Contra toda esperança - Armando Valladares 14. Destruir um - TopicsExpress



          

Contra toda esperança - Armando Valladares 14. Destruir um mito Tínhamos um grupo valioso de amigos cuja colaboração foi utilíssima; sem ela não teríamos podido fugir. Era preciso colocar vigias na hora de fugirmos a fim de termos certeza de que nenhum veículo estava se aproximando da circular. Portanto, três dos nossos companheiros, espalhados pelos andares, iam se encarregar dessa observação. Ulisses mandou preparar uma corda pela qual deslizaríamos da janela até o chão. Fabricávamos cordas com os fios de aniagem de sacos desmanchados. Uniam-se dez ou doze desses fios para conseguir uma fibra grossa. Depois, fazia-se a corda trançando quatro ou cinco fibras. Os uniformes já estavam tingidos e passados,os quepes eram impecáveis. Amanheceu nosso dia: 21 de outubro de 1961. Houve visita na circular 3. Logo depois da chamada da tarde, começamos os preparativos. Se tudo desse certo, teríamos tempo até a chamada do dia seguinte, ao amanhecer, quando seria descoberta nossa fuga. A partir do momento em que nós quatro entramos na cela, tudo foi feito com rigor cronométrico. Vestimo-nos: os coletes, as tiras de borracha com as facas, cigarros, fósforos nos bolsos, dinheiro cubano e dólares, que eu levava numa carteira velha, as carteirinhas de identificação... Começa a entardecer, a sentinela que dava voltas ao redor da circular já havia chegado e tinha feito uma ronda; fumava e o cachorro andava a seu lado. Com um pedaço de pano umedecido em querosene esfregamos as axilas e os genitais, a fim de desorientar os cães. Os primeiros a saltar seriam Brito e Ulisses. Brito saiu pela janela e deslizou com rapidez; atrás dele seguiu Ulisses, depois Boitel. Mas nesse momento apagaram-se as luzes; falta de energia geral. Eu não sabia, mas a corda se havia destrançado na vez de Boitel, o que o obrigou a se deixar cair; bateu no chão com força, fraturando os ossos do calcanhar. Quando saltei, a corda não tinha espessura suficiente; fui dar uma braçada, rápida, e fiquei com fiapos nas mãos. Precipitei-me no vazio e caí sobre um monte de escombros. Senti uma dor horrível no pé direito, mas me levantei instantaneamente. Nos momentos de perigo o homem é capaz de fazer coisas incríveis, de superar dores e limitações físicas. É como se a mente, ocupada apenas com um objetivo, bloqueasse todas as outras sensações. Depois, eu saberia que na queda tinha fraturado o calcanhar, o escafóide, o primeiro cuneiforme e que o astrágalo, pressionado pelos outros ossos, havia se deslocado de seu lugar. No entanto, andei normalmente, sem mancar, e me uni a Boitel que, acendendo um cigarro, esperava-me junto da estradinha. Saímos andando. Não tínhamos tido tempo de dizer sequer uma palavra, quando saiu do hospital o sargento Pitanguilla,o que fazia as chamadas; tinha pendurada ao ombro uma submetralhadora tcheca. Brito e Ulisses, que andavam uns quarenta metros adiante, iam cruzar com ele. Quando passaram, o sargento parou, virou a cabeça com ar perplexo, como se não se lembrasse daquelas caras. Foram momentos de tensão indescritível. Boitel e eu, que nos aproximávamos do sargento, erguemos a voz, conversando: - Olha só a pressa do gordo, nem espera a gente! Está louco para voltar a Havana. Se o capitão Kindelán estivesse aqui, podíamos ir amanhã cedinho. O sargento escutou minhas palavras, que respondiam perfeitamente às perguntas que devia estar fazendo a si mesmo. Não os conhecia porque eram de Havana e estavam ali para falar com o capitão Kindelán, chefe da guarnição. Sem dúvida sua mente simplista estava satisfeita com minhas justificações. Quando passamos ao lado dele, Boitel e eu conversávamos com naturalidade. Quando estávamos lado a lado eu cumprimentei: - Como é que é, sargento? - Tudo bem, filho... A noite chegou de repente, sem qualquer outro aviso senão aquela penumbra que dá lugar à escuridão total. Enquanto andávamos na direção do quartel, acenderam-se os