O enigma do sorriso que diz sim Para Cecília Luis Antonio - TopicsExpress



          

O enigma do sorriso que diz sim Para Cecília Luis Antonio Baptista Perdem o ar que ainda lhes restam objetos e afetos condenados a transformarem-se em obsoletos. Certos gestos interrompem essa tentativa de asfixia, isentos do heroísmo de um eu solitário. É o que acontece na manhã dos anos setenta em uma cidade da América do Sul. Uma mulher ri e ninguém consegue descobrir o motivo daquela ousadia. Buenos Aires abriga o horror que assedia a força do ato que diz sim. No terraço a jovem sorri, mas ninguém entende o porquê. Lá embaixo coisas, sonhos e almas acabam, somem como se não tivessem existido. O enigma do sorriso insinua afrontar tramas microscópicas do capitalismo, que perpassam feituras do tempo, atravessam e tecem fibras de corpos e de desejos. Não é só isso que aquele gesto no terraço enuncia. A cidade portenha acolhe um combate sem pátria, sem autor exclusivo, sem a precisão de uma data. Buenos Aires testemunha o enfrentamento entre a barbárie que asfixia e algo que diz sim. O que afirma o sorriso daquela mulher? O que o terror deseja destruir? Objetos e afetos obsoletos, descartáveis, inutilizam-se como parcerias; traduzidos em tralhas, restos banais, tornam-se inoperantes para oxigenar o eu asfixiado por excesso e falta. Movimentos, mudanças, devires fazem-se presentes, mas nada acontece como testemunho do fracasso das promessas do novo sempre esperado. O fim, e o ainda não, o nunca visto, são amansados na sua impertinência. A finitude das coisas vivas transforma-se em impureza. O tempo perturba como o odor de uma matéria apodrecida. Corpos impuros, afetos maculados são convidados a eternizarem-se na sedativa perda da lembrança do ontem inacabado, ainda vivo. O esquecimento acolhedor de um afeto que nunca mais retornará; o efeito do esquecer que exige a atenção ao que ultrapassa as fronteiras do eu, e a dos calendários, também é sedado. Eternidade breve, presa a um presente que não aturde o que passou e o que virá. O agora sedia o lugar exclusivo de uma felicidade instantânea. O passado apodrece e o futuro volatiza-se. Espera-se nunca saciado. Felicidade fugaz como um espasmo produzido por excesso e falta. Nada será transfigurado após o encontro com esta efêmera felicidade. Sob o terraço, o terror na calçada diz não. Mais do que isto, proíbe ao tempo mostrar a sua carne viva, carne que corta como uma faca afiada a solidez inquestionável da barbárie. Homens armados olham em direção ao sorriso e não entendem a razão. Para os agentes da ordem, naquela manhã portenha nada pode ser interrompido, surpreendido ou despedaçado. Nesta trama, objetos, afetos e corpos obsoletos não morrem, não vivem, não lembram, não esquecem. A fúria da memória é seqüestrada. O que afirma o sorriso? No rosto dos homens armados, vê-se a ânsia de destruir algo valioso. Não anseiam eliminar somente corpos e sonhos. O que desejam aniquilar? O que afirma o gesto daquela mulher? Nada morre e nada vive na rua onde o riso mira aquilo tudo com o seu sim. Na calçada, o cego ri mascando chicletes. A mulher, após visualizar tal cena, não será mais a mesma. Um cego rindo transtorna drasticamente a dona de casa dentro do bonde. “Ele mastigava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir --- como se ele a tivesse insultado.” Clarice Lispector, no conto Amor, narra o impacto do gesto que não se deixa dizer o porquê; apresenta-nos o ato que escapa às amarras do significado a ser decifrado, ou da mensagem conclusiva a enviar. Este gesto irrompe num cotidiano onde tudo permanecia na mais perfeita harmonia. Na viagem de bonde no Rio de janeiro, a personagem Ana foi insultada. Um homem rindo na escuridão, despossuído da confirmação do outro para conhecer a si mesmo, alguém que portava a cruel desacomodação do acaso, profanou o universo sagrado da dona de casa. Insultada, em perturbação ela estranhava os limites de si, do outro, desprendendo-se das fronteiras que lhe ofertavam segurança. O cego a ofendeu. Insultou o dia-a-dia apaziguado como o jardim onde Ana plantava sementes, regava-as e as colhia. Marido, filhos, sonhos cresciam como árvores no lar vegetal. O sorriso do homem na calçada interrompia a existência natural daquela mulher. Cortava como