Guarita Acho que ele começou em seu trabalho, mais ou menos na - TopicsExpress



          

Guarita Acho que ele começou em seu trabalho, mais ou menos na mesma época em que comecei no meu. O que dividia as empresas onde trabalhávamos, além dos segmentos, é claro, era a rua. Eu exercia minhas funções em uma corretora de valores, enquanto ele era vigilante de uma transportadora de valores. Minha janela ficava de frente para a guarita onde ele cumpria suas oito horas diárias e também em andar semelhante à altura do ponto onde ele permanecia. Deste modo, pela parede envidraçada e muito transparente do meu escritório, eu o via através daquela espécie de varanda onde precisava ficar para vigiar as entradas e saídas dos carros cheios de dinheiro alheio. Em pouco tempo, travamos uma amizade. Não conversávamos, pois a distância e as proteções (principalmente em se tratando de mim) não permitiam. Eu nem sei se ele tinha permissão para falar durante o trabalho. Acredito que não. O tempo passou e as estações mudaram. De repente, as folhas caíram e o vento soprou. Inverno dolorido que se instaurou. Por vezes, eu o via chegar encorujado, acenar para mim ainda da rua e entrar portão adentro render seu colega e exercer seu posto. Cada um de nós tocávamos nossas tarefas, mas a cordialidade e a amizade silenciosas não nos permitia sair de nossos trabalhos sem um aceno, sem um sorriso. Ele era meu amigo, eu tinha a certeza disso. Vi quando ele chegou vestindo um grosso casaco da empresa entrou portão adentro e logo saiu apressado. Não deixou de me acenar, mas foi tudo como em um relâmpago. Eu sabia que ele tinha pressa e não tentei empatar seu destino com mais acenos e gestos. Não trabalhou naquele dia. Mas no outro chegou com um sorriso de orelha a orelha. Acenou para mim, juntou as mãos e prestou uma espécie de reverência aos céus. Ele estava feliz e eu fiquei muito feliz também. Trabalhou o dia todo sorrindo muito mais do que em outros dias. No outro dia, ele chegou em um táxi. O tempo estava horrível e começava a chover. Mesmo assim, ele desceu, circulou o carro e abriu uma das portas traseira. Uma mulher linda estava lá dentro e em seu colo havia um recém-nascido. A mulher me acenou também e sorriu. Ele levantou o dedo indicador e fez o número um. Eu entendi tudo. Meu amigo ganhara seu primeiro filho. Comemorei aquele dia como se tivesse ganhado um prêmio. Ele voltou mais tarde e trabalhou. Quando fui para casa, à noite, ele ainda estava lá, com certeza, compensando as horas gastas para ir à maternidade. Chovia muito. Duas semanas voaram. Esfriou ainda mais. A neve começou a cair como não caía há mais de meio século. Ele estava muito agasalhado e portava sua arma pesada. Ferramenta de trabalho. Sempre sorrindo. Acenou para mim que respondi através da vidraça e elevei uma grande xícara de café quente e forte que tomava naquele momento como em um brinde. Ele tocou o quepe com dois dedos em uma espécie de continência e, neste instante eu o vi caindo de sua torre como uma folha morta pelo frio. Houve muitos disparos. Um caminhão gigante bateu contra o muro imenso da empresa e entrou. Ele jazia no chão e a calçada de pedra coberta de gelo ficou tingida com seu sangue que jorrou como em uma espécie de expiação. Ele fora imolado. Tudo era caos. Em mim, só tristeza. Ele se foi. Perdi meu amigo de tanto tempo. Havia uma guerra idiota e nós não sabíamos. Não fazíamos parte dela. Não voltei mais à corretora. Aquilo foi o fim para mim. Nós dois aramos irmãos de almas, disso eu tenho certeza. Desempenhávamos as mesmas funções, cuidávamos de coisas alheias e púnhamos nossas vidas em perigo por valores que não nos interessava. Ele se foi e a empresa ficou. Eu me fui e a empresa logo encontrou um substituto. Tudo voltou ao normal para os praticantes do pragmatismo. Em mim, há um vazio desde aquele dia que sei, jamais será preenchido. Sua imagem e sorriso guardo comigo. Procuro, em vão, não pensar na mulher e na criança. Se insistir nesta ideia, sei que não vou suportar. Jossan Karsten
Posted on: Sat, 31 Aug 2013 00:26:43 +0000

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