holofotes de rastreio. Nosso plano era rodear o edifício militar pelos pátios laterais, como faziam os guardas que iam buscar roupas de baixo e meias na cerca ou se dirigiam à casinha que lhes servia de tinturaria. Tínhamos que sair pela trincheira, onde estava a metralhadora, avançar para a direita, rumo aos arbustos junto ao terreno roçado. Aqueles minutos seriam decisivos, pois bastaria que o guarda da metralhadora acendesse o holofote fixo no telhado para que descobrisse nossa fuga; mas em nossas observações havíamos comprovado que ele só fazia isso com a noite bem adiantada. Vimos Ulisses e Brito entrarem no jardim do quartelizinho como se fosse a casa deles. A sentinela estava à esquerda. Eles dobraram à direita e nós os perdemos de vista; já havia sombras e obscuridade. O pé me doía horrivelmente, mas eu sabia que não podia mancar em um passo sequer: isso seria fatal. Boitel e eu já estávamos diante do pequeno jardim, sempre conversando em tom normal, tentando dar a maior naturalidade possível às nossas presenças. O guarda, que ultrapassamos uns quinze metros, não notou nada de estranho: éramos mais dois entre os muitos guardas que entravam e saíam. Também viramos à direita. Uma porta aberta, ampla, dava para os chuveiros. Um guarda ao qual os companheiros tinham apelidado de El Chino, e que costumava fazer sentinela em nossa circular, estava tomando banho. Boite gritou para ele: - Ei, Chino, lave bem as costas! Aquele grito diminuiu nossa tensão. Foi como um alívio, uma válvula de escape. Chegamos ao patiozinho dos fundos. Um guarda alto, loiro,sentado num tamborete, recostado contra a parede, cantava décimas, a música típica do interior cubano. Lá o mato crescido ia até quase o meio das pernas. Não vimos nem rastro de Brito e Ulisses, que já haviam passado. Boitel e eu procuramos a trincheira, mas devido à obscuridade e ao mato não a divisamos. Foram momentos angustiosos. Eu disse a Boitel que esperasse um pouco, que ia urinar junto da cerca. Virei de costas para o guarda que estava empolgado pela canção e fingi que urinava.Isso deu tempo a Boitel para deslizar junto da cerca e chegar à trincheira. Quando o vi agachar-se no escuro, fui atrás dele. Tropecei em algo duro e percebi entre o mato umas rodas denteadas de ferro; estavam umas sobre as outras e quase tropeço de novo em outro monte delas. A operação de passar pela trincheira fez meu pé doer a ponto de eu ter vontade de gritar; suei frio, em grande quantidade. Boitel me esperava do outro lado. Viramos à direita, passando por perto da casa do tenente Antônio "La Somba", como o chamavam aludindo com esse apelido à sua sinistra natureza repressiva. Ulisses e Brito estavam nos esperando ali. Os cães do tenente Antônio ladraram, mas não eram eles que nos preocupavam, mas sim os sabujos do Ministério do Interior. Fomos avançando junto a uma fileira de arbustos que a patrola havia poupado. Mesmo que acendesse, o holofote do quartel já não podia nos delatar. Caminhamos mais de cem metros paralelos ao terreno limpo; afinal, viramo-nos para dar uma olhada nas silhuetas imponentes das circulares. A nossa, mais próxima de todas, era impressionante com as janelas iluminadas mortiçamente pelas lampadinhas da torre central. Foi um momento muito emocionante, inesquecível, nenhum preso tinha podido ver as circulares daquela perspectiva. O mito da fuga impossível acabava de fenecer, morto por nós, que havíamos demonstrado que a fortaleza era vulnerável. Começamos a subir o morro. Fizemos uma breve parada a fim de não deixar "pistas" para os cães; três pedaços de pano sobre os quais colocamos cuidadosamente pimenta-do-reino em pó. Quando os cães se aproximassem, farejando, daquele modo característico que os faz aspirar o ar com força, ficariam com os narizes cheios de pimenta, começariam a espirrar e seu faro seria anulado. Colocamos os panos separados. Chegamos a um desnível muito abrupto do terreno. Meu tornozelo doía terrivelmente e a pressão que a inflamação estava fazendo tornava