O ASSUNTO É A GUERRA SÍRIA - FOLHA DE SÃO PAULO Desde o início - TopicsExpress



          

O ASSUNTO É A GUERRA SÍRIA - FOLHA DE SÃO PAULO Desde o início da guerra civil na Síria, em março de 2011, mais de 100 mil pessoas morreram e 2 milhões tiveram de se refugiar no exterior. O conflito seguiu sem a possibilidade de intervenção direta das nações do Ocidente até o dia 21 de agosto, quando um ataque com armas químicas matou mais de 1.400 pessoas na periferia de Damasco, cerca de 400 delas crianças. Embora a autoria do ataque não tenha sido confirmada pela ONU, o governo dos Estados Unidos diz ter coletado provas de que a ofensiva foi perpetrada pelo regime sírio, de forma que o ditador Bashar al-Assad teria ultrapassado a "linha vermelha" apontada por Obama para que os EUA interviessem no conflito. O pesquisador de Harvard especialista em Oriente Médio Hussein Ali Kalout ("É o início do fim do conflito sírio?") se diz contrário a uma intervenção militar no país. Para ele, uma reação dos EUA pode desestabilizar países vizinhos da Síria e culminar em "desenfreada corrida armamentista em toda a região". Um possível ataque, também, favoreceria "organizações terroristas e jihadistas" que operam na Síria. Já para Peter Demant, professor de relações internacionais na USP ("Um povo que deseja se libertar merece apoio"), a intervenção deve acontecer não somente por conta do uso de armas químicas, mas para evitar "a matança de crianças, mães, idosos e não combatentes com bombas, metralhadoras e facas". O professor afirma que não se deve abandonar a questão síria "em nome de um frio realismo político", pois "quando uma população quer se libertar, a comunidade democrática precisa ajuadar". É O INÍCIO DO FIM DO CONFLITO SÍRIO? Hussein Ali Kalout: - O cenário sírio apresentou importantes evoluções nos últimos dias. A possibilidade de uma intervenção armada -a pior das opções para a resolução do impasse- enveredou, felizmente, para um diálogo mais responsável entre Moscou e Washington. Alegações em favor de uma intervenção armada na Síria, edificadas sobre a inconsistente base do dever "moral" de agir, abriram espaço para um pragmatismo responsável em prol da estabilidade da região e da proteção da população síria. Adicionalmente, com o entendimento entre as partes, preservou-se a degradação da ordem global e evitou-se a transgressão às normativas internacionais que só fragilizariam a eficácia do Conselho de Segurança da ONU de atuar como instância última a autorizar o uso a força. Uma intervenção americana, além de não solucionar o problema, teria posto a região à mercê do caos e com riscos reais à sua estabilidade. Em nome da verborragia e do prestígio, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, colocou-se num labirinto. A intervenção armada estaria ligada a um pretexto para atender a demandas de países como Arábia Saudita, Israel e Turquia ou à armadilha que ele mesmo plantou e agora tem de justificar para preservar o seu poder de coerção? Obama à deriva foi salvo por Putin -quem diria! Perdido na equação síria e sem apoio internacional substancial, Obama buscou compartilhar com o Congresso americano a responsabilidade de chancelar a sua escalada retórica para não assumir as consequências da intervenção. Sua manobra política revelou um pouco da incerteza sobre a eficácia da punição e do efetivo uso de armas químicas pelo regime. Ao deixar a intervenção de lado e partir para o diálogo diplomático, o presidente dos Estados Unidos preservou do risco a doutrina da política externa norte-americana para o Oriente Médio, balizada pela proteção de Israel, contenção do extremismo islâmico e controle dos recursos energéticos. Na verdade, qualquer ação contra o regime sírio fragilizaria os dois primeiros pilares. Enfraquecer o governo Assad é jogar no colo das organizações terroristas como Jabhat al-Nusra e de milhares de outros fanáticos jihadistas o futuro da Síria e da região. A solução diplomática para a questão síria é o único caminho. O acordo que está sendo esculpido entre Moscou e Washington em torno do desarmamento químico do Exército sírio é um avanço significativo. Entretanto, seria igualmente necessário implementar o desarmamento dos grupos terroristas infiltrados em todo o território sírio. É importante se questionar se os patrocinadores dos rebeldes teriam condição de dar um passo similar. O xadrez regional que está sendo jogado traz