O BRINQUEDO QUEBRADO Brinquedo bom que passa rápido: a vida. - TopicsExpress



          

O BRINQUEDO QUEBRADO Brinquedo bom que passa rápido: a vida. Ninguém quer deixar esse brinquedo, nem os que dormem debaixo da ponte, vendo os carros passando, muito menos quem vive num Castelo, entregue aos braços de tantas mulheres. Mas, independentemente de quem leva essa vida debaixo dos escombros de uma cidade, dormindo debaixo das pontes ou das marquises, ou quem a leva dando o maior duro da vida, pelo pão, sonhando em comprar uma mansão, a verdade é que ninguém – salvo os loucos, que não sabem o valor que é um dia de sol -, ninguém mesmo, quer deixar essa vida, mesmo se, nela, não tiver nada. Pelo menos tem os olhos para ver que beleza é uma árvore, um dia de sol, um cãozinho que nos acompanha e, por fim, uma mulher gostosa que passa por nós e podemos amá-la ou “comê-la” com os olhos. Tudo isso, mesmo debaixo de uma ponte, compensa estar vivo. Infelizmente, embora se possa ter todos os motivos e compensações para viver, o certo é que um dia esse brinquedo, que já vinha se estragando por dentro, não suporta os estratos e, contra todas as forças que possuímos, a pessoa morre, entre a dor da saudade e a dor da angústia, que somente sabe quem sabe que vai morrer. E quem está assim, sem que o mundo saiba - porque chega uma hora, a triste hora do morrer, que o dono da sua vida já está distanciado do mundo como a lua do sol, e o mundo distanciado de quem vai morrer como o sol da lua -, é Dr. Xenofaldo, no alto dos seus quase noventa anos, tempo que seria longo para todo mundo que, porventura, ainda estivesse na casa dos dez, vinte ou trinta anos, mas quando esse mesmo mundo atinge a idade dos noventa, como chegou Dr. Xenofaldo – ou até mesmo a casa dos cem - ,diz logo que esse brinquedo, a vida, passa muito rápida, como aconteceu com ele, agora recolhido em seu apartamento, cambaleando por dentro dele, andando se arrastando, com as gavetas dos armários entupidas de receitas médicas, de prescrições médicas, de pedidos de novos exames, etc. Mesmo lúcido, Dr. Xenofaldo sabe que vai morrer, que a morte é inevitável – e cruel! -, porque cobre o homem por fora com a feiura horrenda da velhice e, por dentro, dilacera todos os órgãos sem piedade e os reveste de uma saudade quase doentia, que a todo minuto leva a cabeça do moribundo a pensar nas coisas vividas, ficadas lá atrás, nos amigos, nos amores, no primeiro beijo, a primeira vez que experimento o esplendor e o maravilhoso instante do gozo. Agora mesmo andando pelos corredores se arrastando, sem que o mundo saiba, sem que a natureza pouco se importe, ele, com infinita dificuldade, põe os olhos para fora da janela e vê, lá fora, a vida, e chora como se quisesse pedir, de volta, o brinquedo tão bom e gostoso que a natureza estava lhe arrancando, paulatinamente, como se não tivesse nenhum valor, nenhuma importância. Ele chora. Um choro que nunca chorou. Um choro sem lágrimas, sem ruído, um choro estranho, insuportável, que nunca sensação igual ou parecida sentiu no passado. Esse choro parece lhe arrancar a alma por dentro toda vez que, ele, estira o olhar perdido para os carros que, lá embaixo, andam, passam, fazem barulho. Dentro de alguns instantes ele vai receber a sua pior visita: um médico. O médico vai chegar, como sempre, educado, de branco, com seu bom dia, boa tarde ou boa noite, simplesmente para não poder fazer mais nada, mas querendo deixar a impressão em Dr. Xenofaldo que aquilo vai passar, que ele vai melhorar, quando, quem melhor sabe de si e da sua condição é o próprio moribundo, ele vê e sente e sabe, mais que ninguém, que a morte já lhe tomou de si quase tudo, e, quem melhor para lhe dizer isso do que o espelho que nele ele se viu, sem que nem ele mesmo o reconhecesse? Quem está no caminho já da morte, como Dr. Xenofaldo, não tem mais vontade de ver nada, de ver ninguém, apenas de estar na cama, sofrendo, com sua cabeça lhe aborrecendo mais ainda, sempre pensando quando tinha aquele brinquedo, a vida, tão boa, novinha, forte, tão cheia de energia, de virilidade, de vontade para ver as árvores, nuvens, o céu estrelado, mar, o sol gostoso de cada dia, um ou outro amigo que, ocasionalmente, se reencontram, e, principalmente, a beleza dessa ou daquela mulher que lhe passou, ou em sua vida, ou pela rua, ou a viu na praia ou num restaurante, não importa. O médico chegou. Era ele. Dr. Xenofaldo nunca errava quando ele aparecia. Sabia pela forma como ele tocava a campainha. Uma mulher – porque nessas horas finais sempre deve ter uma mulher que suportará o sofrimento do moribundo, de sua despedida nesse mundo – abre a porta. - Como ele vai? – quer saber o médico. - Assim, assim, assim, assim – responde a mulher. – Quem seria ela? Quem será a mulher última na hora de um homem morrer? Da sala mesmo, Dr. Xenofaldo ouve tudo, mas, quem já é um defunto, como ele, para mais nada liga, para mais nada se importa; aliás, nessa fase todo mundo vira bolinha de gude, sendo, bola de futebol, bola de tênis, bolinha disso, bolinha daquilo, porque está a toda hora sendo jogado pra lá e pra cá, sem que nem mesmo o moribundo dê mais importância, porque já sabe, ele, que já pertence a morte, e morrer é isso mesmo, é perder, sobre si, toda autonomia, independência, perder o “sim” e o “não”, como lhe aconteceu. Médico sempre engana o paciente, ele é um mestre nisso, mas tem que ser assim mesmo. O médico nunca vai virar para o moribundo e, friamente, dizer: você está morto, você vai morrer, você só falta se posto dentro de um caixão, ser enterrado, etc. etc. etc. Isso se não aparecer, juntamente com o médico, um Pastor, um Padre, uma Bispa ou algo assim, porque aí as coisas mudam, para pior, porque podem trazer as assombrações que eles acreditam para o outro mundo, e o moribundo pode sair daqui traumatizado. Melhor mesmo o médico, que chega de branco, com sua malinha na mão, exibindo seu estetoscópio, falando com a mulher que cuida de Dr. Xenofaldo e, num riso branco e pálido, ele mente, dizendo que o moribundo vai ficar bom: mente porque se não fosse a mentira ninguém suportaria essa vida, nem mesmo na hora da morte. - Você está ótimo! – disse o médico. Mal o médico saiu, despedindo-se de Dr. Xenofaldo, ele foi ver a vida lá fora, com o pressentimento que seria a última vez que estaria vendo, lá fora, o mais lindo brinquedo que o mundo lhe roubou, tão rapidamente: a vida. Menos de um minuto, quando a mulher atravessava a cozinha, trazendo-lhe mais um remédio para tomar, já era tarde demais, ao ver, assustada, Dr. Xenofaldo no chão, com a cara que tem todos os mortos quando deixam esse brinquedo, tão estranho, tão passageiro. Salvador, 01.11.2013 Guina de Guinas
Posted on: Fri, 01 Nov 2013 10:59:36 +0000

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