PUDICA E SEM-VERGONHA (João Batista Gomes) Depois de - TopicsExpress



          

PUDICA E SEM-VERGONHA (João Batista Gomes) Depois de certificar-se de que está sozinho com a namorada, ele propõe: — Já que seus pais saíram... Estamos só nós dois em casa... Posso mostrar uma coisa pra você? — Que coisa!? Olhe lá! Repare bem na minha idade. Sou uma moça pudica. — Uma moça o quê? — Pu-di-ca! — Aqui, no bairro, você tem muitas famas. Mas essa de pudica... Nunca ouvi falar. Não seria putica? — Quem tem fama de putica é sua irmã. Pudica significa casta, recatada, ouviu? É a mesma coisa que tímida, vergonhosa... Mas sim: você ia mostrar mesmo o quê? — É uma coisa que eu só ia mostrar depois do casamento... — Então, mostre logo. Daqui a pouco, minha mãe vai chegar. — Mas tenho vergonha... Acho que eu é que sou pudi... pudico. Vem cá, existe pra homem? — Claro que não! Para homem existe sem-vergonha, com hífen e tudo. Pare de me enrolar: mostre logo! Sou sua noiva... — Você jura que não vai ficar zangada? — Eu juro. Juro que não vou. Agora, mostre, que você acendeu minha... minha curiosidade. — Tenho medo de você não gostar... — Não gostar como? Você acha que vou ficar assustada, é isso? Pois fique sabendo que nada me assusta. Além de pudica, sou uma mulher denodada... — Mulher que deu o quê? — Que não deu nada. Está ficando doido? Parece que tem minhoca na cabeça! — Minhoca na cabeça não. Agora, minhoca com cabeça... — Eu falei denodada. Vem de denodo. Significa corajosa, atrevida, valente... Vai mostrar ou não vai? — Só se você fechar os olhos. — Pronto. Fechei. Só vou abrir quando você mandar. — Espere aí, que tou tirando... Não olhe ainda não... Pronto: tirei. Pode olhar. — O que é isso, criatura!? Está querendo-me enganar, é? — Isto é um poema, Lilica. Você pensava que fosse o quê? — Não acredito! Tanto suspense, e você vem-me mostrar um poema! Arigó, Arigó! Você não existe! — Não me chame de Arigó! Você mesma disse que esse apelido é pejorativo. Não consigo entender você. Vive me incentivando a ler e a escrever... Fiz estes versos pensando em você... — Está bem, meu amor. Está bem. Quero ouvir o poema. Você pode ler para mim? Com voz mudada, querendo impressionar, ele declama: Sonhei que você morria e com camisola azul para o céu você subia montada num urubu. E eu, no raiar do dia, ia chorando atrás de tu. — Credo, Arigó! Isso não é para rir: é para chorar. Ainda mais com esse “ia chorando atrás de tu”... — O tu, Lilica, é pra rimar com urubu. Entendeu? — A rima eu entendi. Mas dizer “atrás de tu” é errado. Nesse caso, é melhor não rimar... — Não vejo problema em fazer tu rimar com urubu. Já li sobre isso: chama-se “licença poética”. — Você não leu nada disso. Eu é que expliquei a você sobre “licença poética”: liberdade que o poeta acha que tem para transgredir as normas da gramática. — Pois então. Eu quero ter essa liberdade. Não posso? — Mas logo no primeiro poema? Olhe, Arigó, você demonstrou criatividade para inventar versos. E a criatividade está acima de tudo... — Por que a frase “chorando atrás de tu” é errada? — Porque o pronome tu é reto, ou seja, tem de ser empregado como sujeito da ação verbal. No poema, você deveria escrever assim: “eu ia chorando atrás de você”. — Mas ficaria sem graça. Não rimaria... A não ser que eu rimasse urubu com... — Aí você não poderia ler para mim: sou uma moça pudica.
Posted on: Sun, 06 Oct 2013 13:02:30 +0000

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