Não se pode dizer que a democracia é um estado de coisas, embora - TopicsExpress



          

Não se pode dizer que a democracia é um estado de coisas, embora o que apareça seja esse estado de coisas. Se por um lado a divisão público-privado foi criada historicamente e hoje define de maneira hegemônica o modo como nos relacionamos com e na vida, por outro, existe ainda, e sempre, algo que escapa a essa determinação. De dentro da vida, a democracia vive o paradoxo de uma “essência insolúvel” (Negri, 2002); ou seja, um movimento constituinte que se transforma em constituição. Dito de outra forma, o poder constituinte, que se resolveria numa constituição, não se resolve de fato por conta de toda constituição, por definição, paralisar o movimento. Então, começando pelo meio, temos a constituição, que tem forma de lei, ou, em outras palavras, um conjunto de normas que orientam as relações humanas numa sociedade. Mas a constituição não está dada de uma vez por todas. As leis humanas são criadas num movimento constituinte, de acordo com a realidade social de cada época e cada sociedade. São criadas, portanto, a partir de uma compreensão muito singular da vida, a partir dos problemas que se apresentam. Os problemas podem até ser resolvidos, mas outros se criam. É preciso então criar novas leis. A palavra democracia vem do grego e significa força do povo (demos significa povo e krátos poder, força). Segundo Negri (2002), aí está a resposta para se manter vivo, aquém e além da constituição, o poder constituinte. É na força da multidão que podemos encontrar o ponto de conexão ou, podemos dizer também, o exu, a encruzilhada. Só queremos mudar um certo estado de coisas se elas nos incomodam, nos afligem de algum modo, quando estamos numa encruzilhada, sabendo o que não queremos, mas sem saber ao certo que direção tomar. Mas o que nos aflige parece sempre vir de fora, do outro, por essa ilusão de que estamos separados. Se fosse possível nos posicionarmos no isolamento completo, sem o contato com o outro, decerto não sentiríamos nada, nem tristezas nem alegrias, nem aflições nem mudanças. Isso no entanto nem é possível, mas agimos muitas vezes como se fosse, e buscamos esse ideal, o isolamento dos problemas. Se ao invés disso buscarmos o ponto de contato, a conexão entre as aflições, acredito ser possível encontrarmos juntos uma mudança qualitativa na experiência presente. Essa busca pela conexão me parece ser o poder constituinte, que pressupõe, portanto, habitar esse paradoxo de uma essência insolúvel, e de ser agente na multidão. Mas como é possível ser agente na multidão? Quem pode habitar o paradoxo? Quem pode exercer essa potência? Para falar desse paradoxo, Negri extrai uma função da antonomásia, figura de linguagem que consiste em reverter um nome próprio por um comum. É preciso então fazer essa operação de reversão do próprio em comum. Uma operação de dissolução do si, de dissolvência das fronteiras que separam dentro e fora, para poder habitar o plano comum, conectivo, de criação. Quem leva quem numa multidão? Quando estamos em meio a uma multidão, como num mega show, ou numa passeata, muitas vezes nos sentimos arrastados, nos movimentamos mas não pelos nossos próprios pés. Momentaneamente perdemos a noção do nosso contorno, não conseguimos precisar até onde vai o nosso corpo e onde começa o corpo de um outro; sequer fazemos em nosso corpo o movimento voluntário de caminhar, embora nosso corpo se locomova. Entretanto, quem nos carrega, se todos se sentem carregados e ninguém se move voluntariamente? Dizemos que todos carregam todos (ou um carrega o outro), sem que ninguém se carregue. É por isso que a essência insolúvel da democracia se resolve pela dissolução. Contínua criação de si e de mundo, numa atitude de problematizar, mais que resolver problemas. Criação de outras problematizações. O paradoxo não se resolve, se habita, através da dissolução das dicotomias. Dizemos que as dicotomias são como falsos problemas que não se resolvem, se dissolvem, permitindo o paradoxo. Toda dicotomia, portanto, é falsa, porque pressupõe uma separação entre coisas que são distintas, mas não estão separadas. O que se considera público não se separa do que se considera privado. De quem é o mundo? Por que chamo esse pedaço de terra de meu? Que direitos de fato tenho? Quais são meus deveres? Como pensar a liberdade? Curiosamente, parece só ser possível responder essas questões a partir da compreensão do paradoxo. Esse paradoxo do coletivo singular que pressupõe ser agente em plena multidão. Esse plano próprio comum que é feito de infinitas vidas finitas. Chegamos no mundo, pegamos o bonde andando já com um funcionamento, regras, leis. Ao longo da nossa vida finita, percebemos que o mundo muda. Um “mundar”, ou um processo contínuo de criação de mundos. Vários de nós passam por um mundo, vários mundos passam por nós, numa retroalimentação do processo, numa criação recíproca. (Mais uma vez, vamos retomar este tema no terceiro capítulo.) Assim, por um lado o que acontece neste mundo é essa privatização dos modos de existência que enfraquece a força da multidão através da produção de subjetividades individualizadas, solitárias, desconectadas da vida comum. (E acreditamos que a vida só se vive neste plano; portanto, o uso desse adjetivo comum é para enfatizar um questionamento a respeito dessa existência privatizada: pode-se chamar isso de vida?) Outro movimento privatizante diz respeito a uma transformação da saúde como direito (saúde como valor de uso, como bem público, para qualquer um) numa saúde como mercadoria (saúde como valor de troca, neste caso, para uns poucos beneficiados). Mas também encontramos (e simultaneamente) neste mesmo mundo o seu avesso, sua linha de fuga: a publicização dos modos de existência, que reverte o que se chama de próprio em comum. Dissolve a dicotomia público-privado para fazer aparecer o comum, esse paradoxal coletivo singular, uma apropriação comum. É, então, paradoxalmente, que a resistência às formas privatizantes vem pela via de uma causalidade circular do poder: a dobra da linha de forças sobre si.
Posted on: Sun, 23 Jun 2013 00:14:27 +0000

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