O mal em Ricoeur No filme O Sabor das Cerejas, do iraniano - TopicsExpress



          

O mal em Ricoeur No filme O Sabor das Cerejas, do iraniano Kiarostami, conta a história de um homem que consulta seu médico, queixando-se de dores intensas. “Tenho dores horríveis”, diz o doente, “quando ponho um dedo na cabeça, dói-me. Quando o ponho no estômago, também. O mesmo acontece quando toco no joelho ou no pé”. O médico examina-o cuidadosamente e diz-lhe: “você não tem nada no corpo. É seu dedo que está partido”. Esta pequena história anedótica, à maneira das fábulas e dos apólogos moralizantes, ilustra as duas principais posições filosóficas sobre a natureza do mal. A primeira, similar à visão do doente, apenas encontrará o mal na ordem do mundo e das coisas; a segunda, pelo contrário, irá situar o mal naquele que o observa, na quebra da vontade e do desejo humanos. O mal surge, assim, como uma deficiência do mundo ou do próprio homem. No primeiro caso, o mundo aparece como ocasião de perigo e de dor, no segundo, esse papel é reservado ao humano. Entre a purificação do mundo que nos envolve, como nos ensinam as escolas de raiz órfico-pitagórica, e a educação do anseio que nos move, à maneira dos estoicos, a filosofia parece oscilar entre a via da catarse e a via da temperança. Esta cisão entre o mal do mundo que nos cerca e o mal do desejo que impomos reflete uma divisão mais funda: aquela que se oferece entre o mal físico, por um lado, e o mal moral por outro. Qual a razão subjacente de uma mesma palavra, o mal, para traduzir fenômenos tão diversos como são a violência infligida pelos homens e o sofrimento de quem padece? Na verdade, porque razão a nossa linguagem designa, através de uma mesma palavra, a ação moral reprovada por uma comunidade, e o sofrimento da vítima? Estamos em face de um mesmo termo, o mal, designando significações completamente distintas, até mesmo opostas, de acontecimentos que rejeitamos, quando o sofrimento difere-se do pecado por traços contrários. À imputação que centra o mal moral sobre um agente responsável, o sofrimento sublinha o seu caráter essencialmente de sujeição, afetando-nos e surpreendendo a variedade de causas: adversidades de natureza física, doenças e enfermidades do corpo e do espírito, aflição produzida pela morte de entes queridos, perspectiva da própria morte, sentimento de indignidade, etc.; à censura o sofrimento opõe a lamentação, pois se o homem culpado desaparece, o sofrimento sempre fará vítimas.
Posted on: Fri, 22 Nov 2013 23:39:58 +0000

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