História Universal da Infâmia – Jorge Luis Borges O Espantoso - TopicsExpress



          

História Universal da Infâmia – Jorge Luis Borges O Espantoso Redentor Lazarus Morell A CAUSA REMOTA Em 1517, o padre Bartolomé de las Casas compadeceu-se dos índios que se consumiam nos penosos infernos das minas de ouro antilhanas, e propôs ao imperador Carlos V a importação de negros, que se consumissem nos penosos infernos das minas de ouro antilhanas. A essa curiosa espécie de benfeitor devemos infinitos fatos: os blues de Handy, o sucesso alcançado em Paris pelo pintor-doutor uruguaio D. Pedro Figari, a boa prosa agreste do também oriental D. Vicente Rossi, a dimensão mitológica de Abraham Lincoln, os quinhentos mil mortos da Guerra da Secessão, os três mil e trezentos milhões gastos em pensões militares, a estátua do imaginário Falucho, a ainclusão do verbo linchar na décima terceira edição do Dicionário da Academia Espanhola, o impetuoso filme Aleluya, a fornida carga de baionetas levada por Soler à frente de seus Pardos y Morenos em Cerrito, a graça da senhorita de Tal, o mulato que assassinou Martín Fierro, a deplorável rumba El Manisero, o napoleonismo embargado e encarcerado de Toussaint Louverture, a cruz e a serpente no Haiti, o sangue das cabras degoladas pelo machado dos papaloi, a habanera mãe do tango, o candombe. E ainda mais: a culpável e magnífica existência do cruel redentor Lazarus Morell. O LUGAR O Pai das Águas, o Mississipi, o rio mais extenso do mundo, foi o digno teatro desse incomparável canalha. (Álvarez de Pineda o descobriu e seu primeiro explorador foi o capitão Hernando de Soto, antigo conquistador do Peru, que distraiu os meses de prisão do Inca Atahualpa ensinando-lhe o jogo de xadrez. Morreu, e lhe deram como sepultura as suas águas.) O Mississipi é rio de peito largo; é um infinito e obscuro irmão do Paraná, do Uruguai, do Amazonas e do Orinoco. É um rio de águas mulatas; mais de quatrocentos milhões de toneladas de lama insultam anualmente o golfo do México, descarregadas por ele. Tanto lixo venerável e antigo construiu um delta, onde os gigantescos ciprestes dos pântanos crescem sobre os despojos de um continente em perpétua dissolução, e onde labirintos de barro, de peixes mortos, de juncos, dilatam as fronteiras e a paz de seu fétido império. Mais acima, na altura do Arkansas e do Ohio, também se alongam as terras baixas. Habita-as uma estirpe amarelenta de homens esquálidos, propensos à febre, que olham com avidez as pedras e o ferro, porque entre eles não há outra coisa senão areia e madeira e água turva. OS HOMENS Em princípios do século XIX (a data que nos interessa), as vastas plantações de algodão que havia nas margens eram trabalhadas por negros, de sol a sol. Dormiam em cabanas de madeira, sobre o chão de terra. Fora da relação mãe-filho, os parentescos eram convencionais e obscuros. Nomes tinham, mas podiam prescindir dos sobrenomes. Não sabiam ler. Sua enternecida voz de falsete cantava num inglês de vogais lentas. Trabalhavam em filas, curvados sob o rebenque do capataz. Fugiam, e homens de barba saltavam sobre cavalos de raça, e fortes cães de caça os rastreavam. A um sedimento de esperanças bestiais e medos africanos haviam agregado as palavras da Escritura: sua fé por conseguinte era a de Cristo. Cantavam concentrados e em grupos: Go down Moses. O Mississipi servia-lhes de magnífica imagem do sórdido Jordão. Os proprietários dessa terra trabalhadora e dessas levas de negros eram ociosos e ávidos senhores de cabeleira pomposa. Habitavam imensos casarões voltados para o rio – sempre com um pórtico pseudogrego de pinho branco. Um bom escravo custava-lhes mil dólares e não durava muito. Alguns cometiam a ingratidão de adoecer e morrer. Devia-se tirar dessas incertas criaturas o maior rendimento. Por isso conservavam-nos nos campos desde o primeiro sol até o último; por isso exigiam das terras colheita anual de algodão, ou fumo, ou açúcar. A terra, fatigada e manuseada por essa cultura impaciente, ficava em poucos anos exausta: o deserto confuso e enlodaçado enfiava-se pelas plantações. Nas chácaras abandonadas, nos subúrbios, nos canaviais estreitos e nos abjetos lodaçais, viviam os poor whites, a canalha branca. Eram pescadores, vagos caçadores, ladrões de cavalo. Costumavam mendigar pedaços de comida roubada aos negros e mantinham em sua prostração um orgulho: o do sangue sem tisne, sem mescla. Lazarus Morell foi um deles. O HOMEM Os daguerreótipos de Morell, que costumam publicar as revistas americanas, não são autênticos. Essa carência de genuínas efígies de homem tão