João Guimarães Rosa foi médico. Embora tenha clinicado apenas - TopicsExpress



          

João Guimarães Rosa foi médico. Embora tenha clinicado apenas por dez anos, quando abandonou a profissão para dedicar-se à diplomacia e ao ofício de escritor, entendia como poucos o significado histórico da medicina. Hoje, diante do cenário de desalento que parte considerável da categoria ajudou a construir, valeria dar uma olhada no que esse homem, que amava a companhia de sertanejos, vaqueiros, raizeiros, violeiros e beatos, pensava sobre a arte secular de cuidar e tratar da saúde alheia. Abaixo, um trecho do seu discurso de formatura, proferido nos idos anos 1930. "Ninguem entre nós, para bem de todos, representa os exemplares do medico commercializado, taylorizado, standardizado, aperfeiçoadissima machina mercantil de diagnosticos, ‘un industriel, un exploiteur de la vie et de la mort’, no dizer de Alfred Fouillé, para quem nada significam as dôres alheias, tal qual Chill, o abutre kiplinguiano, satisfeito no jangal faminto, por certo de que depressa todos lhe virão a servir de pasto. Esses justificam a velha frase de Montaigne, ‘Science sans conscience est la ruine de l’âme’, hoje aposentada no archivo dos logares comuns, mas que de verdadeira se faria sublime, si se lhe intercallasse: ‘...et sans amour...’ Porque, dêm-lhe os nomes mais diversos, philantropia tolstoica, altruismo contista, humanitarismo de Kolcsey Ferencz, solidariedade classica ou beneficencia moderna, bondade natural ou caridade theologal, (quanto a nós preferimos chamar-lhe mais simplesmente espirito christão), esse é o sentimento que deverá presidir os nossos actos e orientar as agitações do que seremos amanhã, na vitalidade maxima da expressão, homens no meio dos homens. Demo-nos por satisfeitos com o facultar-nos a profissão escolhida as melhores opportunidades de praticar a lei fundamental do Christianismo e, já que o mesmo Christo, sabedor das profundezas do egoismo humano, estigmatizou-o no ‘... como a ti mesmo’ do mandamento, ampliemos fóra de medida esse eu comparativo, fazendo com que elle integre em si toda a fraternidade soffredora do universo. Tambem, a bondade diligente, a ‘charité efficace’, de Mamoz, será sempre a melhor collaboradora dos clinicos avisados. De distincto patricio contam que, achando-se moribundo, gostava que os companheiros o abanassem. E a um deles, que se offerecera trazer- lhe modernissimo ventilador electrico, capaz de renovar-lhe continuamente o ar do aposento, respondeu, admiravel no esoterismo profissional e sublime na intuição de curador: ‘ – Obrigado; o que me allivia e conforta, não é o melhor arejamento do quarto, mas sim a solicita solidariedade dos meus amigos...’ Não será a capacidade de esquecer-se um pouquinho de si mesmo em beneficio de outrem (digo um pouquinho porque exigir mais seria platonizar esterilmente) que aureola certas personalidades, creando o iatra verdadeiro, o medico de confiança, o medico da familia?" João Guimarães Rosa também estaria envergonhado dos seus pares que protagonizaram a vaia dantesca aos médicos estrangeiros no Ceará.
Posted on: Wed, 28 Aug 2013 10:08:52 +0000

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