faca afiada a evolução contínua de vidas que germinam mas não podem recusar o destino já desenhado. O tempo no lar vegetal não causava perturbação, não exalava como matéria possuída de vida e morte. Queimar com a sua carne, produzir combustão, transformar, era uma propriedade do tempo que aquele lugar desconhecia. O cego ria no invisível, ria na cidade das imagens que tocam, que reverberam com seu corpo o corpo do outro tornado outro após o encontro. Imagem que não necessita do olho ou de um destinatário para afirmar que está viva. No universo- jardim, o tempo sujo de mundo é seqüestrado; cuida-se, espera-se crescer, aguarda-se. Na estufa da personagem Ana, o passado determina os rumos do que virá, o presente é sempre transição, o futuro salva . O riso do cego aviltou o imaculado calendário do universo doméstico. Intensificou a violência das sementes, das árvores que sabotam a fúria da memória. A personagem de Clarice, após o transtorno do que viu na calçada, chega em casa. A família, ela, o não eu, o seu corpo não eram mais os mesmos. “Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. (...) E por um instante a vida sadia que levava até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Porque a vida é periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado – amava com nojo.” O riso do cego a sujou, destruindo sem piedade o tempo e o espaço dos vegetais. A vida periclitante lhe ofertou o oxigênio do acaso, a alegria do risco. Clarice Lispector oferece-nos neste conto o sentido político da arte como riso: um cruel e afetuoso insulto. Afetos e coisas tornadas obsoletas ainda sopram restos de ar. O riso, como a arte, destrói sem concessão a morte do passado, a transição do presente e a salvação no futuro. Insulta a banalização do já visto, do já dito e do ainda não. O riso, como a arte, assemelha-se à cortante ação da história que desloca, de um sujeito, de uma época ou de um espaço, a dor e a sua dissipação; ação cortante onde nunca se terá a serenidade dos vegetais. Dizia sim o cego. A estufa foi quebrada. O riso, à semelhança da história, só admite uma eternidade, a transgressão ao inexorável. Essa eternidade será sempre um insulto a qualquer forma de terror. No terraço a jovem sorri, mas ninguém entende o porquê. Buenos Aires abriga o horror que assedia a força do ato que diz sim. Lá embaixo coisas, sonhos e almas acabam, somem como se não tivessem existido. O que afirma o gesto daquela mulher? Homens armados olham em direção ao sorriso e não entendem a razão. O que estes homens desejam aniquilar? “Vi a cena pelos seus olhos: o terraço sobre as casas baixas, o céu amanhecendo e o cerco. O cerco de 150 homens, os FAP (fuzil-metralhadora pesado), o tanque. Tomei conhecimento do testemunho de um desses homens, um conscrito: ‘O combate durou mais de uma hora e meia. Um homem e uma moça atiravam do alto. A moça chamou a atenção, pois cada vez que disparava uma rajada e nos jogávamos no chão, ela ria. (...) Paramos de atirar, sem que ninguém tivesse ordenado, e pudemos ver bem. Era magrinha, tinha cabelos curtos e estava de camisola. Começou a falar conosco em voz alta, mas bem tranqüila. Não lembro tudo que disse. Mas me lembro da última frase; na verdade ela não me deixa dormir.‘Vocês não nos matarão’, ela disse. Então ela e o homem encostaram suas pistolas na têmpora e se mataram diante de nós.’ Maria Victoria, filha do escritor argentino Rodolfo Walsh, riu no terraço pela última vez no dia em que completava 26 anos, em 1977. Na carta escrita pelo pai, sabemos que os agentes do terror não conseguiram dormir após ouvirem a frase ‘Você não nos matarão’. O riso de Maria Victoria não se tornou obsoleto como coisas e afetos que ainda respiram. Walsh também foi assassinado pela ditadura. O riso de Vicki, como a chamava o pai, é um insulto ao terror. Clarice Lispector, em sua novela A Hora da Estrela, afirma que “tudo no mundo começou com um sim”, um sim que despreza as origens, a evolução contínua da história que faz do passado algo concluído e morto. A literatura persiste como insulto. Os militares tentaram aniquilar a história, mas não conseguiram. O riso que diz sim é eterno como o cego mascando chicles.
Posted on: Fri, 21 Jun 2013 05:41:32 +0000

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