OLHOS E PASSARINHOS AZUIS Faz algum tempo que tenho chorado - TopicsExpress



          

OLHOS E PASSARINHOS AZUIS Faz algum tempo que tenho chorado apenas por força de expressão. Vertendo lágrimas em jorros de palavras, sem molhar os olhos. Meus olhos ressecados, baços, meus olhos como duas uvas passas. Ninguém tem me decepcionado. Nenhuma outra tragédia tem me acometido. Recebo carinho dos velhos amigos, ganho novas esperanças com colegas recentes. As portas se fechando para abrir janelas refrescantes. As coisas têm dado certo, na medida da incerteza, e isso me faz sentir calmo, calmo na medida da minha sentença. Então chorar perdeu seu palco principal. A não ser quando me alegro muito, o cristal líquido ameaça, se acumula entre as pálpebras, mas não escorre. Está espesso, como depois de muito tempo concentrado. Chorar de ser feliz é meio abstrato demais. E minhas felicidades de choro me têm vindo mesmo nos meus melhores devaneios. Daydreamer de mim mesmo, sequei a fonte, restaram-me as moedas incrustadas no fundo, brilhando feito lágrima empoçada. Tenho milhões de desejos que me sorriem, sem melancolia. Mas quando abri a janela, hoje de manhã, os passarinhos azuis gritavam mortes enormes, tragédias larguíssimas, o mundo súbito acontecendo de repente. De repente, eu não esperava me chocar. As vozes brancas calando-se para sempre. Morremos todos, todos os dias. Alguns continuam, para morrer de novo, nas mortes do dia seguinte. E assim, segue-se vivendo, respirando fundo e vendo os passarinhos azuis, através da janela, anunciarem que o risco de viver é real. Então, pela primeira vez em um tempo que não me lembro, ameacei a tristeza de um choro, outra vez. Eu como quando sinto vontade de comer, porque não sinto fome. Com a sede, sou igualmente superficial. Tenho conforto para dormir e, se acordo, tenho conforto para permanecer acordado. Minha família não está doente, meus amigos prosperam a cada dia. Me supero, passo a passo, cheio de condições e motivos. Mas nem toda essa mordomia me privou de sentir-me triste diante do caos implacável. “Um instante é bastante para a vida inteira”, um instante arrancou duas grossas lágrimas de meus olhos baços. Como não escorreram, apuradas de sais e esperas, senti-as boiando no branco dos meus olhos. Eu que perdi a sensibilidade de ver, percebo que meus olhos ainda servem para o tato. Meus olhos arderam de choro acumulado. Como um litro de leite esquecido na porta da geladeira que, ao invés de saciar, envenenaria. Intoxiquei-me por não exercitar o saudável hábito de refrescar o pranto. Peçonhentas, essas duas lágrimas me arderam mais do que me ardera o motivo que lhes dera vazão. Cocei, espremi até saírem, esfreguei lenços, meu choro grosso impresso no outro branco descartável. Só que os olhos, estes moleques ressentidos, agora choravam da dor do próprio choro. Sem querer, sem pretender, sem sequer saber que precisava, estava eu num ritual de purificação. Ia me lembrando de dores antigas, para compará-las com os olhos a arder. A cada dor, vertia mais outra gota. E, de gota em gota, meu pranto se dissolvia, afinava-se, destilando-se, o sumo apurando, bagaços despojados no cesto de lenços usados. Do veneno à cura, precisei penar, mas sobrevivi. Senti culpa, ressentimento, rancor, até um ódio muito antigo veio me visitar. Escorreu tudo pela lama transparente, o gel se ia dissolvendo em água, as substâncias antigas que, pesadas, relegara-se ao fundo, afloravam, viam a luz do sol e evaporavam antes de chegar à borda do meu rosto. Debaixo do sol que sublimava meu passado escuro, os passarinhos azuis cantavam suas tragédias, pela janela eu me debulhava, sem vê-los. Solucei, dei um último suspiro, me desfiz do lenço derradeiro que caiu no chão, sem mais espaço no lixo. Desafogado, agradeci. Como quem emerge de águas muito torturantes, senti sobre meus olhos úmidos o frescor da brisa que vinha cheia de notas azuis dos passarinhos. Meus olhos baços, secos, meus olhos sem cor de íris voltaram a poder chorar sem medo de arder. Mas não há motivos para entristecer-se, nem razão para acumular. Hoje, não. Amanhã, bem, os olhos, por melhor que enxerguem, não alcançam mesmo o amanhã. Espere os passarinhos azuis, eles dirão. Feliz deles que olham sem ver, cantam sua cor e se emocionam com a própria vontade de sentir. Eles não choram. Eu, sim. (Antigos olhares nus do blog)
Posted on: Sun, 01 Sep 2013 01:08:12 +0000

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