OS BARDOS Devido à popularidade do Livro Tibetano dos Mortos, - TopicsExpress



          

OS BARDOS Devido à popularidade do Livro Tibetano dos Mortos, as pessoas comumente associam a palavra bardo com a morte. É verdade que “bardo” é usado na linguagem diária dos tibetanos para designar o estado intermediário entre a morte e o renascimento, mas ele tem um sentido misto mais amplo e profundo. É nos ensinamentos sobre o bardo que, talvez mais do que em qualquer outro lugar, podemos ver como é profunda e abrangente a sabedoria dos budas sobre a vida e a morte, e como é inseparável essa coisa chamada “vida” daquilo que chamamos “morte”, quando visitas e entendidas claramente a partir da perspectiva da iluminação. Podemos dividir o conjunto da nossa existência em quatro realidades: vida, o morrer e a morte, o pós-morte e o renascimento. São esses os Quatro Bardos: . O bardo “natural “ desta vida . O bardo “doloroso” da morte . O bardo “luminoso” do dharmata . O bardo “cármico” Do vir-a-ser 1. O bardo natural desta vida abarca todo o período entre o nascimento e a morte. No nosso presente estado de conhecimento isso pode parecer mais do que apenas um bardo, uma transição. Mas se refletirmos sobre isso ficará claro que o tempo que dispomos nesta vida, se comparado com o enorme extensão, e duração da nossa história cármica, é de fato relativamente curto. Os ensinamentos nos dizem uma e outra vez que o bardo desta vida é o único momento, e portanto o melhor, para nos prepararmos para a morte: Familiarizando-nos com os ensinamentos e estabilizando a prática. 2. O bardo doloroso da morte se estende de início do processo de morrer, até o fim do que é conhecido como ‘Respiração interior”; esta, por sua vez, culmina no despontar da natureza da mente, o que chamamos a “Luminosidade Base”, no momento da morte. 3. O bardo luminoso do dharmata abrange a experiência pôs-morte da radiância da natureza da mente, a luminosidade ou “clara Luz”, que se manifesta como som, cor e luz. 4. O bardo cármico do vir a ser é o que em geral denominamos “bardo ou estado intermediário”, que dura até o momento em que assumimos um novo nascimento. O que distingue e define cada um dos bardos é que todos eles são intervalos ou períodos em que a possibilidade do despertar está particularmente presente. As oportunidades de liberação estão ocorrendo de maneira contínua e ininterrupta ao longo da vida e da morte; os ensinamentos do bardo são a chave ou a ferramenta que nos permitirá descobrir ou reconhecer essas oportunidades e fazer o que uso mais pleno delas. INCERTEZA E OPORTUNIDADE Uma das características centrais dos bardos é que são períodos de profunda incerteza. Tome esta vida como o exemplo principal. À medida que o mundo à nossa volta se torna mais turbulento, também as nossas vidas tornam-se cada vez mais fragmentadas. Sem contato e sintonia com nós mesmos, ficamos ansiosos, agitados e freqüentemente paranóicos. A alfinetada de uma pequenina crise estoura o balão das estratégias atrás das quais nos escondemos. Um único momento de pânico revela-nos como tudo é precário e instável. Viver no mundo moderno é sem dúvida viver em um reino do bardo; não é preciso morrer para experiênciá-lo. Essa incerteza, que já agora permeia tudo, torna-se ainda mais intensa, mais acentuada, depois que morremos, quando os mestres nos dizem que nossa claridade e confusão é “multiplicada por sete”,. Qualquer pessoa que olhe com honestidade para sua vida verá que vivemos em constante estado de dúvida e ambigüidade. Nossa mente fica alternando entre confusão e claridade. Se só ficássemos confusos todo o tempo, isso permitiria ao menos alguma espécie de claridade. O que é de fato desconcertante a respeito da vida é que às vezes, apesar de toda nossa confusão, podemos ser realmente sábios! Isso nos revela o que é o bardo: uma contínua e desalentadora oscilação entre claridade e confusão, perplexidade e discernimento, certeza e incerteza, sanidade e insanidade. Em nossa mente, tal como somos agora, sabedora e confusão surgem simultaneamente, ou, como dizemos, são “co-emergentes”. Isso mostra que nos defrontamos com um contínuo estado de escolha entre aquelas alternâncias, e que tudo depende afinal do que escolhemos. Essa constante incerteza pode fazer tudo parecer triste e quase sem esperança; mas se você olhar para ela com maior atenção, verá que sua própria natureza cria intervalos, espaços em que profundas oportunidades de transformação, florescem continuamente – desde que possam ser visitas e aproveitadas. Como a vida nada mais é que uma oscilação permanente entre nascimento, morte