No cemitério dos vivos Armando Pompermaier, do livro - TopicsExpress



          

No cemitério dos vivos Armando Pompermaier, do livro Psicorevolução Ao olhar para as pessoas nas casas no Conjunto Tucumã, assim como para todas as pessoas da cidade de Rio Branco, Jair não conseguia deixar de ver as fileiras de casas através de superposições com a visão das fileiras de tumbas do cemitério São João Batista, da mesma cidade, e seus moradores como mortos-vivos que não sabiam que tinham morrido, talvez alguns já tivessem nascido assim. O que o impedia de cometer o suicídio, apesar de tê-lo planejado de várias formas, no decorrer de toda a sua vida, era a equivalência da visão de um morto nas tumbas enfileiradas do cemitério para a visão de um morto-vivo das casas enfileiradas de seu Conjunto: não lhe fazia diferença alguma. Estar vivo tinha para Jair a vantagem de continuar sempre agonizante e reciprocamente se estranhando com todos. Parecia que algo, não como uma força sobrenatural, pois Jair não era religioso, mantinha aqueles mortos-vivos respirando e se movendo por aí. Parecia para Jair que eram as correntes elétricas e sinais de antenas de aparelhos de rádio e televisão o que animava aqueles seres sem vida. Parecia existir algum poder misterioso naqueles aparelhos dos quintos dos infernos – se Jair fosse religioso poderia até pensar que a qualquer momento o próprio diabo poderia sair daqueles aparelhos como se fossem um portal, uma janela para o abismo grotesco do além-mundo. Mas Jair não era religioso. Parecia que a intensificação dos sinais e das energias que chegava pelas redes elétricas e ondas de rádio captadas pelas antenas na parte da manhã, fazia com que os corpos mortos levantassem dos compartimentos no interior de suas tumbas familiares enfileiradas no grande cemitério chamado cidade de Rio Branco e, seguindo as programações monótonas e rotineiras dos programas que absorviam durante toda a sua existência vazia, fossem de umas tumbas a outras, ou seja, de suas casas às suas escolas, trabalhos, igrejas, lazeres, ou afazeres domésticos. Os programas detalhavam a sua vida, lhes impunham a adoção de algumas poucas alternativas de modelos de se vestir, de se comportar, de opiniões que poderiam reproduzir em seus diálogos rotineiros e repetitivos, lhes diziam qual deveria ser o objetivo das suas não-vidas, do que deveriam gostar e do que não deveriam. Havia ainda opções e discussões tão ferrenhas quanto inúteis para escolhas que, na verdade, no final não tinham praticamente nenhuma diferença entre si. Simplesmente quando um corpo morto reproduzia uma opinião que havia recebido por alguma antena, outro a rebatia com uma que havia recebido de outra antena em programações conflitantes inverossímeis reproduzidas mecanicamente. Os corpos mortos animados por correntes elétricas e ondas de rádio iam muito a tumbas chamadas de escolas ou igrejas onde recebiam normas e técnicas padronizadas para adequar cada vez mais as programações das suas atitudes mecânicas. Eram detalhadamente instruídos em como se relacionar amigável ou amorosamente com outro corpo morto-vivo por padrões relativa e ao mesmo tempo minuciosamente definidos. Em suas tumbas chamadas trabalhos, havia mais normas, técnicas, ordens, instruções para serem seguidas, programando as suas ações com precisão. Dentro das configurações das programações estava o ataque, através da utilização de alguma das alternativas entre os limitados modelos de opção, a qualquer um em cuja programação começasse a dar defeito, ou seja, a qualquer constrangente manifestação de algum tipo de originalidade, a qualquer ruptura pela busca de algum tipo de liberdade, qualquer atitude que desvirtuasse das pré-definições estabelecidas por seus programas. Jair percebeu que os corpos sem vida se vestiam das mesmas cores que as paredes e começavam a se confundir com elas. Nas ruas, ele via os mortos-vivos como semelhantes aos manequins de plástico das vitrines das lojas, andando com a mesma falta de expressão nos rostos, com a mesma postura altiva artificial, estéreo, programadamente construída. Nas festas, Jair via encenadas as coreografias das danças dos programas de TV