ORALIZAÇÃO DA LITERATURA: PRIMEIRAS DENTIÇÕES - TopicsExpress



          

ORALIZAÇÃO DA LITERATURA: PRIMEIRAS DENTIÇÕES Luciano B. Justino (PPGLI/UEPB/CNPq) Penso que hoje trabalhamos no sentido de uma “oralização” da literatura – por um lado porque há poesias orais coletivas que se desenvolvem; por outro lado porque está havendo “oralização” das técnicas da escrita. Não estou me referindo à “oralização” banalizada, presente na televisão ou na mídia, mas sim à “oralização” criativa (GLISSANT, 2006, p. 126). Enquanto autênticos representantes de uma civilização de oralidade é que os escritores africanos produziram a literatura mais concordante com a suas normas escritas e que, ao contrário, é na mesma medida em que eles se integraram a uma civilização da escrita que eles tiveram os meios de operar a oralização dessa literatura. Pois, se admitimos a hipótese aqui defendida, trata-se exatamente de uma oralização da literatura, isto é, da operalização de um processo que supõe um trabalho. Mais do que índices naturalmente dispostos no texto, quase sem o conhecimento dos criadores, as marcas de oralidade são signos, a serviço de estratégias – conscientes ou inconscientes – que devem ser pensadas como efeitos de texto. Não há traços de oralidade, mas efeitos de oralidade (DERIVE, 2010, p. 24). Objeto de percepção sensorial interpessoal, o gesto “coloca na obra”, para o seu autor, elementos cinéticos, processos térmicos e químicos, traços formais tias como dimensão e contorno, caracteres dinâmicas definíveis em imagens de circunstância e peso, um ambiente, enfim, constituído pela realidade psico-fisiológica do corpo de onde provém e do meio ambiente em que está este corpo. Para aquele que observa o gesto, a decodificação implica fundamentalmente a visão, mas também, numa medida variável, a escuta, o olfato e o toque (ZUMTHOR, 2005, p. 146). Sem presumir do futuro o que sairá daqui, nada ou quase uma arte. Stephane Mallarmé Embora devamos recusar toda visão fechada da televisão e da mídia, a oralização da literatura rumo a uma épica nova como fenômeno político contemporâneo em Edouard Glissant, coloca questões de grande atualidade para se compreender a mundialização das resistências na literatura contemporânea, brasileira e internacional. Não heroica e não nacionalista, a oralização é uma espécie não épica de epos, multilíngue e compósito, um epos que não crê no épico nem em sua epopéia. 1) O que ela tem de epos é a premissa da partilha e do comum, aquilo que, como sugeriu Jacques Rancière, nos une e nos divide. Língua franca dos lugares-comunes. 2) O que ela tem de epos é uma preocupação com os mortos e com suas memórias, constituídas, tradicionais, e por inventar, abertas, não absolutas, não solipsistas. Por isso que pensar em oralização não é pensar em oralidade. A oralidade é um sistema estático; a oralização é errática, não sistemática e caótica. Contudo, a estratégia de leitura da oralização não pode esquecer nunca os estudos da oralidade. Eles têm muito a nos dizer. A oralidade já tem uma longa tradição de pesquisa, é um conceito que constitui sistema, porque já possui, tanto na linguística quanto na antropologia e nos estudos literários, por exemplo, importantes base de pesquisa para se pensar a voz e seus devires, mas é diferente da oralização porque esse sistema está eivado de pressupostos que o conceito de oralização recusa, a saber: 1) uma prática de memória associada a tradições supostamente uniformes e monodiscursivas, “populares”, muito arraigadas lá atrás, num passado absoluto; 2) a fala como princípio definidor, cuja anterioridade temos bons motivos para desacreditar, a oralização é mais sonora que linguageira,; 3)uma maneira de delimitar o objeto de pesquisa a partir de unidades estáveis, campos autônomos e exclusividade sociossemiótica. Como estratégia de leitura, a oralização não articula (só ou principalmente) questões de identidade. Sua inserção num passado, numa tradição, numa comunidade, não para aí, no “identitário”. Como estratégia de leitura, o tempo é sempre o presente, “carregado de agoras”. De resíduos, contemporâneos não contemporâneos, potenciais formas por vir. A oralização é ambivalente. Ela não porta nenhuma saudade, todos os seus mortos estão vivos, no presente da obra. Não é o passado ou a memória de uma outra semiose em uma obra do presente do leitor, é uma espécie de futuro do texto atual, na medida em que não remete a um antes apriorístico, só pode ser encontrada a posteriori. Se o romance é um gênero que reflete a forma de percepção multimodal da modernidade, Bakhtin, associado à leitura silenciosa do livro, a oralização não é um gênero, mas uma configuração intermidial, com/em muitos subgêneros. Ela não é encontrável só na formas da interação vocal. Ela é tanto o devir da literatura para outras linguagens quanto a permanência, em nova base, da literatura como gênero do discurso moderno nas outras mídias e artes. A oralização está associada a uma nova dominante cultural pós-romanesca que vai da literatura para tantas mídias e destas para o texto literário, sobretudo narrativo. Essa dominante cultural não é oral, é também oral, mas é principalmente sonora, não acata o discurso pós-moderno da “sociedade da imagem”. Ela compreende o contemporâneo como sonoro. O sonoro nos livra do habitus linguageiro e coloca a nossa disposição outras formas de formar, outras estruturas, outro tipo de signo e de interação sóciodiscursiva, outros lugares de dizer e do fazer, sempre pela língua e pela escrita, nunca sem elas, mas não confinado a elas. A oralização é uma pulsão que atravessa a escrita e a oralidade numa relação necessariamente de diálogo, fusão, tensão, pastiche, incorporação, comentário, citação, relação não “interlingual”, inter e intrassistêmica, pressuposto é que a literatura e suas escritas nunca estão sozinhas. Nem fora nem dentro, todas as linguagens, todas as mídias e todas as artes se atravessam. Em todo lugar só há barroco e crioulização, hibrismo e mestiçagem. Oralização tem a toda vez um prefixo inter... A oralização só se interessa por escritas, no sentido derredeano de rastros, materialidades de grama. É mais amásia da escrita que da oralidade. Sua relação com a oralidade é lateral, com a escrita é umbilical. Moral da esc(t)ória: a oralização nas narrativas contemporâneas semiotiza a resistência dos muitos, de seus diversos modos de produção de linguagem e de vida. Referências GLISSANT, Edouard. O caos-mundo: por uma estética da relação. In: Introdução a uma poética da diversidade. Tradução Enilce Albergaria Rocha. Juiz de Fora: EDUFJF, 2005, p. 97-130. DERIVE, Jean. Literarização da oralidade, oralização da literatura nas culturas africanas. In: Oralidade, literarização e oralização da literatura. Belo Horizonte: UFMG, 2010, p. 7-26. ZUMTHOR, Paul. A poesia e o corpo. In: Escritura e nomadismo. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005, p. 139-150.
Posted on: Tue, 23 Jul 2013 18:11:02 +0000

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