algumas importantes lições. Prova a sólida capacidade de influência da Rússia, que está firme no jogo estratégico do Oriente Médio, e o importante papel de Teerã. O Irã sob governo de Hassan Rouhani, seu novo presidente, demonstrou disposição e pragmatismo ao convencer o governo sírio de abdicar do arsenal químico. Conseguiu ainda preservar, habilmente, as pontes de diálogo com o Ocidente para futuras negociações, desmontando a tese de que a imposição e a força não são os melhores ingredientes para tratar de temas sensíveis ao Oriente Médio. Washington tem agora, junto com Moscou, a chance de liderar uma verdadeira negociação e eliminar Estados refratários ávidos pela extensão do conflito. HUSSEIN ALI KALOUT, 37, professor de relações internacionais e especialista em Oriente Médio, é pesquisador da Universidade Harvard. UM POVO QUE DESEJA SE LIBERTAR MERECE APOIO Peter Demant - Na Síria, não há só um impasse, há dois: o que fazer diante de uma guerra civil cada vez mais mortífera? E como reagir ao ataque com gás letal contra uma população civil indefesa? A segunda questão domina hoje as manchetes, mas decorre da primeira, que a comunidade internacional há dois anos tenta ignorar. É o pesadelo das armas de destruição em massa que tem causado a sombra da intervenção. Sem dúvida, uma solução negociada para destruir as armas químicas de Assad, como se propõe agora em acordo entre os Estados Unidos e a Rússia, é preferível a uma miniguerra impopular e de eficácia duvidosa. Aqueles cujo reflexo condicionado é sempre condenar qualquer atuação dos EUA fora de suas fronteiras devem ter claro que esse acordo é produto da ameaça militar americana. A virada chega tarde, não só para os 100 mil mortos, mas também para evitar a infiltração, numa oposição inicialmente pacífica e democrática, de células jihadistas. Isso leva ao segundo impasse. A guerra civil já está acontecendo e continuará também caso Assad não mais disponha de armas químicas. O mundo deve intervir no primeiro imbróglio para frear a proliferação de armas de destruição em massa (pense Irã). Mas deve também intervir contra a matança de crianças, mães, idosos e outros não combatentes, com bombas, metralhadoras e facas --para evitar que uma guerra bárbara se espalhe, atice a região e multiplique o terrorismo. As torturas de uma população rasgada entre grupos étnicos e religiosos treinados para o ódio e a desconfiança já causam um "spillover" de milhões de refugiados. Podem atiçar uma conflagração regional que colocaria a paz mundial em risco. Fechemos os olhos e o turbilhão chegará mais perto de todos nós. É também imoral: como acreditar que nosso mundo evoluirá se abandonarmos o outro em nome ou de um frio realismo político? Uma mudança de regime despótico para um de autodeterminação é mais legítima quando obtida pelo povo. A Primavera Árabe mostrou a vontade das nações do Oriente Médio de forjar seu próprio destino. Mostrou também sua incapacidade para derrotar "anciens régimes". A sobrevivência (ou restabelecimento) do despotismo no Egito, Iêmen e Irã mostra as consequências do abstencionismo internacional. Mas o fracasso mais gritante é a Síria. Há casos em que obrigações morais transcendem a letra da lei internacional. Nas discussões acerca de intervenções humanitárias, dois princípios se digladiam: a soberania do Estado e a responsabilidade do resto da humanidade. Muitas vezes os proponentes do primeiro ideal são tiranos odiados por seus súditos. E às vezes os interventores são imperialistas mascarando seus interesses sob uma linguagem ética. É útil lembrar, porém, que a lei internacional não é uma lei divina, mas um produto de relações de poder. Trata-se de modernizá-la. Há 70 anos, o mundo tolerou o holocausto dos judeus. Paga até hoje com o interminável conflito Israel-Palestina. Há 20 anos, deixamos os ruandeses hutu massacrarem um milhão de tútsi. Ficamos com a vergonha. Agora ninguém pode mais dizer "não sabíamos". Se os Estados soberanos que controlam a comunidade internacional não conseguem transformar sua estrutura em favor das populações democráticas, comprovam que o próprio Estado chegou ao seu limite. Melhor enfrentar a problemática hoje do que em 20 anos, quando o preço humano será ainda mais terrível. PETER DEMANT, 62, é professor de história e de relações internacionais na USP
Posted on: Mon, 16 Sep 2013 12:05:22 +0000

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