Memórias de chumbo 20 (continuação) por Luiz Augusto - TopicsExpress



          

Memórias de chumbo 20 (continuação) por Luiz Augusto Gollo Sentadas em torno da mesa de jantar, semblante carregado a sublinhar o silêncio de chumbo que impregnava a casa, Lindalva, Cleonice e Matilde permitiam-se suspiros de desconsolo em sequência, enquanto Reinaldo rondava o telefone sobre a mesinha, num canto da sala, na espera ansiosa da ligação para Marcondes, o advogado cujas palavras não haviam trazido qualquer alívio ou esperança a Juvenal. No momento, porém, parecia ser a tábua de salvação na tormenta em que estava metido o filho do antigo médico desbravador do nosso “hinterland”, como dizia na linguagem rebuscada dos doutores da lei. - Esse telefonema sai ou não sai? – angustiou-se Lindalva, pela enésima vez em dez minutos, e Cleonice pôs a mão sobre seu braço carinhosamente: - Calma, Lindalva, é preciso ter paciência para não piorar as coisas. - É verdade, muita verdade – Reinaldo concordou de seu posto ao lado do telefone. - Não interessa, essa conversa de calma não adianta nada, estou uma pilha de nervos, ora bolas! É o meu marido, não o seu, Matilde, que está preso no quartel. - Se você pensar bem, vai ver que a situação não é tão grave quanto parece à primeira vista – Cleonice se meteu. - Ah não? Podia ser pior, Cleo? Como, posso saber? – Lindalva estava mesmo com os nervos à flor da pele. - Pra começo de conversa, podia ser o Reinaldo aqui presente – ela falou e ele deu um pulo para trás: - Eu?! Que isso, Cleonice? Vira essa boca pra lá, eu, hein? Deus me livre! – e bateu com os nós dos dedos três vezes na mesinha do telefone. - Quero dizer que em se tratando do Juvenal, há uma certa imunidade, pela importância que ele tem aqui em Coqueiral e até na capital. O coronel não é doido de se meter numa camisa de onze varas por essa bobagem. Arriscar até a carreira militar, sei lá! - Bobagem? Bobagem porque não é com você – Lindalva acrescentou. Matilde achou conveniente buscar água com açúcar para acalmá-la. - Onde você vai, Matilde? Não me deixa sozinha numa hora dessas, amiga! - Vou pegar um calmante para você. Lindinha, procure respirar fundo – aconselhou, e deixou os três na sala. O toque do telefone soou mais alto que de costume aos tímpanos nervosos de todos, e Reinaldo tirou o fone do gancho com tanta afoiteza que escapou da sua mão e quicou no chão. Lindalva soltou um grito, Matilde derramou metade da água com açúcar e Cleonice não se conteve: - Gente, pelo amor de Deus! Calma no Brasil, que a Europa está em guerra! - Alô! Sim, telefonista, pode completar a ligação...obrigado – Reinaldo falou, olhando para as três – Alô? Sim, o doutor Mardondes, por favor. É urgente sim, senhora, da parte de Juvenal Terra, de Coqueiral do Brejo. Pois não, eu aguardo – e impôs silêncio com o dedo à frente do nariz. O advogado ouviu a narrativa tensa de Reinaldo com interrupções raras e estratégicas, para detalhes vitais à sua percepção do caso. Juvenal não fora preso em casa nem na fazenda de sua propriedade onde mantinha seus negócios, nem no horário adequado, o comercial, durante o expediente. - Isto já é uma ilegalidade, mesmo em tempos de excepcionalidade institucional – sentenciou, grave, doutor Marcondes. Reinaldo, que jamais supusera haver hora legal para o cidadão ser preso, manifestou estranheza: - Mas doutor, faz diferença isso? O homem não está preso, do mesmo jeito? - Está, evidentemente que está, mas reza a Constituição que, salvo em caso de flagrante, a prisão deve ocorrer em cumprimento a ordem judicial e no horário da vida pública, quer dizer, no tempo em que o acusado está em seus afazeres profissionais; não na calada da noite, no recesso do lar – o advogado de voz pomposa esclareceu. - Mas Juvenal não estava em casa, estava sim no meu bar – ponderou. - Para efeito da lei, é como se em sua residência estivesse, posto que era noite. O direito romano estabelece esta regra elementar desde os tempos imemoriais, meu caro. Até Jesus Cristo foi preso de maneira arbitrária, em lugar público e a céu