O Bairro da Lapa Nasci no esporão mais ocidental da Lapa, - TopicsExpress



          

O Bairro da Lapa Nasci no esporão mais ocidental da Lapa, exactamente a pique sobre o que então se chamava a Cova da Moura e por onde actualmente corre o asfalto da Avenida Infante Santo. Trata-se de uma zona de quase fronteira (da outra margem do desfiladeiro ergue-se o morro das Necessidades) ou, melhor dizendo, de uma espécie de finisterra em relação ao bairro propriamente dito; e, segundo penso, o mais relevante do seu traçado urbanístico datará tão-só dos finais da primeira Grande Guerra. O certo é que ainda tinha a designação de Bairro Novo da Lapa quando minha avó materna, em 1921, se tornou a primeira locatária desse prédio da rua Joaquim Casimiro onde viriam a decorrer os primeiros quinze anos da minha vida. E quando eu lá nasci, seis anos depois, continuavam a ver-se, tanto na rua mencionada como na Maestro António Taborda, lotes de terreno por construir, aos quais se dava o nome de “terras” para onde os ganapos mais livres iam “renar” e onde, em certos anos, por altura dos Santos Populares, se improvisavam arraiais, verbenas, bailaricos. O prédio em cujo bojo vim ao mundo ainda hoje lá está: sóbrio, discreto, e ao que presumo sem grandes maleitas, mau grado a certidão de idade que já o dá como septuagenário. O que todavia entretanto perdeu, em virtude das alentadas empenas que do fundo da Infante Santo desataram a crescer, foi o assombroso panorama que nos terraços das suas traseiras se desfrutava: nada menos que toda a líquida extensão do Tejo, desde o cais de Alcântara até ao Bugio, bem como, à direita, no retro terra, a mágica sucessão de palácios, torres, oficinas, vivendas, casebres e fabriquetas, até ao denso arvoredo da tapada de Ajuda (do da tapada das Necessidades só se enxergavam algumas copas) e, mais a norte e ao fundo, já mesmo as primeiras encostas, então de todo peladas, daquilo que nós, lisboetas, persistimos em designar (ou não tivéssemos apenas a prática de colinas em matéria de orografia) como sendo, pomposamente, a “serra” de Monsanto. Mas foi esse terraço, em cujos horizontes se me espraiaram os mais luminosos dias da infância, o grande responsável, afinal, por só pouco a pouco, e um tanto tardiamente (aí pelos oito, nove anos) me começar apercebendo do bairro a que os prédios daquela rua como avançadas guardas ainda pertenciam, e que protectoramente me espaldava, por mais que sem querer eu lhe voltasse as costas; e, sobretudo, de que esse bairro se chamava a Lapa. Era como se o tal terraço, até aí, em termos de mundo externo, me tivesse confusamente feito as vezes de rua, de bairro, de cidade, de país, quem sabe se de continente, talvez mesmo de planeta. Pela posição do galo da igreja das Necessidades aprendera eu a saber – a supor que sabia – se era chuva ou bom tempo o que se anunciava. Pelas bandeiras hasteadas nos grandes paquetes que entravam a barra – e cuja aproximação se espiava através de binóculos – comecei conhecendo pelo menos os nomes de muitos países. E através de súbitas ou suspeitas movimentações no velho quartel, mesmo ali em baixo, à distancia de um grito, e que ostentava o nome patusco de Batalhão Hipo-Móvel da Cova da Moura, adivinhava-se ou julgava adivinhar-se (estariam de prevenção simples? Ou de prevenção rigorosa?) que alguma coisa iria mal no execrado regime que nos regia. Enfim, as primeiras e vagas noções acerca do tempo e do espaço, acerca do Mundo, acerca da História, foi lá, naquele terraço, que principiaram a aflorar-me. Mas faltava-me enfim ser iniciado, toscamente que fosse, nos primeiros mistérios da vida de relação; e semelhante experiência ficá-la-ia devendo, já para além do restrito círculo familiar, a três sucessivas realidades de âmbito crescente: a do prédio, a da rua, a do bairro. A do bairro da Lapa. Para todos os efeitos, ou em sentido mais ortodoxo, ele apenas principiava duas ruas mais adiante, a partir da Ribeiro Sanches; e, para mim