Memórias de chumbo 18 (continuação) Por um outro lado menos - TopicsExpress



          

Memórias de chumbo 18 (continuação) Por um outro lado menos luminoso e mais mormaçado do cotidiano de Coqueiral do Brejo, onde pessoas tão principais na vida citadina quando muito eram mencionadas com uma ponta de inveja ou ressentimento, desdobramentos e consequências dos acontecimentos no palco principal surgiam eventualmente na forma de comentários da maledicência mundana menor, que logo se dissipavam na névoa orvalhada da aurora naquela época do ano. Havia, entretanto, palavras como sementes plantadas para se desenvolver e dar ramos, galhos e frutos, nem muitos deles bons, mas todos bem ao gosto local. A mesma observação perspicaz e indiscreta que seguia os movimentos de Cleonice passo a passo, por toda parte, sussurrava maldosas insinuações em ouvidos propícios e assim, sibilina e sorrateira, instalou-se a resistência moral, com quartel general na casinha de Marcolino e Divina, típico casal de vilarejo que circunstâncias peculiares projetam para o miolo do burburinho quase à sua revelia. Os coadjuvantes em questão eram pessoas simples, como está estabelecido e, nesta condição, sem qualquer relevância em seu contexto, mas era o barbeiro e relojoeiro casado com a quituteira que costurava para fora, e formavam o casal ideal para urdir conchavos, ouvir conversas e espalhar boatos, ele com tesoura e pente tricotando cabeças, ela recortando moldes de revistas de moda para mulheres que compunham, por assim dizer, a sociedade coqueiralense. Embora fracos de conteúdo, os dois não desconheciam as essas circunstâncias favoráveis e as exploravam com a sabedoria simplória e bruta do povo miúdo, angariando para si tanto quanto a atenção dos demais, até alguma reverência pelo que seus ouvidos guardavam e pelo que suas línguas soltavam em doses homeopáticas no exercício de seus ofícios. Precisamente, foi numa dessas ocasiões em que a mulher do antigo prefeito, Maricota, tirava prova do vestido que Divina não lograva acertar em seu corpo rechonchudo, quando se tocou de público e pela primeira vez na questão: - Mas Maricota, você experimentou o vestido todo alinhavado tem menos de dez dias – disse tentando não soar mal aos ouvidos da outra. - O que você pensa, Divina? Que eu engordei tanto que o vestido não me cabe mais? – falou, indignada. - Não foi isso que eu disse – desculpou-se a costureira – quem sabe eu me enganei nas medidas? - Ai! Cuidado aí, que assim você me fura toda! – a gordota esperneou e Divina quase engoliu um ou dois alfinetes presos entre os lábios. Prudente, retirou-os e desabou o corpo na poltrona, num desabafo quase para si própria: - Eu e o Marcolino aqui dando duro o dia inteiro para quê? Não entra um tostão a mais nesta casa, vai tudo pelo ralo das despesas. - O que deu em você, Divina? Você nunca foi de se queixar da vida, eu, hein?! – a ex-primeira dama municipal observou, curiosa. Mas a dona da casa ouviu o rangido do portão enferrujado e viu Olívia entrando sem cerimônia, como era natural entre suas freguesas. - Ah, meu Deus do céu! Lá vem a Olívia, e eu não aprontei o bolero. - Boa tarde, Divina, Maricota, como vão as duas? Espero que bem, porque de notícia ruim meu ouvido está farto – Olívia cumprimentou e emendou, sem recuperar o fòlego; - Divina, meu amor, você se incomoda de eu pegar um pouco d’água? Estou mais seca que pimenteira no quintal. - Não, senhora, nada disso – a anfitriã protestou – Na minha casa quem pega água para as visitas sou eu mesma. Pode sentar aqui na poltrona que eu já venho. Você quer água gelada, natural ou temperada? Sem esperar resposta, Divina seguiu para a cozinha pensando a desculpa que daria por não ter aprontado ainda a encomenda prometida por ela mesma para anteontem “sem falta, no mais tardar”. Não contava, então, com o bolo de aniversário, demanda mais urgente e trabalhosa. Havia decidido não aceitar mais pedido de bolo, nem de aniversário, nem de casamento, nem de festa de santo nenhum...nem mesmo o que anualmente ofertava no “arraiá de São João”, tradicional oportunidade para a igreja amealhar uns trocados com as brincadeiras na praça principal, cujo nome ainda era Segismundo Terra, em que pesem as ameaças do coronel Brandão. - Maricota, minha santa, não sei se você está a par dos acontecimentos – Olívia disse, assim que Divina saiu do quarto de costura, a voz carregada de emoção e suspense. - Que acontecimentos, pode-se saber? – devolveu a outra, ressentida