Canal de Opinião Lágrimas do vizinho de Mandebe à Valentina - TopicsExpress



          

Canal de Opinião Lágrimas do vizinho de Mandebe à Valentina Tereshkova Cara Valentina Tereshkova, No âmbito do meu inveterado bairrismo, neste fim de semana fui à Zona Militar tomar chá, à casa do vizinho do velho Inriques Mandebe. O referido vizinho de Inriques Mandebe convidou-me a tomar chá com ele, por razão de ambos sermos bairristas, cada um à seu modo, eu do bairro do Macurungo, ele da Zona Militar. O chá era pretexto, afinal para uma conversa, um osso que lhe roia a garganta. Ao fim do lanche entregou-me uma carta, que ta faço chegar, pois ele me disse que não importava que lha fizesse chegar de forma pública. É uma questão de transparência. Onde começa a transparência inicia a justeza da nação. Ainda bem. Fico descansado, pois me aliviou de ter comigo o envelope por muito tempo. Não vou dar voltas. Para quê ir desde a Zona Militar à Macurungo, quando o bem poderia ir parar direitinho na Ponta Vermelha? Eis então a modesta carta que o vizinho de Madebe te escreveu: Cara Valentina Tereshkova, Sei que não és uma menina como as demais, que não brincastes às bonecas de peluche, não brincastes ao jogo-de-avião nem a cabra-cega, porque abriste os olhos num mundo de negócios, o que te tirou tempo a tarefas próprias da idade. Vou ser muito breve, pois te sei bastante ocupada a contar o dinheiro da caixa forte da Dislândia. Como é que se pode dizer para sair do céu em que vivemos, para irmos morar na terra onde faz calor e não tem jardins suspensos como o que temos aqui na zona militar? A idéia de nos mandares viver fora da Zona Militar assemelha-se aos tempos em que os colonos, pretendendo expandir a Dilagoa Bay, a Xilinguine, empurraram os nossos antepassados das suas terras de origem, confinando-os em lugares pobres, sem o brilho das ruas de Maputo, sem os neóns da noite maputense. E nos parece estranha essa regressão ao passado, quando lutamos todos juntos no norte. Cara Valentina Tereshkova, sair destas casas, deste céu onde temos tudo à mão, para irmos morar nos cus de Judas, para irmos morar lá na casca da rolha, onde Judas perdeu as botas, é um absurdo. Foi para desfrutarmos do frescor do ar destes céus e do brilho do urbanismo destas casas com água canalizada, que combatemos. Todos os outros vizinhos teus lá da cidade Alta, com o nosso estatuto, ficaram com as casas nacionalizadas aos colonos e ninguém lhes disse nunca para abandoná-las. Alienaram-nas a uma ninharia, a uma pataca. Como é impossível a nós não comprá-las, se estas casas conseguimo-las ao preço do sangue do nosso sangue, da noite insidiosa na luta, para recuperar a dignidade que nos foi usurpada e aos nossos antepassados feitos escravos nas ilhas do Pacífico e Atlântico? Cada parede destas casas é sagrada para nós que combatemos pelo povo e nada mais temos senão estas paredes içadas que custaram dez anos de luta. Cada árvore que está nos nossos quintais, cada torrão de areia que está nos quintais em que vivemos, é fruto do nosso sacrifício e não nos foi dado de oferta, por isso quando tu nos vens dizer para irmo-nos embora parece que estás a expulsar-nos desta terra que plantamos, pedra a pedra, que construímos tijolo a tijolo com o cimento de cada uma das balas que disparamos. Cara Valentina Tereshkova, olha até onde chegou a exploração, olha até onde chegou o capitalismo que combatemos. Combatemos a burguesia, mas hoje são os burgueses nacionais que nos encurralam nos bantustões, como o faziam os boeres, à população negra. Mas no nosso caso, são negros empurrando negros e semelhantes aos bantustões. Por isso, Valentina Tereshkova, sujeitarmos a sair daqui significa que a nossa luta foi inglória, e que tendo sido ela inglória, então temos que voltar a pegar em armas para restabelecer a dignidade e a integridade que nos está a ser usurpada. Falam-nos de auto-estima, mas se a nós que lutamos nos despojam