Os ossos do amor [Sérgio Freire] Para você, P. O silêncio é - TopicsExpress



          

Os ossos do amor [Sérgio Freire] Para você, P. O silêncio é o estado primeiro da linguagem. É por isso que dizemos “ficar em silêncio” e “quebrar o silêncio”. O silêncio é a linguagem em estado bruto. O silêncio é significativo. Por isso, uma maneira de sentir o tamanho do impacto de algo sobre uma pessoa é avaliar quão profundo é o silêncio após o fato. Assisti hoje a “Um olhar do paraíso” (“The lovely bones”). O filme conta a história de uma menina de catorze anos, Susie Salmon, que é assassinada e que de onde está vê a forma com que sua família e amigos seguem suas vidas após sua morte. Tudo isso enquanto ela própria precisa se acertar com o fato de ter morrido. O estilo é muito parecido com “Amor além da vida”, aquele em que Robin Williams vai buscar sua mulher no inferno por amor. Atuações magistrais de todos, com destaque ao papel coadjuvante de Susan Sarandon, como a avó da menina. A história me embargou várias vezes. Um filme é bom ou ruim dependendo da identificação com um personagem, com uma situação, com um fato ali contado. Fiquei sem ar ao ser lembrado mais de uma vez da vulnerabilidade de cristal que envolve nossos filhos no mundo. Descompassei a respiração ao ver na tela o quanto amamos nossos rebentos a ponto da suposição involuntária de que aquilo que vemos na tela possa ocorrer com os nossos causar náuseas reais. Apertei firme a mão de minha mulher, numa cumplicidade silenciosa e solidária, pela dor do quarto intacto deixado pelos pais após a morte da jovem e pela lágrima densa que cai dos olhos da mãe quando da notícia de sua morte. O filme é baseado no livro “The lovely bones”, de Alice Sebold. A boa ficção mexe com a realidade. Cada segundo com nossos filhos é precioso demais ante a possibilidade da presença de sua ausência eterna. A incerteza quanto à abominável inversão da ordem natural, em que pais deveriam ir antes dos filhos, sinaliza uma dor forte, imediatamente repugnada para fora de nossa mente, pois a cabeça não aceita pensar sobre isso. A morte de um filho equivale ao reverso de um parto que jamais queremos parir. Quando perdemos os pais, ficamos órfãos. Quando perdemos o cônjuge, ficamos viúvos. Mas quando perdemos filhos, ficamos em silêncio. Não há nome para isso. Só o silêncio. De tão não natural, essa dor é uma dor sem nome, uma dor cujo peso só é compreendido pela remissão ao estado bruto do sentido: o silêncio. E o filho nem precisar ter nascido para isso. Já é desde sempre nosso filho. O quarto vai ficar como está por um bom tempo, guardando o cheiro, a desordem e o jeito para um sempre com que ilusoriamente achamos que vamos saber lidar. Com uma fotografia linda, “Um olhar do paraíso” é cheio de metáforas visuais. A trilha sonora, não menos linda, complementa com metáforas sonoras. Destaque para a belíssima “Song to the siren”, do Mortal Coil. “Now my foolish boat is leaning, broken love lost on your rocks”, diz a letra, musicalizando as garrafas com barcos dentro, quebradas pelo pai que as fazia de hobby, naquele desespero que sempre vem depois da incredulidade das perdas irreparáveis. Ele guarda somente uma garrafa: aquela que sua filhinha assassinada ajudou a fazer, num daqueles momentos de cumplicidade afetiva que só quem tem filho reconhece. Nossas memórias afetivas são coladas por objetos que nos ligam. Seja um desenho, seja um perfume, seja um barco em garrafa. Ou um sapatinho de bebê jamais usado. Existem mistérios incompreensíveis na vida humana. A morte, única certeza, envolve vários deles. O que vem depois? Céu? Inferno? Nada? A despeito das crenças que cada um de nós sustenta, a realidade exige a urgência da presença. O abraçar, o beijar, o cheirar, o tocar. Fazer isso com quem amamos é estocar amor para a indesejada falta. Aprender a dizer “eu te amo” para quem aparece no filme de nossa vida é uma das lições mais sublimes do ser humano. Saber construir o momento, aceitando a temporalidade divina, sempre incompreensível para a finitude humana, é um aprendizado doloroso, árduo, eloquente como o silêncio. Um silêncio lancinante, que dá fisgadas na alma. O nome do filme em inglês, “The lovely bones”, vem desta passagem, que traduzo aqui livremente: “Foram esses os ossos do amor que cresceram em torno de minha ausência: as conexões que aconteceram após eu ter ido, conexões por vezes tênues, por vezes bastante custosas, mas quase sempre magníficas. E eu passei a ver as coisas de um jeito que me permitiram entender o mundo sem que eu estivesse nele. Os eventos que minha morte trouxe foram apenas os ossos de um corpo que se completará em algum tempo não sabido no futuro. O preço que paguei para ver esse corpo de amor maravilhoso e milagroso foi a minha vida”. Porque, como diz o poeta, o amor da gente é como um grão: às vezes tem que morrer para germinar. Germinar o quê, quando e como são as incógnitas dessa equação, complexa demais para a matemática básica da alma humana. Quebrei um longo e profundo silêncio para escrever este texto. O silêncio que esse filme exigiu de mim para que eu pudesse significá-lo no estado bruto da linguagem. O silêncio que, triste coincidência, as tristes notícias desse dia me impuseram. Sugiro que você vá silenciar também antes que o filme saia de cartaz. Saiba que o amor começa antes e não termina nunca. Quem ama ama junto, quem ama sofre junto. Nos barulhos da vida, nos silêncios da vida. O colo nunca se esvai. Fica firme sustentado pelos ossos do amor. ⌘
Posted on: Mon, 23 Sep 2013 03:01:18 +0000

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