Fragmento XI - do teatro do absurdo - Encontrei o chá. O exato - TopicsExpress



          

Fragmento XI - do teatro do absurdo - Encontrei o chá. O exato sabor de chá que eu procurava há anos. Não procurava, digo, mas esperava. O sabor de chá que esperava que viesse até mim. O sabor de chá que eu esperava sentir nos lábios, depois dos goles, para lamber com a língua e pensar: achei o sabor de chá que eu procurava há anos. É chá-verde, mas não é qualquer um. Vem da China, diz na caixa, e eu sempre passei por ele, mas nunca pensei que o sabor de chá que eu procurava estaria, justamente, na minha cara com um rótulo chinês. Talvez japonês, mas nada disso importa, porque o que importa é o chá e o maneira como as coisas sempre dão um jeito de se encontrar - quando precisam se encontrar é claro, de outra forma não se encontram e eu não entendo porque estou enrolando nisso. Essa semana, na confusão, assim, na pressa, eu peguei uma caixa com vinte saquinhos, vinte saquinhos de chá e joguei na cesta. Eu joguei na cesta que eu carregava nesse mercado que fica bem aqui na rua e que, na verdade, é um empório oriental e eu sempre tive certeza de que envolvido com a máfia, porque uns caras, talvez japoneses, talvez chineses, sempre aparecem de terno e ficam por lá apertando as mangas. Que homens saem de terno para ir a um empório oriental - justamente na minha rua - apertar mangas? Que tempos são esses onde homens de terno apertam mangas com naturalidade e isso parece natural aos outros? De qualquer forma, o chá. Eu procurava esse chá desde que eu e ela fomos há anos em um restaurante japonês há dois quarteirões daqui. Um restaurante japonês com um nome bem japonês, uns donos bem japoneses e uns caras de terno que não sei se apertavam mangas, mas que falavam muito alto sobre a bolsa de valores. Seria estranho se eles discutissem a instabilidade do dólar apertando mangas. Mas nada contra. Cada um sabe o que aperta com as mãos. Mas enfim, fomos eu e ela essa única vez nesse restaurante japonês. Era dia de semana, para lá das nove horas da noite, ela descabelada de um dia inteiro no escritório e eu de terno sem nem pensar em apertar mangas. Eu amava quando ela se descabelava em um dia inteiro no escritório porque aí, quando chegava em casa, me via perambulando pelos cômodos e me abraçava por trás. Montava em minhas costas e cruzava as pernas sobre a minha cintura, como se enlaçasse os pés para me prender ali. Para se prender para sempre em mim. Ela odiava se descabelar e quando me via ali esperando por ela parecia encontrar uma razão para o embaraço de seus cabelos e me apertava como se eu fosse a única coisa que nunca iria lhe escapar. Ela tinha esse medo da textura das coisas. Porque tudo lhe parecia, inevitavelmente, escorregadio. E ela tinha isso de achar que tudo sempre lhe escapava. Ela se doía, numa frequência ensurdecedora, especialmente ao fim do dia. É que, nas costas, ela carregava o peso-fantasma de coisas que a vida lhe arrancou. E existia quase corcunda, quase sempre que se aproximavam os fins de tarde. Nesse dia, o do restaurante, fazia uma semana que ela chegava e pulava em mim e se balançava feito menina, com as pernas soltas, que pareciam infinitamente leves, e ela quase me era toda escorregadia. Saímos para comer. Dessa vez, ultrapassamos o primeiro quarteirão. Ela queria porque queria ir nesse tal lugar. E fomos. Eu apreciando o cheiro, o cheiro que era completamente outro, pairando pelo ar. Nos sentamos nesse restaurante e minha garganta doía, por isso o chá com o gosto gostoso de lamber nos lábios depois de cada gole. O gosto do chá era especialmente bom de lamber nos lábios, que também guardavam o gosto dos lábios dela. Mas, naquela noite, ela mal me lambeu e mal me beijava. Então, acho, o gosto vinha misturado mais como uma lembrança ou como um costume. E seria assim sempre, a partir daquele dia em que, eu lembro, ela pediu uma cerveja coreana. Ela detestava cerveja. Mas por acaso, naquela semana, ela estava estranha a passar pela fruteira da cozinha, parar e ficar a apertar mangas olhando para um ponto fixo no meio do nada. Foi assim, sem entender das mangas, e entre o Ocidente e o Oriente, que ela me deixou...
Posted on: Sun, 10 Nov 2013 10:59:08 +0000

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