e transição, as experiências do bardo estão nos acontecendo o tempo todo e são parte fundamental da nossa constituição psicológica. No entanto, quando a nossa mente passa de uma assim chamada situação “sólida”, para a seguinte, esquecemo-nos dos bardos e seus intervalos. Habitualmente ignoramos as transições que estão sempre ocorrendo. Na realidade, como os ensinamentos podem nos ajudar a compreender, cada momento de nossa experiência é um bardo, tal como cada pensamento e cada emoção que emanam e tornam a morrer no âmago da mente. Os ensinamentos nos alertam para o fato de que é especialmente nos momentos de forte mudança e transição que a verdadeira natureza primordial de nossa mente, semelhante ao céu, terá uma oportunidade de se manifestar. Deixe-me dar-lhe um exemplo. Imagine que você volta para casa um dia, após o trabalho, e encontra a porta de sua casa arrombada, pendurada nas dobradiças. A casa foi assaltada. Você entra e descobre que tudo o que possuía desapareceu. Por instantes fica paralisado, em estado de choque, e em meio ao desespero procura freneticamente entrar no processo mental de tentar lembrar o que foi roubado. O resultado é terrível: você perdeu tudo. Sua mente passa da inquietação e agitação ao atordoamento, e os pensamentos se acalmam. E há uma súbita, profunda imobilidade, quase uma experiência de felicidade. Não há mais luta nem esforço, porque ambos são inúteis. Agora tudo o que você tem a fazer é desistir, não há escolha. Assim, num instante você perdeu alguma coisa preciosa e no instante imediatamente seguinte você descobre que a sua mente repousa num estado de paz profunda. Quando esse tipo de experiência acontece, não corra logo em seguida em busca de solução. Fique uns instantes nesse estado de paz. Permita que ele seja um intervalo, uma brecha. E se você de fato descansar nesse intervalo, olhando dentro da mente, vislumbrará a natureza imortal da mente iluminada. Quanto mais profunda for nossa sensibilidade e mais aguda nossa prontidão para as assombrosas oportunidades de uma visão interior radical, oferecidas pelos intervalos e transições como esses durante a vida, mais estaremos preparados interiormente quando eles ocorrerem, de modo imensamente mais poderoso e desgovernado, no momento da morte. Isso é de extrema importância, porque os ensinamentos do bardo nos dizem que há momentos em que a mente é muito mais livre do que o normal, momentos mais poderosos que outros, que contêm uma carga e implicações cármicas muito mais fortes. Desses, o momento supremo é o da morte – nesse instante o corpo é deixado para trás e nos é oferecida então a maior das oportunidades de liberação. Por mais consumada que possa ser a nossa mestria espiritual, somos limitados pelo corpo e seu carma. Mas com a libertação física da morte surge a mais maravilhosa oportunidade de conseguir tudo aquilo para o que vimos nos preparando, em nossa prática e em nossa vida. Mesmo no caso de um mestre supremo que alcançou a mais elevada realização, a liberação final, chamada parinirvana, desponta somente na morte. É por isso que na tradição tibetana nós não celebramos o aniversário do mestre; nós celebramos sua morte, o seu momento de iluminação final. Na minha infância no Tibete, e nos anos que se seguiram, ouvi inúmeras histórias sobre grandes praticantes, e até de iogues aparentemente comuns e de leigos, que morreram de maneira surpreendente e dramática. Não foi antes daquele último instante que eles, finalmente, revelaram a profundidade da sua realização e o poder dos ensinamentos que chegaram a personificar. Os Tantras do Dzogchen, os ensinamentos ancestrais de onde as instruções do bardo procedem, falam de um pássaro mitológico, garuda, que já nasce completamente crescido. Essa imagem simboliza nossa natureza primordial, que já nasceu completamente perfeita. O filhote de garuda tem todas as penas para voar já desenvolvidas dentro do ovo, mas não pode voar antes de sair dele. Somente quando a casca se parte e abre é que ele pode sair e subir muito alto no céu. De modo semelhante, nos dizem os mestres, as qualidades do estado búdico ficam veladas pelo corpo, e tão logo ele é descartado essas qualidades aparecem de forma radiante. Explica-se o porquê de o momento da morte ser tão plano de oportunidades pelo fato de ser aí que a natureza fundamental da mente, a Luminosidade Base ou Clara Luz, vai se manifestar de forma natural, de um modo vasto e esplêndido. Se nesse momento crucial pudermos reconhecer a Luminosidade Base, dizem-nos os ensinamentos, conseguiremos a liberação. Mas isso não é possível a menos que você tenha