desde o golpe militar de não saber mais nenhuma novidade em primeira mão, antes dos mortais comuns. Desde a cassação do marido, andava ressabiada e não confiava em ninguém, menos ainda na mulher do ajudante de ordens do interventor. - Ah – Olívia exclamou, e continuou quase aos cochichos – Muita coisa vai acontecer aqui em Coqueiral do Brejo, muita coisa da política que nem é bom saber, para não se comprometer – concluiu, repetindo o capitão Buarque seu marido. - Mas você parece sempre bem enfronhada nesses assuntos “revolucionários” – comentou com maldade e carregando nas aspas, sutileza desnecessária, posto que o raciocínio de Olívia não alcançava além do óbvio e das platitudes comuns em conversas sociais. Por esta mesma razão, desviou a atenção para Divina, que lhe oferecia o copo d’água fresca, e foi direta: - Querida, e o meu bolero? Você já o aprontou? Faz três dias que estou à espera. - Você me disse que precisa dele para sábado, não foi? – defendeu-se a costureira, e Olívia virou-se para Maricota: - Ela é assim como você também? - Já foi mais prestativa, mas agora... - Que isso, gente? – Divina reagiu – Até abandonei a cozinha só para atender vocês...suas ingratas, isso sim é que vocês são. - Quando posso pegar o bolero, Divina? De verdade mesmo, não essa enrolação. - Amanhã é quinta, não é? Então, passa aqui de tarde, lá pelas quatro, quatro e meia, que o bolero estará esperando. - Quatro ou quatro e meia? – Olívia provocou, mas Divina refugou: - Quatro e meia, pronto. Pode vir às quatro meia. Olívia balançou o indicador na sua direção, em seguida sorriu e se despediu das duas com beijinhos protocolares. Assim que o rangido do portão acusou a partida, Divina segredou: - Esse bolero é a salvação do vestido novo que ela mandou trazer da capital e que o capitão proibiu de usar. Os ouvidos de Maricota se puseram em posição de alerta: - Que vestido? - Ah, um vestido lindo, azul de bolinhas brancas pequeninas – Divina falou, ao tempo em que procurava numa pilha a revista onde havia um semelhante. Folheou com avidez e estendeu a revista: - Esse aqui, olha, só que não é branco. - Esse é o vestido da Marylin Monroe que eu vi no caderno feminino uns domingos atrás – Maricota disse reassumindo a postura de mulher principal na cidade, que recebia o jornal da capital nos fins de semana. Divina esticou o pescoço, examinando o modelo com outros olhos. Não havia quem desconhecesse o nome da atriz americana do momento, embora o único cinema de Coqueiral exibisse tão-somente produções fora do circuito comercial de tão antigas, em cópias gastas e mal conservadas. - Humm... – a costureira murmurou num tom intrigante. - Hum o quê, Divina? Hum o que? Pode desembuchar...o que você está escondendo de mim? - Eu? Escondendo? Nada, nadica de nada, ora era só o que faltava! – fingiu indignação, mas só por conveniência, evitando que a fofoca partisse dela. - Sei, acredito. Mas Olívia não pode usar o vestido porque a esposa do capitão Buarque não vai desfilar por aí de frente única, não é? - Você é que está dizendo, Divina, eu não sei de nada. - Só está costurando o bolero para cobrir as costas da Olívia, sei como é. Só espero, Divina, que você seja discreta assim quando fala de mim com suas outras freguesas. - Que é isso, Maricota?! Está me estranhando? Deus me livre de falar dos outros. Isso aqui – completou, abrangendo o quarto de costura – é como um confessionário. - Menina! Já que você tocou no assunto, sabe o que o padre disse ao bispo no telefone, ontem? – Maricota perguntou e a costureira arregalou os olhos. - Não faço a mínima... - O coronel vai prender o Juvenal a qualquer momento – confidenciou. Divina levou a mão à boca: - Meu Deus do céu! Quem disse isso? - Ah, assim você está querendo muito: eu conto o milagre; o santo, não. Mas pode acreditar que é a mais pura verdade. - Coitada da Lindalva! – deixou escapar. - Não vejo por que. Não é cúmplice do marido? Os dois não mantêm aquela mulher debaixo do mesmo teto? Ela que se cuide, senão o coronel manda prender também. Essa revolução não veio para brincadeiras, Divina, tiro isso pelo que marido, cassado sem mais nem menos, sem defesa – fez uma pausa de reflexão e arrematou: - E o Praxedes nunca foi comunista nem ladrão, só entrou nesse negócio por causa do Juvenal. Agora, bem feito: o pau que dá em Chico, dá em Francisco, não é isso que dizem? N.A.: Continua em breve...
Posted on: Sat, 06 Jul 2013 13:04:23 +0000

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