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OS DILEMAS DA INTIMIDADE - UM TEMA MUITO ACTUAL (a propósito da recente publicação de uma biografia - concerteza não desejada - de J. D. Salinger): ao ler este bom artigo de A.G. é impossível abstrairmo-nos por um momento de um nome ausente, HERBERTO HELDER (ARTIGO) - Há uma categoria de escritores que renegou a ordem social da República das Letras e se exilou no desaparecimento. Por António Guerreiro "São muitas vezes citadas, estas palavras de Salinger, provenientes de uma entrevista que deu em 1974, por telefone, da sua residência em Cornish, New Hampshire: "Há uma paz maravilhosa em não publicar. É tranquilo. Silencioso. Publicar é uma invasão terrível da minha vida privada. Gosto de escrever. Adoro escrever. Mas só escrevo para mim e para satisfazer o prazer." Teria sido esta a sua última entrevista publicada se, seis anos depois, não tivesse caído na armadilha de falar com uma mulher que lhe escondeu que era jornalista. Desde 1965 que o escritor se tinha retirado da publicação (e note-se que retirar-se não é exactamente o mesmo que deixar de publicar), e a ela nunca mais regressou. Mas já desde meados dos anos 50 que Salinger, a individualidade civil com esse nome, se tinha ocultado e iniciado uma vida completamente retirada dos protocolos da "vida literária" - aqueles que dão o assentimento ou até promovem a curiosidade biográfica. Quando o escritor inglês Ian Hamilton quis preencher essa pública lacuna, recorrendo, para a construção de uma biografia, às cartas que Salinger tinha enviado aos seus correspondentes, teve que se defrontar com um processo judicial (que, aliás, foi favorável a Salinger, obrigando Hamilton a limitar-se a parafrasear as cartas). Já o livro, também biográfico, de Margaret Salinger não deu origem a nenhum litígio judicial; mas consta que o seu pai nunca mais lhe falou. Pela sua retirada, que pode ser entendida como uma recusa violenta ou como um silêncio paradoxal (em ambos os casos, trata-se de uma quebra das regras e dos hábitos da socialidade literária), Salinger tornou-se um fantasma da literatura norte-americana do século XX, o "fantasma de Cornish", como foi chamado. Fantasma porque destituído de um corpo biográfico e porque paira, com a sua presença incorporal, sobre a vida literária, na sua dimensão mais fanérica. Por isso, é muitas vezes nomeado ao lado de dois escritores seus contemporâneos: Thomas Pynchon (E.U.A., 1937) e Maurice Blanchot (França, 1907-2003). Mas só aparentemente estes três escritores fazem parte da mesma categoria. Pynchon, ao contrário de Salinger, desapareceu antes de a obra existir e continuou a publicar. O seu desaparecimento é estratégico, foi pensado para que os seus livros resplandecessem sob a condição da ausência do seu autor. Por isso, não se livra da suspeita - publicamente explicitada por alguns dos seus pares - de trabalhar, com cálculo, para a mitificação e a glória literária. O caso de Salinger é diferente: retirou-se assustado com o sucesso que, em 1951, tinha obtido com À Espera no Centeio, com os efeitos que isso estava a ter na sua vida privada, e renunciou, a partir de 1965 (quando publicou o seu último conto na revista New Yorker), a qualquer forma de vida pública literária. Recusou todos os pedidos para adaptação ao cinema de algumas das suas "histórias" e nunca mais se deixou fotografar nem autorizou que fosse impressa qualquer fotografia sua nas capas e contracapas dos seus livros reeditados. Com Blanchot, Salinger tem pelo menos em comum a história de uma foto tirada por um paparazzo: em 1985, o escritor francês foi fotografado, à distância, a empurrrar, num parque de estacionamento, um carrinho de supermercado; em 1993, foi a vez de Salinger ser apanhado por um fotógrafo clandestino, num cenário idêntico. Como se vê, nenhum dos dois foi surpreendido a espreitar pela janela de uma torre de marfim. Mas a retirada e a invisibilidade de Blanchot são acompanhadas por uma obra onde se desenvolve uma concepção da literatura em que a escrita implica a morte do autor: a obra não é senão o fluxo nu e anónimo da linguagem, e a literatura só começa com a despossessão do Eu e nasce, em seu lugar, uma terceira pessoa, um neutro. Blanchot levou, pois, ao extremo, a questão do apagamento do autor, cujo império tinha sofrido um abalo enorme com Mallarmé. Flaubert também se situa legitimamente nessa mesma constelação. São suas, estas palavras: "O artista deve fazer crer à posteridade que não viveu." Os textos teóricos de Blanchot sobre a literatura como "direito à morte" são anteriores ao estruturalismo e à noção de "escrita" que ele faz emergir: uma noção de escrita que rompe com uma imagem da literatura, centrada no autor (na sua pessoa, na sua história, na anedota biográfica), que toda a cultura literária tradicional tinha construído. Um célebre texto de Roland Barthes, publicado em 1968, A Morte do Autor, seguido por um outro, de 1969, de Michel Foucault, O que É Um Autor?, fornecem uma requintada elaboração teórica do textualismo estruturalista e da sua atitude misobiográfica. Mas o desprezo pela biografia não começou, em França, com o estruturalismo. A curiosidade biográfica foi sempre muito mais forte na cultura anglo-saxónica, e foi aí que ela tendeu a alimentar produtivamente os estudos literários. Por isso é que Salinger é uma espécie muito mais rara no seu meio, sem antecedentes nem elaboração teórica legitimadora, do que Blanchot. Este, com a sua atitude radical e, em certos aspectos, inquietante, leva às últimas consequências uma mística da literatura completamente estranha ao autor de À Espera no Centeio. Blanchot passou à condição de invisível e entrou na sua própria morte para conceder todos os direitos à literatura. Salinger desapareceu para se salvar dos ditames sociais da literatura e dos seus mitos públicos."
Posted on: Thu, 26 Sep 2013 23:36:11 +0000

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