familiaridade e intimidade com a natureza da mente durante sua vida, pela prática espiritual. E é por isso, muito surpreendentemente, que se diz em nossa tradição que uma pessoa liberada no momento da morte é considerada liberada nesta vida, e não num dos estados do bardo após a morte; porque é nesta vida que o reconhecimento essencial da Clara Luz teve lugar e se estabeleceu. Este é um ponto essencial a ser compreendido. OUTRAS REALIDADES Como disse, os bardos são oportunidades, mas exatamente o que é que neles torna possível tomarmos posse da oportunidade que nos oferecem? A resposta é simples: eles são todos diferentes estados e diferentes realidades da mente. No treinamento budista preparamo-nos através da meditação pra descobrir os vários estados inter-relacionados da mente, e entrarmos em diferentes níveis de consciência com relativa segurança. Há uma relação distinta e exata entre os estados do bardo e os níveis de consciência que experimentamos dentro do ciclo da vida e da morte. Assim, quando passamos de um bardo para o outro, tanto na vida quanto na morte, há uma mudança correspondente na consciência, mudança que podemos, através da prática espiritual, vir a conhecer intimamente e a compreender de modo completo. Uma vez que o processo que se desenrola nos bardos da morte está presente na profundeza da nossa mente, ele se manifesta em vários níveis também durante a vida. Há, por exemplo, uma viva correspondência entre os graus de sutileza da consciência através dos quais nos movemos no sono e nos sonhos, e os três bardos associados com a morte: . Dormir é semelhante ao bardo da morte, onde os elementos e os processos do pensamento se dissolvem, dando acesso à experiência da Luminosidade Base. . Sonhar tem afinidade com o bardo do vir a ser, o estado intermediário onde você tem um corpo mental” clarividente e de grande mobilidade que passa por todos os tipos de experiências. . Entre o bardo da morte e o bardo do vir a ser, há um estado muito especial de Luminosidade ou Clara luz, chamado, como já disse, o “bardo do dharmata”. É uma experiência que ocorre a todo mundo, mas da qual, muitos poucos se dão conta, o que não dirá vivê-la completamente, já que só pode ser reconhecida por um praticante treinado. Esse bardo do dharmata corresponde ao período logo após o início do sono, e antes que os sonhos comecem. É claro que os bardos da morte são estados de consciência muito mais profundos e momentos bem mais poderosos do que os do sono e do sonho, mas seus níveis relativos de sutileza se correspondem e mostram o tipo de ligação e paralelo que existe entre todos os diferentes níveis de consciência. Os mestres sempre usam essa comparação particular para mostrar como é difícil manter a consciência durante os estados de bardo. Quantos de nós estão atentos à mudança em nossa consciência quando começa o sono? Ou no momento de sono antes dos sonhos iniciarem? Quantos de nós percebem enquanto sonhamos, que estamos sonhando? Imagine então como será difícil permanecer alerta durante o turbilhão dos bardos da morte. O modo como sua mente está nos estados de sono e de sonho indica como ela irá estar nos correspondentes estados de bardo; por exemplo, a maneira como você reage agora aos sonhos, pesadelos e dificuldades, mostra como poderá reagir depois de morrer. Essa é a razão de a ioga do sono e dos sonhos ser parte tão importante da preparação para a morte. O que um verdadeiro praticante busca fazer é manter, sem falha e sem interrupção, sua consciência da natureza da mente, dia e noite, e assim usar diretamente as diferentes fase do sono e do sonho para reconhecer e familiarizar-se com o que acontecerá nos bardos durante e após a morte. Assim podemos encontrar dois outros bardos comumente incluídos dentro do bardo natural desta vida: o bardo do sono e do sonho, e o bardo da meditação. A meditação é a prática do dia, e as iogas do sono e dos sonhos são as práticas da noite. Na tradição a que o Livro Tibetano dos Mortos pertence, esses dois são acrescentados aos Quatro Bardos para perfazer a série dos Seis Bardos. A VIDA E A MORTE NA PALMA DA MÃO Cada um dos bardos tem sua própria e exclusiva série de instruções e práticas de meditação, dirigidas precisamente àquelas realidades e seus particulares estados da mente. É assim que as práticas espirituais e o treinamento designado para cada um dos estados de bardo podem habilitar-nos a fazer o mais pleno uso deles e de suas oportunidades de liberação. O ponto essencial a ser compreendido a respeito dos bardos é este: seguindo o treinamento dessas práticas é realmente possível realizar esses