memorável e famoso não deve ser casual. E verossímil supor que Morell se tenha negado à chapa brilhante; essencialmente para não deixar inúteis rastros e, de passagem, para alimentar seu mistério... Sabemos contudo que não foi favorecido quando jovem e os olhos demasiado próximos e os lábios finos não predispunham a seu favor. Os anos, porém, conferiram-lhe essa peculiar majestade que têm os canalhas encanecidos, os facínoras venturosos e impunes. Era um antigo cavalheiro do Sul, apesar da infância miserável e da vida afrontosa. Não desconhecia as Escrituras e pregava com singular convicção. Eu vi Lazarus Morell no púlpito – anota o dono de uma casa de jogo em Baton Rouge, Louisiana – e escutei suas palavras edificantes e vi lágrimas acudirem a seus olhos. Sabia que era adúltero, ladrão de negros e assassino perante o Senhor, mas também meus olhos choraram. Outro bom testemunho dessas efusões sagradas é o que subministra o próprio Morell. Abri ao acaso a Bíblia, dei com um conveniente versículo de São Paulo e preguei uma hora e vinte minutos. Tampouco desperdiçaram esse tempo Crenshaw e os companheiros, porque levaram com eles todos os cavalos do auditório. Nós os vendemos no Estado de Arkansas, a não ser um baio muito brioso que reservei para meu uso particular. Agradava também a Crenshaw, mas eu fiz ver a ele que não lhe servia. O MÉTODO Os cavalos roubados em um Estado e vendidos em outro foram apenas uma digressão na carreira delinqüente de Morell, porém prefiguraram o método que agora lhe assegura seu lugar privilegiado em uma História Universal da Infâmia. Esse método é único, não só pelas circunstâncias sui generis que o determinaram, como também pela abjeção que requer, pelo fatal manejo da esperança e pelo desenvolvimento gradual, semelhante à atroz evolução de um pesadelo. A1 Capone e Bugs Moran operam com ilustres capitais e com metralhadoras servis numa grande cidade, porém seu negócio é vulgar. Disputam-se um monopólio, e isso é tudo... Quanto a número de homens, Morell chegou a comandar uns mil, todos juramentados. Duzentos integravam o Alto Conselho, e este promulgava as ordens que os restantes oitocentos cumpriam. O risco recaía nos subalternos. Em caso de rebelião, eram entregues à Justiça ou arrojados à correnteza do rio de águas pesadas, com uma pedra presa nos pés. Eram, com freqüência, mulatos. Sua facinorosa missão era a seguinte: Percorriam – com algum momentâneo luxo de anéis, para inspirar respeito – as vastas plantações do Sul. Escolhiam um negro infeliz e propunham-lhe a liberdade. Diziam-lhe que fugisse de seu senhor, para ser vendido por eles uma segunda vez, em alguma propriedade distante. Dar-lhe-iam então uma percentagem do preço de sua venda e lhe facultariam a próxima evasão. Iriam conduzi-lo, afinal, a um Estado abolicionista. Dinheiro e liberdade, dólares de prata bem sonantes e liberdade, que maior tentação podiam oferecer-lhes? O escravo atrevia-se a sua primeira fuga. O caminho natural era o rio. Uma canoa, o porão de um vapor, uma barcaça, uma balsa grande como o céu, tendo na extremidade uma cabana ou tendas de lona muito altas; o lugar não importava, importava apenas saber-se em movimento e seguro sobre o infatigável rio... Vendiam-no em outra plantação. Fugia outra vez para os canaviais ou barrancos. Então, os terríveis benfeitores (dos quais já começava a desconfiar) aduziam gastos obscuros e declaravam que tinham de vendê-lo uma última vez. Ao regressar dariam a ele a percentagem das duas vendas e a liberdade. O homem deixava-se vender, trabalhava algum tempo e desafiava na última fuga o risco dos cães de caça e dos açoites. Regressava com sangue, com suor, com desespero e com sonhos. A LIBERDADE FINAL Falta considerar o aspecto jurídico desses fatos. O negro não era posto à venda pelos sicários de Morell antes que o dono primitivo houvesse denunciado sua fuga e oferecido uma recompensa a quem o encontrasse. Quem quer que fosse podia então retê-lo, de modo que sua venda posterior era abuso de confiança, não roubo. Recorrer à justiça civil era gasto inútil, porque os danos não eram pagos nunca. Tudo isso era muito tranqüilizador, mas não para sempre. O negro podia falar; o negro, de puro agradecimento ou infelicidade, era capaz de falar. Umas rodadas de uísque de centeio no prostíbulo de El Cairo, Illinois, onde o filho de uma cadela nascido escravo iria malgastar o dinheiro que eles não lhe tinham de dar, e transpirava o segredo. Nesses anos um Partido Abolicionista agitava o Norte, uma turba de loucos perigosos que negavam a propriedade e pregavam a liberdade dos negros, incitando-os