Para pior já basta assim por Daniel Oliveira "A Síria é uma - TopicsExpress



          

Para pior já basta assim por Daniel Oliveira "A Síria é uma república monárquica. Ao pai Hafez al-Assad sucedeu o filho, Bashar al-Assad. Os dois têm o carisma de uma anémona. Mas, mesmo assim, não hesitam em levar o culto da personalidade até ao enjoo. As fotografias de pai e filho são omnipresentes. Todos os cafés, lojas, restaurantes e bares, queiram ou não queiram - e duvido muito que algum queira -, são obrigados a ostentar as carinhas dos dois senhores. Nas fotos de propaganda do regime ao pai e ao filho junta-se o Espírito Santo. O filho predileto de Hafez, Basil al-Assad, era o candidato ao trono, mas morreu prematuramente num acidente de viação. Ficou o filho Bashar, o mais ocidentalizado, que chegou a dar sinais de abertura nunca concretizados. Basil surge como herói, montado em cavalos. Ao que parece praticava hipismo e conseguiu um segundo prémio para a Síria. Sendo da dinastia Assad, isso chega para ser um novo Saladino. As imagens estilizadas do defunto estão estampadas nos carros. A Síria é, como praticamente todos os regimes árabes, uma ditadura repressiva. Esta calhou ter estado do lado de lá do Muro - ou seja, do lado dos derrotados. Mas falar de socialismo aqui seria no mínimo exagerado. A intervenção do Estado na economia é maior do que nos países vizinhos. A repressão política também. A religiosa, pelo contrário, é mais baixa. Trata-se de uma ditadura laica que da mesma forma que prende e mata os opositores políticos, mantém controlados os movimentos de qualquer tipo de fundamentalismo religioso que nunca quereriam nada com a dinastia Assad. A ligação ao Irão é táctica, não religiosa, já que a esmagadora maioria da população é sunita (mesmo que o regime seja dominado pelos alauitas)." "Se em Damasco a diversidade religiosa se sente, em Alepo ela é muito presente. Alepo diz-se o mais antigo local habitado do Mundo e a sua história é feita de conquistas, reconquistas, ocupações e guerras. Mas também de convivência. O hotel onde fiquei é no bairro arménio, maioritariamente cristão. Um bairro semelhante existe na cidade velha de Damasco. No domingo, fui assistir à missa dos maronitas. Podia ser em qualquer cidade europeia, mas eram árabes que ali estavam. Nos bairros cristãos de Damasco e Alepo os símbolos religiosos (crucifixos e imagens de Cristo) são tão visíveis como os símbolos islâmicos no resto da cidade. Nos anos sessenta houve tensões com os cristãos (arménios, ortodoxos gregos, maronitas e católicos latinos) mas os problemas não são comuns e muito menos visíveis para um visitante. Há ainda drusos, xiitas e alauitas, para além da maioria sunita. Com mais uma guerra a decorrer no Líbano, impressiona-me que cheguem, aos milhares, a Alepo e Damasco, refugiados libaneses de todos os credos: maronitas, drusos, xiitas, sunitas. Como se o Líbano fosse a reprodução extremada do mosaico sírio e a Síria, apesar da ditadura e da repressão (ou até por causa delas), a sua versão pacifica." Reutilizo aqui duas passagens do pequeno diário que escrevi quando, há sete anos, estive na Síria. Não eram notas políticas. Apenas apontamentos de duas das coisas que mais notei na vida quotidiana de um dos países que mais me impressionou, pela sua beleza, até hoje: a ditadura, uma das mais repressivas do mundo árabe, e a inabitual convivência religiosa. A que poderia acrescentar a convivência étnica, que junta curdos, turcos, arménios e árabes. Duas impressões que demonstram que as coisas são, por vezes, mais complicadas do que parecem. A pior das ditaduras pode ser, do ponto de vista religioso e étnico, um regime tolerante. Juntem-se a estes dois dados o papel estratégico da Síria na região. Todos os conflitos no Líbano são incompreensíveis sem perceber o que se passa no vizinho sírio. E qualquer conflito no Líbano tem repercussões imediatas em Israel e no seu conflito com a Palestina. Damasco tem um diferendo territorial com Telavive, dá apoio à resistência palestiniana e tem, no seu território, campos de refugiados palestinianos (bastante mais dignos, diga-se em abono da verdade, dos que existem no Líbano ou na Jordânia). Tem uma aliança tática com o Irão. Tem muitos refugiados iraquianos e relações próximas com o outro lado da fronteira. Tem uma minoria curda e está, mesmo que de forma ligeira, ligada aos conflitos do Curdistão com Bagdad e Ancara. O regime é dominada por alauitas (que se consideram xiitas), quando a maioria da população é sunita. Ou seja, a Síria é um dos elementos mais sensíveis na filigrana que é o Médio Oriente. Por ali passam, de forma intensa ou moderada, quase todos os conflitos da região: curdos contra turcos, iraquianos e sírios, palestinianos contra israelitas, iranianos contra o Ocidente, todos contra todos no Líbano, sunitas contra xiitas, muçulmanos contra cristãos. A queda do regime de Assad pode parecer uma boa notícia. Mas também pode trazer muitos amargos de boca. Entre os rebeldes estão muitos fundamentalistas islâmicos que, numa sociedade habituada a viver numa razoável paz religiosa, poderiam abrir uma panela de pressão que nunca mais se fechará. A convivência que encontrei em Alepo e Damasco será, estou seguro, uma impossibilidade com a chegada de alguns dos rebeldes ao poder. Que Assad é um torcionário, não tenho qualquer dúvida. Que os que o lhe querem suceder não sejam ainda piores é coisa que não apostaria. Ao que se junta destabilização que a mudança de regime pode trazer a todo o Médio Oriente. Mas nem é necessário que haja uma revolução na Síria. Basta a intervenção ocidental naquele território, com o sempre indesejado envolvimento americano com a participação das duas principais potências ocidentais com interesses económicos e estratégicos na região - França e Reino Unido - para que a instabilidade se espalhe por todo o Médio Oriente. Não há, do ponto de vista da paz na região, qualquer bom argumento para uma intervenção militar externa. Não há nenhum argumento político para substituir uma ditadura por aquilo que dificilmente virá a ser uma democracia. Sobra, então, o argumento moral para esta intervenção. Um argumento difícil de sustentar. Poderia enumerar dezenas de guerras civis recentes e mais mortíferas do que a da Síria. A questão são as armas químicas? Mas os mortos do Darfur ou na Ruanda são diferentes por ter sido usado armamento convencional? Centenas de milhar de vítimas valem menos se forem mortas à catanada? E não sabemos que também os rebeldes sírios já usaram este tipo de armamento? Não sei se os interesses económicos na região, para os quais a Síria tem uma posição geográfica estratégia, explica esta vontade de intervir. Apostaria mais em razões internas norte-americanas e francesas. A paz na região é que não é de certeza. Resumindo: nenhum argumento estratégico, político e moral sério pode ser usado para esta intervenção. Qual é a minha alternativa? A mais difícil de escrever, perante mais de cem mil mortos e dois milhões de refugiados: terão mesmo de ser os sírios a resolver a encruzilhada em que se encontram. A nós, resta-nos esperar que ali surja um poder democrático e laico. Depois desta guerra, não será provável. Mas quanto teve a Europa de penar para chegar às suas imperfeitas democracias? Não terão os árabes o direito de encontrar o seu próprio caminho? Não aprenderam os EUA que, quase sempre que se meteram no Médio Oriente, deixaram tudo ainda pior do que encontraram?
Posted on: Wed, 04 Sep 2013 11:24:38 +0000

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