o andar ainda mais doloroso. Paramos um instante, o tempo necessário para pegar a faca e cortar a bota, que me oprimia até quase as pontas dos dedos. A lua derramava sua luz prateada sobre o chão amarelado. Estávamos em um descampado e, se bem que não houvesse casas por perto, sem a proteção dos arbustos sentíamo-nos mais expostos ao perigo, pois qualquer camponês ou miliciano poderia passar por aqueles lados e nos ver. Deitamo-nos no chão, examinando os arredores. Foi Brito que disse que devíamos atravessar aquele trecho correndo. Como eu não podia correr, Brito carregou-me nas costas e com uma agilidade incrível, com uma força que não sei de onde tirou, correu quase duzentos metros comigo. A primeira estrada atravessou-se diante de nós. Larga, com duas valetas nuas dos lados, e cercas de arame para o gado não fugir. A travessia tinha que ser feita com o maior cuidado, para evitar que um veículo nos viesse em cima. Escutamos um motor ao longe e achatamo-nos ainda mais no chão, escondendo-nos entre o mato. Aproximava-se. Um caminhão soviético Zil passou como um bólido, erguendo uma imensa nuvem de pó amarelo. - Vamos, agora! Assim dizendo e fazendo, Boitel deslizou, de barriga para cima, por baixo do último arame da cerca. Depois eu, Ulisses e Brito na retaguarda. Passamos para o outro lado da estrada rolando sobre nossos corpos, já que se o fizéssemos de pé poderíamos ser vistos de longe. Antes de entrarmos no bosquinho de pinheiros, colocamos outros pedaços de pano com pimenta-do-reino para os sabujos. Já não se ouviam latidos. A noite deslizava tranqüila, silenciosa. Apareceu outra estrada. Estávamos no rumo e nosso mapa assinalava com exatidão todos os detalhes de que precisávamos para nos orientar. Deixamos à direita um barracão rústico, com telhado de folhas de palmeira. Os cães da casa nos farejaram e latiram. A vegetação começou a mudar e apareceram os mosquitos, em nuvens, agressivos.Aproximávamo-nos dos pântanos do Júcaro, na desembocadura do mesmo rio. Era esse o nosso objetivo e a embarcação deveria estar lá à uma da madrugada. Tudo parecia em calma. Os ruídos naturais da noite, os barulhos de insetos, o coachar de alguma rã... A água do pântano chegava aos nossos tornozelos. Fazia frio e um ventinho noroeste começava a soprar com certa força. Dez minutos e Brito não voltava. Começamos a nos impacientar. Por que estava demorando tanto? Ulisses ofereceu-se para ir procurá-lo, mas Boitel propôs que esperássemos mais cinco minutos. Afinal, Brito apareceu e nos informou. Estivera observando uma embarcação, mas tinha entrado pelo rio. Estávamos exatamente em frente do local do encontro. Boitel olhou o relógio que o gradeiro havia nos dado. Tínhamos chegado meia hora antes. Mais meia hora, pensávamos, e nossa embarcação estaria ali, ao amanhecer estaríamos a muitos quilômetro da ilha, em alto-mar, proa na direção de Grand Caimán, o rumo do qual menos podiam desconfiar os nossos inimigos, que imaginariam que teríamos ido para o norte, rumo a Cuba, ou para o oeste, rumo ao México. Mas nosso barco não chegava Uma hora... uma e meia... duas... Às três da madrugada o desânimo começou a tomar conta de nossas almas. O que podia ter acontecido? Estávamos no lugar exato, no dia e hora combinados. Não compreendíamos. O pessoal que devia vir nos apanhar sabia a que nos expúnhamos, se fôssemos capturados. À morte, quase certamente. Às seis da manhã, quando surgiram os primeiros albores e o ruído dos milicianos do outro lado do rio chegava até nós como um murmúrio distante, retiramo-nos da praia. O pessoal do barco havia ficado de vir dois dias ao encontro. Chegariam naquela noite, com certeza. Pelo menos, queríamos acreditar nisso. Teríamos que estar de novo, dentro de dezoito horas, no mesmo lugar. Deus nos ajudaria e confiei-me a Ele de novo, enquanto o sol tingia de vermelhão as nuvens altíssimas e algumas gaivotas cortavam o ar.
Posted on: Sun, 06 Oct 2013 22:31:00 +0000

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