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Pra quem gosta de textos enigmáticos e que dão um nó no cérebro /Semeador de Idéias Indagaçoes Durante a caminhada que fiz com ele, vi‑o debater com intelec‑ tuais, políticos e grandes executivos e silenciá‑los; agora, por mais inacreditável que parecesse, resolveu chamar para o debate Aquele diante de quem grande parte da humanidade se ajoelha: deus. Com bramidos dramáticos, fez uma bateria de indagações: – Quem és Tu, que Te escondes atrás do parêntesis do tempo? Quem és Tu, que desdenhas da nossa intelectualidade e sorris das nos‑ sas loucuras? Tens Tu prazer em tornar os pensadores, crianças, os filósofos, tímidos e os religiosos inseguros para falar de coisas que não entendem? És Tu o Autor da vida? Criador? Todo‑Poderoso? Se Tu és Todo‑Poderoso, por que não discutes comigo sobre as minhas inquie‑ tações? Não admites que os diminutos debatam Contigo? Proponho uma mesa‑redonda entre Ti, colossal, e eu, frágil! Nela depositarei as minhas lágrimas e indecifráveis dúvidas, bem como as perguntas que os homens não têm coragem para formular. Perturbei‑me com as suas indagações. «Não é possível», pensei. Em vez de se prostrar diante de Deus, chamou‑O para um debate. E ninguém previa o que seria discutido. Depois desse episódio, ele dei‑ xou de ser um vendedor de sonhos e passou a ser um ousado semeador de ideias. E nós, depois de presenciarmos o seu «debate», nunca mais seríamos os mesmos. Não fomos nós apenas, que o seguíamos, a ficar perplexos; aconteceu também com uma multidão que se aglomerou ao redor dele, emudecida. Judeus, muçulmanos, cristãos, budistas, agnósticos, ateus, havia todas as correntes de pensamento naquela praça movimentada. Ele continuou com as suas perguntas: – Por que Te calas, Todo‑Poderoso? Porque sou impuro? Por que reténs as Tuas palavras? Porque Tu és uma ilusão do cérebro humano ou porque sou mortal, torpe, prepotente? Se Tu és o Autor da vida, tenho direito a uma audiência. Alguns religiosos radicais, ao ouvirem o seu protesto, rangeram os dentes e consideraram‑no o mais insolente dos hereges. Dois deles, num ímpeto de fúria, arrancaram pedras da calçada e atiraram‑lhas para cima sem piedade. Uma delas, que mal cabia na palma da mão, atingiu‑o no ombro direito, e a outra, mais pequena, na face esquerda, traumatizando‑a e abrindo uma ferida de dois centímetros. Temi que fosse linchado em praça pública. Teve uma vertigem. Mal se aguen‑ tando, ele mesmo conteve o tumulto com as mãos, e fez um sinal aos seus discípulos dizendo: – Não intervenham! Não importa se morro. Se me calar, já estarei morto. A sua dor psíquica era tão ampla que minimizou a dor física. Alguns pensavam que fosse um céptico ateu a expurgar a sua revolta; outros, um filósofo que resolvera espantar as perturbações da sua mente. Havia espectadores que pensavam que fosse um psicótico a delirar. Mas ele era um ser humano com sede insaciável de explica‑ ções. A cena, de qualquer forma, era chocante. Era um homem culto e ecléctico, passeava pela física e pela filosofia com habilidade. A sua mente era um poço insaciável de perguntas. Tomou fôlego para continuar o seu intrigante debate: – És Tu o insondável, o Alfa e o Ómega? A Tua história é um eterno recomeço, em que princípio e fim se entrelaçam num círculo atemporal e interminável? Se não tens princípio nem fim de existên‑ cia, Tu transcendes o espaço‑tempo, e, se transcendes, onde estavas o semeador de ideias_CS4***.indd 25 28/02/11 18:0126 Augusto Cury Tu na primeira fagulha da existência quando o universo se formou há 14 biliões de anos na grande explosão, no Big Bang? Que pensamentos permeavam o Teu psiquismo? Deu um nó na nossa mente. E em seguida bradou: –Tu és a causa fundamental ou um delírio do psiquismo humano? Mas não podes ser um delírio, pois ex nihilo nihil fit (do nada, nada se faz). O nada é eternamente estéril. O nada nunca poderia ter desper‑ tado do pesadelo da inexistência para o sonho da existência. Nem a teoria do Big Bang, ou a do Universo Oscilante, ou a do Universo Está‑ tico se desenvencilharam de uma causa fundamental. Tu tens de ser a Causa das causas. Se Tu não tens