seguidas à risca, sob pena de olhares recriminadores de censura a quem cometesse algum deslize, saísse um pouco que fosse do pré-estabelecido pelos programas. Os mortos-vivos da vida política, social e cultural seguiam precisamente os papeis pré-determinados pelos seus programas. Jair, em meio à artificialidade programada de sua cidade e das atitudes dos mortos-vivos reproduzindo os cenários, os figurinos, os diálogos, as atitudes dos estúdios dos programas de TV como os da Rede Globo; se sentindo sozinho no meio de um vácuo, de um deserto, tinha vontade de gritar com toda a força de seu ser: “tem alguém vivo aí”? Como em um pesadelo, não lhe vinha voz que pudesse vencer um nó na garganta. Todos seguiam a programação, a cidade – ou o grande cemitério – eletricamente pulsando; as redes de energia elétrica e suas correntes, as igrejas e suas correntes, as pessoas e suas correntes; as TV’s e seus programas, as escolas e seus programas, os trabalhos e seus programas, as pessoas e seus programas. O figurino, o cenário, as posturas, os movimentos, os diálogos; as festas, as igrejas, as escolas, os trabalhos; as rádios, as TV’s. Fios e mais fios, antenas e mais antenas, correntes e mais correntes, programas e mais programas o cercavam em todos os cantos onde ia. Aqueles prédios eram também como se fossem monstros gigantescos de pedra devorando todos os dias centenas ou até milhares de pessoas que ficavam dentro de compartimentos internos como se fossem comida sendo digerida por gigantescos estômagos, intestinos: os mortos-vivos sendo sofridamente digeridos durante anos, uma longa e lenta agonia, pelos aparelhos digestivos dos monstros, até serem jogados fora como restos decrépitos, excremento. Os que não conseguiam ser engolidos eram como alimento apodrecendo no relento das ruas, embaixo das pontes. Os prédios se mostravam simples aparelhos digestivos gigantes de um monstro maior com milhões de estômagos, conhecido como sistema. Talvez essa seja a causa da morte, numa autópsia do corpo social, uma morte premeditada, pré-datada como os cheques. Sendo digeridos pelos milhões de estômagos, de intestinos do monstro gigantesco, mortos-vivos, bilhões de mortos-vivos pré-datados, animados por correntes elétricas, no meio de suas correntes e programas, progressivamente digeridos nas tripas do monstro. Havia algo muito errado nas correntes e programas que dirigiam os mortos-vivos que alimentavam os milhões de estômagos do monstro. Jair não gostava deles. Sabia que tanta miséria, tantos preconceitos, tantas discriminações, exploração, opressão, violência, guerras espalhadas pelo mundo, eram resultado da ação programada dos mortos-vivos teleguiados por suas antenas. Os olhares programados dos mortos-vivos quando não reagiam com indiferença diante do que era gritante aos olhos de Jair, simplesmente eliminavam elementos estranhos a sua programação como um anti-vírus de um computador que protege seus programas. Apesar de querer morrer todos os dias, Jair continuava respirando, sendo estranhado e estranhando a todos. Aderir ao zumbismo, suicídio, para Jair daria tudo no mesmo: a escolha do confinamento em qual dos cemitérios. Mas Jair era como um sonhador: queria fugir para as estrelas ou trazê-las para dentro de si. Os programas que guiavam os mortos-vivos não funcionavam com ele que elevava seu espírito lendo e escrevendo poesias, rupturas vivias com as formas pré-determinantes, onde até mesmo cada vírgula era constituída por profundos, intensos sentimentos. Queria inventar um programa que desprogramasse todos ou, em suas palavras, queria escrever algo como uma poesia atômica que desintegrasse todos os preconceitos, todos os ortodoxismos. Agredia apenas a si mesmo, pois sabia que era depositário dos desesperos do mundo, queria destruir a sociedade em que vivia por sua reprodução dentro de si. Fez de seu coração e de sua mente laboratórios de uma psicorevolução que pretendia libertar os dois mundos. Plantou flores, viveu um amor sem fim. Mais de uma vez foi abandonado, foi traído, mas se recuperou. Não sei por quanto tempo.
Posted on: Tue, 06 Aug 2013 02:58:39 +0000

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