ESQUERDA X DIREITA: MAIS RESPOSTAS QUE PERGUNTAS? Bolívar - TopicsExpress



          

ESQUERDA X DIREITA: MAIS RESPOSTAS QUE PERGUNTAS? Bolívar Lamounier 06.07.13 A incessante invocação da dicotomia esquerda X direita pelos partidos de esquerda pode ser analisada de vários pontos de vista. Há nela uma tremenda escamoteação de fatos históricos que deixaram de lhes ser úteis ou agradáveis. Há um lado cômico. E há um sem número de falcatruas intelectuais. O modelo soviético, com tudo o que teve de pavoroso, tinha uma qualidade incontestável: era simples. Qualquer um o entendia. Seu dever de casa era simples e prático. Primeiro, tomar o poder. O processo era deflagrado por um pequeno grupo de revolucionários profissionais: os “poucos, mas bons” de que falava Lenin. Na primeira oportunidade esse grupo tomava a máquina do Estado, montava uma polícia secreta, liquidava os concorrentes políticos reais ou imaginários e se autoproclamava uma “ditadura do proletariado”. Segundo, “construir o socialismo”; leia-se a estatizar os meios de produção. Fábricas, bancos, fazendas, tudo passava ao controle do Estado. O modelo básico era esse. Em alguns casos o processo revolucionário foi mais amplo. China e Cuba são exemplos, mas não foram diferentes quanto ao resto. Dentro desse quadro, a contraposição esquerda X direita era automática: esquerda eram os comunistas, direita era o resto. Na Europa Ocidental, os partidos comunistas adotavam um linguajar mais flexível quando praticavam a política chamada de “frente única”. Nesse caso os socialistas e alguns outros grupos recebiam a dignidade de pertencer à esquerda. Mesmo em relação à direita, com o aparecimento do fascismo, algumas nuances precisaram ser feitas para não misturar a direita “meramente” tradicional ou conservadora à ultradireita violenta. Após a Segunda Guerra, a distinção esquerda x direita ficou quase totalmente superposta ao antagonismo Leste X Oeste. Comunismo e capitalismo turbinaram-se mutuamente e se transformaram no grande maniqueísmo da era moderna. Em nome dele, soviéticos, chineses e cubanos levaram a mística revolucionária aos quatro cantos do mundo, dezenas de países experimentaram profundas divisões políticas no plano interno, as duas potências se armaram até os dentes e os soviéticos, num momento de desatino, chegaram até a instalar mísseis nucleares em Cuba, visando os EUA. Durante muito tempo, portanto, a esquerda que contava era a comunista, abrigada sob o guarda-chuva da URSS. Por “projeto de esquerda” entendia-se um modelo próximo ao soviético. Esse projeto foi por água abaixo em três etapas. Primeiro, a chegada ao público de informações sobre a extensão que o terror totalitário atingira na URSS; para quem tinha dúvidas, o fato que a escancarou foi a denúncia dos crimes de Stalin por Kruschev durante o 20º Congresso do PC soviético. Segundo, a divulgação de informações sérias sobre vários países ditos socialistas mostrando a autotransformação dos aparelhos do partido em oligarquias burocráticas e corruptas: a “nova classe” a que Milovan Djilas se referiu já nos anos 50. Terceiro, a crescente convicção de que o atraso econômico e tecnológico de tais países só poderia ser superado mediante alterações profundas, que mexeriam com a própria natureza do sistema; incapazes de se auto-reformarem, a URSS e todos os seus satélites no Leste viram-se forçados a importar alimentos e outros itens básicos e chegaram aos anos 80 devendo cifras astronômicas a bancos ocidentais. Quarto, a guinada chinesa; conscientes de estarem metidos na mesma arapuca, os dirigentes da China “fugiram para a frente”: fizeram do limão totalitário a limonada de um capitalismo autoritário, algo como um mega-regime Pinotchet. Meu objetivo no apanhado acima foi delinear a ideia de “esquerda” que predominou durante a maior parte do século, estreitamente ligada ao comunismo. Mas, claro, não foi só devido ao colapso daquele modelo que a esquerda de tipo soviético perdeu o glamour. Um relato mais completo precisaria tocar em mudanças econômicas, sociais