Manhã de Natal, 1987. Torpor. O ar-quente abafado sobe - TopicsExpress



          

Manhã de Natal, 1987. Torpor. O ar-quente abafado sobe ligeiramente da cabeça aos pés e parece comprimir meu pulmão, impedindo-me de respirar corretamente. Meu cérebro tece pensamentos rapidamente, alucinando e derretendo, como se estivesse sob o efeito de uma febre de 40ºc e minhas sinapses fritam causando curtos-circuitos na memória. “Que dia é mesmo? Que dia é hoje? Que dia é mesmo hoje?”, uma outra voz me pergunta casualmente. Mas ela não existe e é apenas a consequência dos meus atos, meu karma, minha maldição, minha crise existencial. Estou há exatamente 32 dias, - quase um mês, o ranger dos dentes deixa claro, olha -, sem tomar meus antipsicóticos, meu tarja-preta bloqueador de neurônios e minha dopamina sobe em progressão geométrica me dando um shot de euforia e hiperatividade como se tivessem colocado MDMA em minha bebida. Um rato de cobaia sendo observado andando de um lado para o outro agora, eu me sinto observado, existe alguém aqui além de você?. “Deus? Deus?”. Rio compulsoriamente. Eu posso sentir as vozes, as cenas, os risos voltando. Dizem que se você fala com Deus, é crente, mas se Deus fala com você, é louco.”O que é isso? Você tá me seguindo, porra? Por que você tá me seguindo?”, “Você ouviu isso? Não? Ok, não é nada.”, as frases rotineiras voltarão. O pesadelo. Os flashes, claros e distantes, como raios numa tempestade, de situações que meu superego afasta do meu ego por ser uma orgia estúpida do meu id causada por repressões mas que já não tem mais tanto poder assim para afastar completamente e elas vencem algumas situações em que eu vejo sangues e corpos. Corte os remédios por um tempo e você vê qualquer merda positivista indo pelos ares, qualquer moral de merda voando tão levemente como uma pena jogada do topo do Empire State. A única coisa que sobra é a paranóia, o medo alucinado da própria sombra, o instinto puro e deturpado pronto para agir sob o efeito duma overdose de adrenalina suficiente para parar o coração de um cardíaco. Sangue e corpos. 33 dias e maldade se espalhará completamente como um parasita pela mente, como um vírus. “Filha da puta”, ela é a sedução sem capas e disfarces, o tesão puro, o elo sagrado entre entre o animal e o ser-humano, o toque do homem e Deus n’A criação de Adão de Michelangelo. Por que eu parei de tomar os remédios? Porque eu quero ser um válido, nem que seja para fazer jogar pedra nos outros, correr pelado na rua ou fugir como uma criança assustada de um inimigo imaginário. Qualquer coisa que não se pareça com esse lugar que fede a merda e mijo. Eles dizem que nós somos pacientes mas a verdade é que somos prisioneiros. Eu tô cagando pro bem coletivo assim como estão cagando para mim, preso aqui, em companhia de ratos e baratas. Animais esses que a maioria enoja de pensar mas que eu pego no colo e falto beijar-lhes de inveja por poderem dissolver-se pelo ralo e sumir sem ninguém se dar conta. O inferno sempre esteve sobre a superfície terrestre e eu passei mais de uma temporada desde que cheguei aqui, você entende? Aquele seu sofrimento, eu não sei se chega perto do meu, foi até sorte o cancro que apodreceu sua perna até se tornar um membro indistinguível e putrefado, chegando ao ponto de amputar, porque essa merda que eu tenho carregado comigo é impossível de amputar. Ou amputo minha cabeça inteira ou fico com uma parte e a doença. Seria isso que William Blake chamava de abrir as portas da percepção? Porque eu vejo tudo infinito, pequeno fanático sujo, vejo tudo estupidamente infinito. Qualquer coisa que não tenha a ver com fugir desse lugar que faria a Abissínia parecer o Natal sobre a terra. — Henry Coltrane, Rasgo sujo cobre o título
Posted on: Wed, 06 Nov 2013 18:31:33 +0000

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