aberto, porque era noite fechada. Mas o mais grave no caso em tela, no meu entendimento, é que não havia qualquer instrumento legal sustentando a privação de sua liberdade...ou havia? - Como assim? Eles apenas chegaram e levaram o Juvenal sem mais aquela, na marra. - À força, mediante o emprego da “manu militari”, à revelia de ordem judicial e sem que Juvenal Terra estivesse na prática de qualquer crime...ou estava? - Bem, só se o senhor considerar crime o sujeito tomar uma pinga – Reinaldo falou. - Mais um ato de arbitrariedade e de ilegalidade evidente, dentre tantos que se cometem todos os dias no país, infelizmente. - E o senhor pode fazer alguma coisa? – impacientou-se Reinaldo, já cercado pelas três mulheres, Lindalva com o ouvido colado ao telefone na vã tentativa de ouvir também o que o advogado dizia. - Tentarei contato com o plantão do juizado, mas advirto desde logo que o judiciário é um poder alarmado e... - Sim, sei...Juvenal já nos disse isso. - Foi o que expliquei a ele, quando aqui esteve. Alarmado, juiz nenhum sente-se à vontade para interpor ordem em benefício de algum detido por razões políticas, como é o caso, logicamente. - O senhor acha? – Reinaldo se espantou. - É claro – disse o advogado – Ou o senhor considera que houve algum delito criminal, um roubo de galinha ou crime de outra ordem? - Não, que roubo de galinha, doutor, mas crime de outra ordem como? - Talvez Juvenal possa responder por alguma injúria, calúnia ou difamação. Seria o caso, talvez, de ter ele xingado a autoridade, ou ter feito juízo maldoso, ou mesmo falado uma mentira ou difundido falsidades a seu respeito com o fim precípuo de prejudicá-la. - Ah, isso é bem possível, doutor Marcondes – Reinaldo concordou, lembrando-se dos destemperos verbais do amigo – Sempre que toma umas e outras lá no bar, o Juvenal dana de falar mal da revolução, do coronel, de tudo que é farda militar. - Creio residir neste desabafo intempestivo a razão de ele estar onde está, e neste caso é preciso mais diplomacia do que diploma legal, me entende? - Sinceramente? Não, senhor, doutor – ele admitiu sem graça, mas com sinceridade absoluta. - É preferível entrar em entendimento com a parte ofendida, desculpar-se, apelando para sua nobreza d’alma, do que insistir na via judicial. A intervenção de um juiz poderá gerar desconforto ainda maior no coronel, e ele com certeza dará curso a uma perseguição implacável ao nosso amigo. - Mas quem vai pedir desculpas ao coronel? – Reinaldo quis saber, embora sabendo a resposta de antemão. - O Juvenal, é claro! Quem mais?! Ele ofendeu, ele próprio se retrata – disse o advogado, de pronto, emendando – E torçamos para que o estado de ânimo da outra parte lhe seja favorável. - Difícil, doutor, muito difícil, eu mesmo não acredito nisso, pois se a prisão já é, como o senhor mesmo disse, ilegal. Para mim, o coronel quer é ver o oco do Juvenal. - Bem, fora isso há pouco a fazer, mas de qualquer jeito amanhã tratarei do caso com o juiz pessoalmente e verei o que é possível...mas tenham todos em mente, sempre, que vivemos dias de exceção, os instrumentos legais mais corriqueiros, como o habeas corpus, estão submetidos aos humores de gente como o coronel aí em Coqueiral do Brejo. Nos dias que correm, o judiciário é um poder alarmado. O senhor volte a me ligar amanhã à tardinha, por favor, e verei que novidades teremos. Até lá, só posso recomendar calma, muita calma...boa noite. - Boa noite – Reinaldo respondeu, desanimado. A conversa não havia adiantado nada, e Lindalva mantinha pregados nele olhos angustiados de alguém que espera uma palavra de alento, de ânimo. Mas ele não tinha nenhuma, desgraçadamente. Retribuiu-lhe o olhar desconsolado, suspirou fundo e adiantou, repondo o fone no gancho: - O doutor Marcondes disse que Juvenal vai ter que dormir no quartel. Lindalva precisou ser amparada pelas amigas e, num choro incontido, foi levada para a cama, de onde seus soluços ecoavam pela casa. N.A.: Continua em breve...
Posted on: Mon, 22 Jul 2013 14:28:16 +0000

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