e comportamentais de grande importância que ocorreram em praticamente todo o mundo. Deveria também ressaltar a enorme convergência havida no terreno da política prática, à medida em que muitos objetivos antes tidos como “de esquerda” entraram permanentemente para a agenda de governos de direita – e vice-versa. O ponto chave, no entanto, é bem simples: a antiga dualidade esquerda x direita perdeu toda a sua razão de ser. A hipercomplexa contraposição leste x oeste que a alimentava, e que dela se alimentava, deixou simplesmente de existir. Deixou de existir como o grande eixo estruturador do imaginário político, esvaiu-se quanto aos velhos conteúdos, mas não desapareceu no plano da linguagem política. As situações variam de um país a outro, vou tocar só no caso brasileiro. Entre nós, tudo se passa como se a “direita” tivesse desaparecido: por várias razões, é raro um político ou um líder de qualquer setor bater no peito e dizer “eu sou de direita”. E o lado esquerdo do espectro está congestionado como nunca. Este ponto parece-me merecer uma boa discussão, e atrevo-me a sugerir um ponto de partida. Não deixa de ser curioso o uso generalizado da referida dicotomia numa época em que, como assinalei, seu referente histórico deixou praticamente de existir e em que muitas políticas públicas relevantes, desde logo as de caráter social, se tornaram convergentes. Nos dias de hoje, o que faz de um esquerdista um esquerdista? Ou, dizendo-o de outro modo: se “esquerda” deixou de significar “estatização dos meios de produção”, que objetivos ou programas caracterizam COM EXCLUSIVIDADE um político ou intelectual de esquerda? Também aqui, creio que a resposta é simples. Nove em dez esquerdistas dirão que é a luta contra a desigualdade social. Foi Bobbio, se não me engano, quem disse isso com pompa e circunstância. Mas que tem de exclusivamente esquerdista a luta contra a desigualdade? A meu ver, nada. Volta e meia eu vejo intelectuais de esquerda dizerem que a esquerda é “mais sensível” que a direita no tocante a reduzir desigualdades. É uma afirmação arrojada, para dizer o mínimo. Tomemo-la porém por seu face value; registremos que, à falta de uma justificação melhor e propriamente teórica, muitos esquerdistas invocam o “sentimento”. O que chama a atenção em tais casos é o abandono – inconsciente, sem dúvida- do marxismo. Explico-me. À luz do marxismo, a questão fundamental é a conexão entre o fim e os meios. Na prática, um “esquerdista” ou “progressista” dizer que luta por um fim genérico chamado “a redução das desigualdades” equivale a se declarar “sentimentalmente” solidário com os pobres; daí não se deriva nenhum tipo específico de conhecimento, nenhum programa social particular e nenhuma medida de eficiência. Sim, há na visão originária, a do próprio Marx, um “momento” sentimental, um momento de identificação com a humanidade etc, mas tal sentimento é por si só inócuo. O que lhe confere densidade e relevância prática é a conexão com os meios. O significado relevante da “luta pela redução das desigualdades” consiste portanto em situar-se realística e cientificamente no sentido do progresso histórico etcetc; abreviadamente: implica uma base de conhecimento científico. Não foi por outra razão que Marx submeteu Proudhon, Fourier, Saint-Simon e outros menos votados a um duro tratamento polêmico. Reponho, pois, minha indagação. No Brasil de hoje, o que faz de um esquerdista um esquerdista? Em que base racional os intelectuais e políticos que se dizem de “esquerda”ou “progressistas” se autoatribuem uma superior sensibilidade social e aparentam possuir um cabedal de conhecimentos especialmente relevante, não acessíveis à “direita” com vistas à redução das desigualdades sociais? E mais: inexistindo a referida base racional ou o referido cabedal de conhecimentos, de que base ou substrato cognitivo (ideológico) eles de fato se valem para definir seus objetivos e organizar sua ação política?
Posted on: Sun, 07 Jul 2013 04:42:21 +0000

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