DONA AMANDA – A ÚNICA AVÓ QUE CONHECI Quase nunca me lembro - TopicsExpress



          

DONA AMANDA – A ÚNICA AVÓ QUE CONHECI Quase nunca me lembro de meus sonhos. Contudo, tenho um sonho recorrente: nele, minha avó está parada, me olhando, vestida com um vestido preto de bolinhas brancas que ela usava. Ela não diz nada e eu também não. É um sonho mudo, porém, de certa forma, colorido. Fico às vezes pensando do porquê desse sonho acontecer sempre do mesmo jeito e sem maiores motivos. Eu queria sonhar com outros momentos felizes, mas sonho a mesma coisa. Sabe-se lá. Talvez se eu conversasse com ela no sonho: “Pô, vó, fala alguma coisa! O que você quer dizer?” Mas... ela não fala e eu não pergunto. Hoje sonhei com ela de novo. Resolvi escrever sobre essa mulher, que é a única com quem passo a noite... Alguns primos que tenho como amigos aqui no Face certamente vão se recordar dela como eu me recordo. Ela nasceu no século XIX. 1892, acho eu. Quando mocinha, foi forçada, segundo a mentalidade da época, a se casar, contra a sua vontade, com um homem de que não gostava. Era um homem que se podia dizer poderoso, pois era letrado e dono de um cartório. Ela se rebelou e o abandonou, sujeitando-se a ser considerada mal vista pela sociedade cruel daquele tempo, que considerava isso uma atitude um pouco pior do que ser prostituta. Tomou a atitude que a sua consciência ordenou e pagou o preço de sua decisão. Tinha ética, assumiu o encargo derivado de suas escolhas. Pouco tempo depois, encontrou-se com meu avô, outro vida-torta, fugido daqui do Estado de São Paulo, e acabaram se unindo. Provavelmente, meu avô a encantou não porque era loiro e tinha olhos azuis da cor do céu, mas sim porque seria o único homem sem condições pessoais de julgá-la e condená-la. Não sei se foram felizes, mas pelo menos ele a salvou da indigência moral e lhe deu uma família com 7 filhos. Chegaram a construir algum patrimônio, tinham um hotel bastante movimentado quando do “rush” do café no norte do Paraná. Todo esse patrimônio se evaporou quando meu avô teve tuberculose, doença fatal na época, de tal forma que quando meu avô enfim veio a morrer não restava mais nada, a não ser mais uma criança recém-nascida, minha mãe, que não pode conhecer o pai. Foram tempos terríveis, passaram fome na época da Guerra. Não havia assistência social, bolsa-família, nada que minorasse a sua vergonhosa pobreza. Porém, foi nessa adversidade que ela provou seu valor. Ela criou sozinha os 7 filhos e, conquanto fosse ela própria analfabeta, deu-lhes educação, inclusive às mulheres, que tradicionalmente não se tinha o costume de se enviar à escola. Minha mãe estudou, ainda que não tivesse dinheiro nem mesmo para comprar um simples lápis de cor. Além de estudar, todo mundo tinha que trabalhar. Aos 9 anos, minha mãe já se matava, ajudando minha avó no restaurante da estação da estrada de ferro de Wenceslau Bráz. Quando acabava o almoço, ela corria para pegar o trem que a levaria à estação de Pinhalão, onde ficava a escola. Minha mãe ia para a escola de trem... Mas a roda do mundo gira, a fortuna é cambiante. Quem trabalha com afinco e se dedica, um dia pode ser premiado. Aconteceu, pois, que 30 anos depois, quando o ramal ferroviário foi desativado, a companhia se desfez de todos os bens, inclusive da estação da estrada de ferro onde minha mãe descia toda tarde na sua infância para estudar. Era uma estação muito bonita, enorme, com casas, galpões; no meu conceito, chique. Quem comprou a estação e todos os imóveis adjacentes foi, por ironia do destino, uma filha de minha avó, tia Antonieta, que com justiça tinha tido a merecida ascensão social. Na estrada de ferro onde minha avó trabalhou como virtual escrava e onde minha mãe desperdiçou a sua triste infância, agora minha avó era a mãe da dona de tudo. Nunca vi uma pessoa chorar tanto em minha vida quanto minha avó, quando se deu conta disso. Foi uma benção que ela ainda estivesse viva quando isso aconteceu e provar o sabor da vitória. O que ela não pode saber é que seu nome é lembrado com carinho até hoje por quem a conheceu, principalmente pelos doces que fazia na padaria com que finalmente ganhou a vida anos depois da morte de meu avô. Eu tive uma outra avó, Macária, rica e a quem não conheci, que é nome de bairro e de escola, mas as pessoas se deliciam mesmo é quando digo que sou neto da Dona Amanda: “você é neto dela??? Ai que saudade dos doces da sua avó! Ela era maravilhosa!” Sim, ela era maravilhosa. Mas não pelos doces e pelos pães que preparava. Eu, que tenho o sangue dela nas minhas veias, reconheço nela um valor muito maior e a prova disso está na memória que guardo da última noite dela neste mundo. Quando ela adoeceu, tomada por um câncer sem cura, foi levada a contragosto para a casa de minha mãe, para ser cuidada. Em seu leito de morte, com as últimas forças que tinha, passou a sua derradeira noite a rezar. Não pediu nada para si. Suas orações, bem baixinhas, que entraram pela madrugada e que ela pensou que nós não estávamos ouvindo, foram pelos filhos, netos, bisnetos. Eram muitos e ela pediu para cada um deles, não se esqueceu de nenhum, inclusive para mim, é claro. Mas, o seu último e mais dolorido pedido foi para Ademir, o seu filho adotivo, a quem seu coração grandioso, mesmo na miséria de outros tempos, ainda se deu, se repartiu, se preocupou. Morreu no dia seguinte. Era o ano de 1976, já lá se vão 37 anos. Não, não precisa falar nada, vó. Seu silêncio é eloquente...
Posted on: Wed, 09 Oct 2013 17:43:48 +0000

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