica da cultura, aquela que, levada às últimas conseqüências, tem em vista a formação global do indivíduo, a valorização dos seus modos de viver, pensar e fruir, de suas manifestações simbólicas e materiais, e que busca, ao mesmo tempo, ampliar seu repertório de informação cultural, enriquecendo e alargando sua capacidade de agir sobre o mundo. O essencial é a qualidade de vida e a cidadania, tendo a população como foco (2007, p.110). A segunda concepção é dotada de uma visão mais restrita da cultura, referindose às obras e práticas da arte, da atividade intelectual e do entretenimento, vistas sobretudo como atividade econômica. Esta dimensão não se dá no plano da vida cotidiana do indivíduo, mas sim em âmbito especializado, no circuito organizado. “É uma produção elaborada com a intenção explícita de construir determinados sentidos e de alcançar algum tipo de público, através de meios específicos de expressão” (Botelho, 2001, p.2). A produção, distribuição e consumo de bens e serviços que conformam o sistema de produção cultural se tornou estratégica para o desenvolvimento das nações, na medida em que estas atividades movimentam uma cadeia produtiva em expansão, contribuindo para a geração de emprego e renda. Conforme salientado por Rubim, A profusão das ‘indústrias’, dos mercados e dos produtos culturais na atualidade; o acelerado desenvolvimento das sócio-tecnologias de criação e produção simbólicas; o aumento inusitado dos criadores; o surgimento de novas modalidades e habilidades culturais; a concentração de recursos nunca vista neste campo sugerem não só a importância do campo cultural na contemporaneidade, mas abrem, sem garantir, perspectivas de uma rica diversidade (multi)cultural e possibilidades de reorganizações da cultura (1997, p.114). A Economia da Cultura estuda a influência dos valores, das crenças e dos hábitos culturais de uma sociedade em suas relações econômicas. “Vista sob esse ângulo, a cultura é tida como fator de propulsão ou de resistência ao desenvolvimento
Posted on: Sat, 21 Sep 2013 00:00:09 +0000

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