das conquistas do nosso suor, do nosso sacrifício, então será que o cidadão comum sente na pele a auto-estima que a nós combatentes é-nos negada? Valentina, estamos cientes que as nossas casas estão degradadas, mais isso não pode te doer mais do que dói àqueles que as construíram e as deixaram. Estamos cientes que vivemos na imundície, mas nada sabe melhor que gozar o sabor da paz e da liberdade, mesmo que o seja envolto de moscas, de mosquitos que escolheram o clima e o ambiente de pacifismo da Zona Militar, para partilharem connosco a utopia de sermos um país liberto de burgueses e colonos. Valentina Tereshkova, tudo que agora nos é negado lembra-nos o nosso presidente Samora, que apodou os imóveis de nossas conquistas revolucionárias. E o que é uma conquista genuina não nos pode ser usurpada, por isso vai dizer ao Todo-poderoso que “daqui não saímos, porque daqui ninguém nos tira, senão aquele que cá nos pôs”. Sairmos daqui é mesmo que esquecermos os nossos mortos, é mesmo que esquecermos a nossa história, que teve o momento mais vibrante com o surgimento das zonas libertadas. Cada punhado de casas, cada punhado de mafurreiras e acácias, recordar-nos o emergir das zonas libertadas. Nkalapa. Mavago. A Base Beira. Sair daqui é destruir essa memória e lançar-nos na conjectura do trilho de regresso à clandestinidade onde começou o nosso sonho. É lançarem-nos no escuro para sujeitarmos a descobrir a clareira dos trilhos em que percorremos desde Rovuma até Inhaminga, passando por Tete e Lamego, nas noites enluaradas e no meio da floresta, entre os leões e tigres, da Gorongosa. Sairmos daqui é trairmos os nossos mortos, aqueles que lutaram por essa terra maravilhosa, e que descansam em paz, neste mesmo solo, nas catacumbas debaixo destas casas. Por isso, Valentina Tereshkova, nós não sairemos daqui, nem com mil diabos. Estas casas são parte do nosso corpo, do nosso ser e das nossas almas, dos nossos passados, daqueles que nos inspiraram a combater e a libertar a terra. Estas casas são a vergonha dos colonos que se abalaram desta terra depois de os vencermos humilhantemente. Agora, quando o Todo-poderoso vem nos dizer, pela boca do chefe dos Antigos combatentes, pela tua boca, Valentina Tereshkova, nós pensamos que tal isso não será possível, porque será o mesmo que içar de avesso a bandeira de 25 de junho de 1975. Tens que pensar, Valentina Tereshkova: Quando nos vêm dizer que há uma terra que nos foi reservada, nem que sejam com casas melhores, o que nos sabe na boca é o sabor da amargura, a derrota de termos sido vencidos, não pelo colonialismo, mas por nossos pares e irmãos de luta. Não há maior luto que esse! Não há mais regressão ao colonialismo que esse, nem mesmo que não nos falte nada à mesa, porque tal traduz-se no novo desterro. E isso pode ser apenas o pronúncio do novo ciclo de instabilidade que se repercutirá sobre os nossos filhos, sobre os nossos netos, sobre os nossos animais, pois se nós na nossa qualidade somos expulsos deste chão nada garante que no futuro eles não possam se confrontar com a mesma sorte. Um homem despojado da sua terra não é mais um homem. Mesmo que tenha muitas insígnias e condecorações, flâmulas, não é mais um homem. Um homem vencido e destroçado não é mais que um dejecto. Pronto, nada mais me obsta senão limpar o pranto. É isso Valentina Tereshkova. A história repete-se. É o eterno retorno. Recomeça assim a noite escura, a longa marcha. E é tudo, Tereshkova. Assino: Pedro Gravata PS: Há dias escrevi neste jornal o texto "Desguebuzando o historiador Mablinga da Rua 19/19", que o visado reagiu como tendo o mesmo lhe causado dano. Não tendo sido essa a minha pretensão, nem ser o fito de nenhum escrito meu, senão o de apelar à consciência e à moral, que por cá vai muito em baixo, sou de lhe pedir as sinceras desculpas. (Adelino Timóteo)
Posted on: Mon, 22 Jul 2013 05:04:25 +0000

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