estados da mente enquanto ainda se está vivo. Podemos de fato experimentá-los aqui e agora. Esse tipo de completa mestria das diferentes dimensões da mente pode parecer muito difícil de compreender para um ocidental, mas isso de forma alguma significa que é impossível de ser atingido. Kuna Lama Tenzin Gyaltsen foi um mestre realizado que veio originalmente da região do Himalaia pertencente à Índia setentrional. Quando era jovem encontrou um lama no Sikkim que o aconselhou a ir ao Tibete para prosseguir seus estudos de budismo. Foi então para Kham, no leste tibetano, onde recebeu ensinamentos de alguns dos maiores lamas, inclusive de meu mestre Jamyang Khyentse. O conhecimento que Kunu Lama tinha de sânscrito granjeou-lhe respeito e abriu muitas portas para ele. Os mestres gostavam imensamente de dar-lhe ensinamentos, na esperança de que ele levasse essas instruções de volta para a Índia e as transmitisse lá, onde sabiam que havia quase desaparecido. Depois de algum tempo no Tibete, Kunu Lama tornou-se desaparecido. Depois de algum tempo no Tibete, Kunu Lama tornou-se excepcionalmente preparado e realizado. Acabou retornando à Índia, onde viveu como verdadeiro asceta. Quando meu mestre e eu fomos para a Índia em peregrinação, depois de deixar o Tibete, procuramos por ele em toda Benares. Afinal o encontramos num templo hindu. Ninguém sabia quem ele era, nem mesmo sabiam que era budista, e muito menos que era um mestre. Ali era conhecido como um iogue santo e gentil e lhe ofereciam comida. Sempre que penso nele, digo a mim mesmo: “São Francisco de Assis deve ter sido assim”. Quando os monges tibetanos e os lamas foram pela primeira vez para o exílio, Kunu Lama foi escolhido para ensinar-lhes gramática e sânscrito numa escola fundada pelo Dalai Lama. Muitos lamas cultos aprenderam com ele e todos o consideraram um excelente professor de línguas. Mas um dia aconteceu de alguém lhe fazer uma pergunta sobre o ensinamento do Buda. A resposta que ele deu foi extremamente profunda. Aí todos o consideraram um excelente professor de línguas. Aí, todos continuaram fazendo perguntas e descobriram que para tudo que lhe perguntava ele tinha resposta. De fato, ele pôde dar todo ensinamento que lhe foi pedido. Assim, sua reputação espalhou-se por toda parte, e em pouquíssimo tempo ele já ensinava para membros de todas as diferentes escolas as suas próprias tradições particulares. Sua Santidade o Dalai Lama tomou-o então como seu guia espiritual. Reconheceu Kunu Lama como a inspiração para os seus ensinamentos e práticas sobre a compaixão. Realmente, ele era um exemplo vivo de compaixão e, apesar de ter se tornado bem conhecido, não mudou em nada. Usava ainda as mesmas velhas roupas simples e vivia num pequeno quarto. Quando alguém o procurava e lhe oferecia um presente, ele o dava para seu próximo visitante. Se alguém cozinhava para ele, ele comia, caso contrário, ficava sem comer. Um dia, um mestre que conheço bem foi visitar Kunu Lama para lhe fazer algumas perguntas sobre os bardos. Esse mestre é um erudito muito versado na tradição do Livro Tibetano dos Mortos e tem muita experiência nas práticas relacionadas com a obra. Ele me contou depois como fez as suas perguntas e, como ouviu, encantado, a resposta de Kunu Lama. Nunca tinha ouvido nada parecido antes. Quando descrevia os bardos, era tão vivo e preciso o que dizia que era como se estivesse dando a alguém instruções sobre como ir ao Central Park ou aos Champs Elysées. Era como se ele estivesse de fato nesses bardos. Kunu Lama falava dos bardos diretamente a partir de sua própria experiência. Um praticante do seu calibre já viajou por todas as diferentes dimensões da realidade. E é porque os estados do bardo estão todos contidos em nossas mentes que eles podem ser revelados e liberados através das práticas do bardo. Esses ensinamentos vêm da mente de sabedoria dos budas, que podem ver a vida e a morte como se olhassem para a palma das próprias mãos. Nós também somos budas. Assim, se pudermos praticar no bardo desta vida, e ir cada vez mais fundo na natureza da nossa mente, então poderemos descobrir esse conhecimento dos bardos, e a verdade desses ensinamentos se desdobrará em nós por si mesma. Por isso o bardo natural desta vida é de suma importância. É aqui e agora que a preparação integral para todos os bardos tem lugar. “O caminho supremo da preparação”, já se disse, “é agora – tornar-se iluminado nesta vida”. (Sogyal Rinpoche – fls. 142 a 151 – O Livro Tibetano do Viver e do Morrer).
Posted on: Thu, 17 Oct 2013 18:36:40 +0000

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