mesmo, a Lapa só verdadeiramente passou a existir quando comecei a aventurar-me pela rua da Arriaga, a rua do Prior, a rua do Sacramento, a rua de S. Caetano. São essas, ainda hoje, com as perpendiculares da do Pau de Bandeira e da de S. Domingos, as que me representam o que há de mais secreto e de mais fascinante, com seu quê de aristocrático e de cosmopolita, em todo o bairro da Lapa. Mas seria injusto esquecer tanto a componente burguesa que lhe vem da área onde eu nasci como o forte fermento popular que ele recebe, a leste da rua de S. Domingos, da zona mais mesclada que já o faz confinar com a Madragoa. E um dos grandes encantos da Lapa reside porventura, como também acontece em certos bairros de Roma, nesta fecunda mistura das três classes – nobreza, burguesia, povo – em doses equivalentes ou, melhor ainda, pelo que me parece, milagrosamente equilibradas. Outro encanto, e não menor, provém, sem dúvida, da saborosa e ondulante indefinição das suas fronteiras. Onde, por exemplo, acaba a Lapa e começa a Estrela? Onde já deixa de ser a Lapa e já se ingressa em Santos-o-Velho? O Chafariz das Terras e a rua do Olival, um a norte, a outra a sul, pertencem ou não pertencem ao bairro da Lapa? Não falo de divisões administrativas, por sua natureza frias e abstractas, mas tão-só da grande falta que fazem à Lapa, como pulmões da sua própria respiração, esses dois topónimos tão bucolicamente evocadores. E outro tanto se passa com as Janelas Verdes, que são aquelas de onde melhor a Lapa vê o rio, ou com o Jardim da Rocha (no meu tempo acrescentava “do Conde de Óbidos”), que continua sendo a sua próxima varanda sobre as águas do Tejo. E quer-me enfim parecer que o bairro da Lapa, de entre os lisboetas bairros ribeirinhos, é aquele que mais singularmente articula um mediterrânico estilo de vida com padrões de relacionamento já continentalmente europeus e, por outro lado, com largos horizontes que um pouco mais perto respira através do Atlântico. Em Alfama ou na Madragoa, tudo tem quase exclusivamente a ver, em termos de ritmo vital e de sociabilidade “aberta”, com bairros de Marselha, Génova, Nápoles, Bari, Nauplia, Atenas ou até Istambul. A Lapa, em contrapartida, dir-se-ia que se encontra um pouco arredada desse luminoso aro mediterrâneo, quase levantino, e como que já a meio caminha entre Roma e Nova Iorque, Londres e Rio de Janeiro, Paris e Toronto. Para esta impressão (ou ilusão?) decerto que muito contribui a extrema densidade, que aí se verifica, de representantes do corpo diplomático, população flutuante que incessante se renova e se reveza, de tal modo que lhe confere – paredes-meias com o popular, o burguês e o aristocrático de cepa indígena – uma contínua coloração cosmopolita: a Europa do Norte e a América Latina, a Europa do Leste e hoje também a Ásia por ali assentam seus arraiais de fortuna, assim deslocando a Lapa da órbita mediterrânea em que predominantemente se integram as suas irmãs Alcântara, Madragoa, Alfama, Castelo e mesmo o que resta da Mouraria. Eis mais um traço que indiscutivelmente a singulariza, sem que dele possa contudo extrair qualquer acintoso motivo de orgulho. Nem isto aliás poderia coadunar-se com a índole da Lapa, bairro de sóbria civilidade e de urbano convívio, avesso a despiques ou picuinhas de precedências – e, por tais razões, talvez o menos bairrista, em semelhante acepção, de entre todos os bairros de Lisboa carregados de Historia. Portuguesíssimo na sua essência, “alfacinha” assumido mas discreto, guardando as necessárias distâncias em relação às manifestações de um folclore meramente exterior, o bairro da Lapa, sem deixar os créditos da sua individualidade por mãos alheias, não menos salvaguarda, com tolerante firmeza, a sua congénita vocação universalista. E assim constitui, também sobe este aspecto, um nobilíssimo exemplo. Lisboa, 5 de Março de 1993 David Mourão Ferreira
Posted on: Tue, 01 Oct 2013 21:09:25 +0000

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