a fugir. Morell não ia deixar-se confundir por tais anarquistas. Não era um yankee, era um homem branco do Sul, filho e neto de brancos, e esperava retirar-se dos negócios e ser um cavalheiro, com léguas de algodoal e as curvadas filas de escravos. Com sua experiência, não estava para riscos inúteis. O fugitivo esperava a liberdade. Então os mulatos nebulosos de Lazarus Morell transmitiam entre si uma ordem que podia não passar de uma senha e o livravam da vista, do ouvido, do tato, do dia, da infâmia, do tempo, dos benfeitores, da misericórdia, do ar, dos cachorros, do universo, da esperança, do suor e dele mesmo. Um balaço, uma punhalada baixa ou um golpe, e as tartarugas e pargos do Mississipi recebiam a última informação. A CATÁSTROFE Servido por homens de confiança, o negócio tinha de prosperar. Em princípios de 1834, uns setenta negros já tinham sido emancipados por Morell, e outros dispunham-se a seguir esses precursores ditosos. A zona de operações sendo maior, era necessário admitir afiliados. Entre os que prestaram juramento havia um rapaz, Virgil Stewart, de Arkansas, que se destacou desde logo pela crueldade. Era ele sobrinho de um fazendeiro que perdera muitos escravos. Em agosto de 1834, rompeu seu juramento e delatou Morell e os outros. A casa de Morell em Nova Orleans foi cercada pela Justiça. Morell, por imprevisão ou suborno, pôde escapar. Três dias passaram. Morell esteve escondido esse tempo numa casa antiga, de pátios com trepadeiras e estátuas, na rua Toulouse. Parece que se alimentava pouco e ficava a passear descalço pelos grandes dormitórios escuros, fumando pensativos cigarros. Por um escravo da casa remeteu duas cartas à cidade de Natchez e outra a Red River. No quarto dia entraram na casa três homens que com ele ficaram discutindo até amanhecer. No quinto, Morell levantou-se quando escurecia e pediu uma navalha e fez cuidadosamente a barba. Vestiu-se e saiu. Atravessou com lenta serenidade os bairros do Norte. Já em pleno campo, costeando as terras baixas do Mississipi, andou mais depressa. Seu plano era de uma coragem bêbada. Pensava aproveitar os últimos homens que ainda lhe prestavam reverência: os serviçais negros do Sul. Estes haviam visto fugir seus companheiros e não os haviam visto voltar. Acreditavam, portanto, em sua liberdade. O plano de Morell era o de uma sublevação total dos negros, a tomada e o saque de Nova Orleans e a ocupação de seu território. Morell, caído e quase desfeito pela traição, meditava uma resposta continental: uma resposta em que o criminoso se exaltava até a redenção e a história. Dirigiu-se com esse fim a Natchez, onde estava mais enraizada sua força. Copio sua narração dessa viagem: Caminhei quatro dias antes de conseguir um cavalo. No quinto, descansei próximo a um riacho para abastecer-me de água e sestear. Estava sentado num tronco, olhando o caminho percorrido até então, quando vi aproximar-se um cavaleiro numa montaria escura de bom aspecto. Assim que o vi, determinei tomar-lhe o cavalo. Pus-me de pé, apontei em sua direção uma bela pistola de tambor e dei-lhe ordem para apear. Assim o fez, e tomando na canhota as rédeas, mostrei-lhe o riacho e ordenei que caminhasse adiante. Andou umas duzentas varas e se deteve. Ordenei que se despisse. Então me disse: Já que está resolvido a me matar, deixe-me rezar antes de morrer. Respondi que não tinha tempo de ouvir suas orações. Caiu de joelhos e lhe disparei um balaço na nuca. Abri-lhe o ventre com um talho, arranquei-lhe as vísceras e afundei-o no riacho. Em seguida, revistei-lhe os bolsos e encontrei quatrocentos dólares e trinta e sete centavos e uma quantidade de papéis que não me demorei lendo. As botas eram novas em folha e me serviam. As minhas, que estavam muito gastas, joguei-as no riacho. Assim obtive o cavalo de que precisava para entrar em Natchez. A INTERRUPÇÃO Morell capitaneando bandos de negros que sonhavam enforcá-lo, Morell enforcado por exércitos negros que sonhava capitanear – sinto confessar que a história do Mississipi não aproveitou essas oportunidades suntuosas. Contrariamente a toda justiça poética (ou simetria poética), tampouco o rio de seus crimes foi sua tumba. A dois de janeiro de 1835, Lazarus Morell faleceu de congestão pulmonar no hospital de Natchez, onde se fizera internar com o nome de Silas Buckley. Um companheiro da enfermaria geral reconheceu-o. A dois e a quatro quiseram sublevar-se os escravos de certas plantações, mas foram reprimidos sem maior efusão de sangue.
Posted on: Fri, 29 Nov 2013 20:05:36 +0000

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