O meu camisão xadrez Aquele poderia ter sido apenas mais um - TopicsExpress



          

O meu camisão xadrez Aquele poderia ter sido apenas mais um sombrio fim de domingo interiorano. Eu havia desfilado com meu novo camisão xadrez de flanela, largado sobre uma calça branca de popelina, estilo pantalona, durante todo o dia. Sem perder uma única oportunidade de exibir minha roupa nova: colhi flores no jardim da frente de casa; solicitei objetos emprestados na vizinhança, apenas com o intuito de voltar para devolvê-los; varri toda a frente do terreno, que já havia sido varrida pela manha; brinquei de bola na rua com os irmãos menores; enfim, explorei todas as possibilidades para me exibir com esmero. Por volta das 18 horas, quando o dia já estava escurecendo, eu ainda tentava prorrogar minha permanência na rua; puxava conversa com os poucos transeuntes e me oferecia para colher frutas para as crianças da vizinhança. Eu me sentia admirada, embora não tivesse ouvido um elogio sequer durante todo o dia. Já estava escurecendo quando o pai passou para acender as luzes externas de casa e me ordenou batendo com os pés no chão: - Já pra dentro! Quer levar uma surra rapariga? Ora, como uma menina que passara o dia de domingo a exibir seu magnífico camisão xadrez desejaria levar uma surra no final da tarde? E por que me chamar de rapariga? Rapariga era, para mim, a designação de uma menina serelepe e sem modos, mas eu havia passado todo o dia me comportando como uma verdadeira princesa rural; havia, provavelmente, causado inveja às meninas e atraído os olhares enamorados dos meninos da localidade; havia sido comentada nas rodas de conversas dos grandes. E até imaginava os comentários tecidos entre os pares admirados com minha evolução: - Nossa! como ela está bonita! - Já está uma mocinha. - Essa menina parece uma princesa. Uma princesa... Contudo, temendo ser castigada com umas cintadas, tratei de obedecer meu rigoroso pai. Mas, ainda assim, caminhei com passos lentos e curtos em direção à porta da frente - sequer cogitei entrar pela porta dos fundos. O momento tão adiado chegara finalmente; mas, na manhã seguinte, eu acordaria cedo e iria para escola. Antevia os olhares, os murmúrios, as atenções, as disputas para sentar ao meu lado, as provocações de alguma menina despeitada, e a troca de olhares apaixonados com o Téo. O Téo havia passado duas vezes na rua: uma quando eu estava jogando vôlei com meus sobrinhos e a outra quando eu estava pulando amarelinha. Ele havia olhado para trás rindo e eu, na minha ingenuidade romântica, imaginei que o motivo da graça fosse a felicidade por me ver tão bonita e estilosa. Mas meus pensamentos foram interrompidos por uma voz ríspida e absurdamente maligna: - O guriazinha! Guriazinha? Seria eu a guriazinha? Meu coração acelerou; volvi o rosto em direção à janela da frente da casa de minha vizinha e tive a certeza de que a guriazinha era eu, e a voz ríspida, de meu vizinho, Amâncio, que costumava se prostrar à janela nos finais de tarde, a fim de se comprazer observando os poucos transeuntes que por ali passavam. Eram raras as vezes em que aquela criatura fechada e rude respondia a um cumprimento que não lhe fosse dirigido por membros de sua família biológica. Não foram poucas as vezes em que o cumprimentei e tive o silêncio como resposta. Mas, naquele fim de tarde de domingo, havia algo de sádico em seu olhar e em sua voz, que soou implacável e avassaladora em meus ouvidos. - Olha nega, tu até que és bonitinha, mas com essa roupa dá até pena! Deus que me perdoe! Que roupa mais esquisita! Tira isso guria! Vai colocar uma blusa velha de lã que tu ganha mais! - Ah, quanta perversidade? Eu poderia ter-lhe respondido muitas coisas, poderia ter falado, sinceramente, o que eu pensava sobre ele; mas me contive, ou fui contida por uma comoção asfixiante. Silenciosa e perturbada, simplesmente baixei a cabeça e deixei que meus cabelos caíssem sobre meu rosto