Contra toda esperança - Armando Valladares 12. Martha debaixo da - TopicsExpress



          

Contra toda esperança - Armando Valladares 12. Martha debaixo da chuva Todas as noites, nesses minutos que antecedem ao sono, pensava em minha família e me recomendava a Deus, pedindo-lhe que fortalecesse minha fé e me permitisse manter o firme propósito que fizera de não deixar que os carcereiros me esmagassem espiritualmente, que não envilecessem minha alma semeando nela o ódio e o rancor. Minha preocupação, em todo momento,era não afundar no desalento, nem no desespero, que tanto mal faziam a todos que estavam ali. Em minhas conversas com Deus, na solidão daqueles minutos, ia encontrando o cimento de uma fé que com o passar dos anos seria submetida a titânicas provas de resistência, das quais sairia vitoriosa. Uma atitude de confiança diante de toda circunstância difícil transformou-se, em mim, num instrumento de combate. Mais de vinte anos depois, os coronéis da Polícia Política teriam que comentar,com odiosa inveja, que eu sempre estava rindo. Tiraram-me o espaço, a luz, o ar, mas não puderam me tirar o sorriso. Eu considerava isso um triunfo do amor sobre o ódio. Os dias passavam lentos para minha ansiedade. As revistas eram freqüentes e as medidas repressivas iam aumentando. O tenente Julio Tarrau, diretor do presídio, estabeleceu um regime de terror. Esse homem, mestiço, militante nas fileiras do Partido Comunista desde os anos quarenta, não perdia ocasião de exercer seu ódio sobre os prisioneiros políticos. Foi Tarrau que nomeou chefe da Ordem Interior o tenente Bernardo Diaz, um velho camarada do Partido. O 5 de setembro amanheceu cinzento e chuvoso. Uma das típicas perturbações ciclônicas do Caribe aproximava-se de Cuba; nos dias anteriores à sua chegada as chuvaradas e o vento tinham sido freqüentes. Para nós a visita desse dia seria transcendental; para mim muito mais, pois se bem que ainda não soubesse, era nela que viria a conhecer minha futura esposa. E precisamente esse contato, mais do que o outro que esperávamos, seria o que me tiraria do cárcere, vinte anos depois... Mais ou menos às nove horas avistaram-se os primeiros grupos de visitantes Duas horas mais tarde a maior parte dos familiares já estava dentro do curral; mas os meus e os de outros prisioneiros não apareciam. Saberíamos depois que dois dias antes, quando estavam a bordo do barco que os levaria do porto de Batabanó, na costa sul de Cuba, até a ilha, foram obrigados a descer para que o barco transportasse um contingente de milicianos e armamentos. 38 Assaltava-me o pressentimento de que não iria ter visita. Perambulava pelo curra com essa preocupação quando Benito Lopez, um comerciante detido unicamente por ter se manifestado contra o comunismo, chamou-me para apresentar-me à família dele: - Olhem, este é Armando. Ele agiu com um filho, comigo. Agradeceram-me com emoção. Tinham vindo vê-lo a esposa e a filha mais nova, Martha. Diante de meus olhos estava uma linda garota de uns quinze anos, alta, elegante, de maneiras finas, com rosto infantil e meigo. Seus olhos refletiam uma vontade firme, misto de ternura e coragem. Acho que foi isso que mais me impressionou nela. Perguntei-lhes se sabiam alguma coisa dos familiares descidos do barco, dois dias antes. Responderam-me que haviam dito que eles seriam trazidos de qualquer maneira e me convidaram para ficar com eles até que meus pais e minha irmã chegassem. O céu escureceu a leste e apareceram grandes nuvens. Começou a chover com um ímpeto tremendo. Cerca de seis mil pessoas debaixo da chuva. Coloquei-me de frente para Martha, de costas para o vento, para que as rajadas frias e molhadas não a atingissem diretamente; era tudo que podia fazer. Em alguns minutos estávamos todos empapados até os ossos. Depois de mil pedidos e argumentações conseguimos que a direção permitisse às mulheres atravessarem a rua para ir abrigar-se no refeitório, que tinha capacidade par quase seis mil comensais. Abriram o curral e os visitantes começaram a sair. A chuva não parava. A caravana de familiares, tentando proteger os pacotinhos em que levavam algo para almoçar, foi entrando no refeitório. Fui com Benito e sua família. Martha e eu nos sentamos um diante do outro, em uma mesa estreita. Tirei as botas, virei-as e a água saiu delas aos borbotões. Ela estava com os cabelos escorrendo, usava um vestidinho claro que, molhado, grudava-se ao corpo. Eu a achava radiantemente bela; não se maquilava e era a primeira vez que a tinham deixado arrumar as sobrancelhas. Convidaram-me a comer. Quando mastigava a comida, soltava água. Minha conversa com Martha naquele dia do nosso primeiro encontro foi trivial, mas inesquecível para os dois. Uma simpatia mútua fez com que em algumas horas nos sentíssemos como se tivéssemos sido amigos a vida toda. Ela estava com quatorze anos e eu, com vinte e quatro; justamente me atraia sua juventude quase infantil. Iniciamos uma conversa com assuntos gerais, eu procurando informações sobre suas atividades, gostos. Lembro que cruzou os braços sobre a mesa e inclinou a cabeça sobre eles. Assim ficava mais cômoda e o cansaço da viagem, as quarenta e oito horas sem dormir fizeram o resto; adormeceu enquanto seu admirador e futuro marido falava com ela... Levantei-me com cuidado e me aproximei de uma das janelas com grades, pelas quais o ar entrava, para tentar secar um pouco a roupa. Mas acabei tiritando de frio. Voltei para a mesa. Minha linda amiga ainda dormia e fiquei a contemplá-la. Senti uma grande ternura enquanto o fazia, uma ternura que jamais tinha experimentado. Deus é sábio em seus desígnios e às vezes emprega os meios mais insuspeitados para que dois seres se encontrem e unam suas almas. Se minha família tivesse chegado com os primeiros visitantes, se não tivesse sido obrigada a sair do barco, talvez Martha e eu não nos tivéssemos conhecido. Se então alguém nos tivesse dito, a Martha, à minha família, a mim, que anos depois todos nos alegraríamos com o que havia acontecido, simplesmente não o teríamos entendido. Quando Martha acordou ficou sem jeito e pediu-me desculpas Rimos juntos e nossa nascente amizade também sorriu, feliz. 39 Meia hora antes de terminar a visita, minha mãe e minha irmã,com outros parentes, chegaram ao refeitório. Não lhes permitiram passar com o pacote que me traziam. Eles as haviam feito descer do barco, eles as tinham impedido de chegar cedo e, agora, diziam-lhe que estavam atrasadas demais para a visita. Tivemos apenas alguns minutos para conversar. Fizeram, também, uma viagem terrível, na coberta do barco o tempo todo, debaixo da chuva. Quando aquele militar subiu a uma das mesas e começou a gritar que todos fizessem silêncio, eu sabia o que isso significava: - Acabou-se a visita! Saindoooo!
Posted on: Mon, 30 Sep 2013 19:46:55 +0000

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