enrubescido, enquanto mirava meus pés humildemente calçados com um par de congas Alcolor azul marinho. As lágrimas que desciam espessas de meus olhos de vergonha margeavam meus lábios trêmulos e caiam livres sobre a grama ressecada pelas geadas do mês de Julho. Eu sofria de um mal que até então desconhecia, eu sofria do mal da verdade, e a dor parecia insuportável. Quanto a meu vizinho, posso dizer que aquele deve ter sido, para ele, um momento de glória e imensurável regozijo, pois quando cheguei ao portão resolvi lançar-lhe um olhar de ódio e ameaça, pretendia intimidá-lo, no entanto, lá estava ele de braços cruzados, embevecido pelo prazer incondicional do algoz que conseguiu amesquinhar sua vítima. Entrei em casa de soslaio, cuidando para que ninguém me visse chorando; logo que transpus a porta do meu quarto, me coloquei diante do espelho; ergui a cabeça tentando exprimir indiferença diante de meu caos emocional; mirei meus olhos vermelhos e inchados e contemplei atônita aquela roupa que, para mim, continuava a ser linda, embora jamais voltaria a usá-la. Existia algo de conflitante em minha decisão, afinal, para mim, Amâncio sempre fora um parvo servil e grosseiro, e eu uma mocinha orgulhosa e atrevida do interior; eu gostava de rock e Amâncio, de música sertaneja; eu jogava I Ching e Amâncio, baralho; eu curtia praia e Amâncio, futebol na várzea. É certo que se fosse hoje eu usaria aquele dito camisão até furar ou romper as costuras; afinal eu havia trocado um par de tênis novinho em folha por aquele camisão xadrez. Como poderia simplesmente entregá-lo às traças? O pior seria ter de inventar argumentos para justificar, a mãe, o abandono da peça. Pensei em dizer que o tecido me causava alergia, mas logo desisti da ideia, visto que eu poderia vir a me interessar por outra peça do mesmo tecido; poderia deixá-lo cair, propositalmente, dentro de um molho de cloro; talvez relatar, com expressão de terror, que havia sonhado que estava sendo velada vestida com o estupor, após ter sido assassinada por Amâncio. Por fim, optei pelo molho de cloro, sem pesar, pois ansiava por me livrar daquela lembrança maldita. Eu e minha mãe havíamos acordado que eu ganharia o camisão xadrez no inverno, em detrimento do par de tênis, e no verão ganharia uma Melissa Aranha, moda do verão anterior. O par de congas Alcolor seria o meu calçado oficial do inverno daquele ano; estaria comigo na escola e nos passeios de fim de semana; haveria de combiná-lo com as blusas usadas por minha irmã mais velha no inverno anterior. No entanto, um dia após o incidente do camisão, conjecturei para que o meu par de congas desaparecesse misteriosamente. Tive a ilusão de que diante de meu infortúnio, minha mãe se compadeceria, ignoraria nosso acordo e compraria o par de tênis em algumas prestações. Ora, poderia pagá-lo com a venda de um saco de feijão ou dois de milho; eu mesma poderia fazer um jogo de toalhas de crochê para vender e colaborar com o pagamento. Havia meses que eu sonhava com um par de tênis Rainha e estava disposta a implorar, chorar, me comprometer com tarefas excessivas para consegui-lo. O resultado, no entanto, foi um dia sem ir à escola, uma dúzia de chineladas e a aquisição de um par de congas simples, comprado num cestão no centro de Itajaí. Eu pensei em me vingar, idealizei alguns planos, mas foram somente planos, nada mais. Sem dúvida, roguei muitas pragas a Amâncio, desejei vê-lo morto, inválido, passando fome, traído, mutilado, banguela, mas nada fiz. Durante as semanas seguintes passava de cabeça erguida em frente à inesquecível janela - ignorando-o, obviamente. Ah, mas se ele pudesse ouvir meus pensamentos... Mas isso também passou, e ele se tornou nada mais que uma referência isolada, uma referência a algo ruim, tal como tantas coisas em minha vida, tal como tudo aquilo que não aprendi a amar. Maria Tereza
Posted on: Thu, 26 Sep 2013 01:09:15 +0000

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