origens, se sempre foste, se és a Causa fundamental, eu tenho o direito de saber as origens da existência, por‑ que sou parte dela. Que instrumentos usaste Tu para brincar com a física, com as leis da termodinâmica, com as forças gravitacional e nuclear? Os planetas e as estrelas, bem como a vida, são quase impro‑ babilidades, e Tu sabe‑lo muito bem. Se a taxa de expansão do uni‑ verso um segundo após o Big Bang tivesse ocorrido a uma velocidade mais baixa do que um em cem mil triliões, a força gravitacional teria colapsado o universo, gerando uma grande explosão. E, se se expan‑ disse a uma velocidade infinitesimalmente maior do que se expandiu, não se formariam estrelas e planetas, e uma vez mais não haveria vida. Pensaste nisso ou o improvável ocorreu da loucura do acaso? Ao ouvir as suas interrogações ditas para o ar, fiquei intrigado com a sua cultura. Nunca tinha pensado que a possibilidade de existi‑ rem planetas e estrelas, do ponto de vista estatístico, era absurdamente pequena. Nem mesmo que a existência da vida era quimicamente tão improvável; que a probabilidade seria mais baixa do que a de um atirador localizado em Nova Iorque acertar numa mosca em Paris centenas de vezes, de seguida. Talvez por isso o Semeador de Ideias fosse um homem que exaltava a vida como um show espectacular. Mas, nesse momento, estava desapontado com o Autor da existência. Por isso, disse: – Não Te cales, peço‑Te. Se fores o Artesão superinteligente da existência, tens uma personalidade, como eu tenho. E, se tens, por que não mostras a Tua identidade e respondes às minhas interrogações? Nós, humanos, amamos o reconhecimento, ainda que não o confesse‑ mos, mas por que Te escondes atrás da cortina do espaço? Que perso‑ nalidade é essa? Por que Te silencias nos bastidores do teatro do tempo e não alardeias os Teus feitos no palco? Que intelecto é esse? Por que preferes que os seres humanos construam milhares de religiões para que Te tacteiem no escuro? Eu, pequeno, frágil, um átomo errante, mas pensante, definitivamente não Te entendo. A sua sequência de perguntas provocava o nosso cérebro. Não tínhamos tempo para respirar e reflectir. Após uma breve pausa, come‑ çou a entrar no centro das suas dúvidas. Mas, até àquele momento, não sabíamos aonde queria chegar. – Quero entender pelo menos as camadas mais superficiais da Tua mente, «ó, Desconhecido»! O que fazias em todos os infinitos estágios que antecederam os 14 biliões de anos da existência do uni‑ verso? Que pensamentos e imaginações se encenavam no Teu intelecto no tempo antes do tempo? Como vivias? O que Te animava? O que Te motivava? O que movimentava a Tua emoção se estavas só, mergu‑ lhado nas tramas insondáveis do vácuo, onde o tudo e o nada eram a mesma coisa? Que sentido existencial irrigava a Tua emoção, se não ouvias nem falavas com nenhum ser, a não ser Contigo mesmo? O que Te distraía, se não havia um átomo para observar ou uma imagem para contemplar? Quem suportaria essa solidão, por mais alegre e emocionalmente forte que fosse? Ficámos todos assombrados com as suas indagações. Teólogos, judeus, muçulmanos, cristãos e outros que estavam presentes passaram as mãos sobre a testa tentando conter o suor. Estavam perplexos, porque aquelas perguntas não tinham feito parte do cardápio dos seus estudos. Entretanto, alguns religiosos fundamentalistas voltaram a enfurecer‑ ‑se com tais argumentos. Para eles, um homem mentalmente saudá‑ vel não deveria apresentá‑los. Um deles aproximou‑se e esbofeteou‑o sem piedade na face esquerda, produzindo um estalido agudo. Outro esmurrou‑o súbita e violentamente na boca, provocando‑lhe uma hemorragia no lábio inferior, dizendo‑lhe: o semeador de ideias_CS4***.indd 27 28/02/11 18:0128 Augusto Cury – Louco! Insano! Quem pensas que és? O Semeador de Ideias caiu. Começou a sentir uma vertigem mais intensa, quase desmaiou. Os agressores foram contidos rapidamente. Mas ele fez sinal para que não os agredissem. Tentámos ajudá‑lo a levantar‑se e a retirar‑se daquele Coliseu moderno, mas, por insano que fosse, insistiu em ficar. Fitou o seu último agressor e disse‑lhe com delicadeza: – Sou um homem saturado de erros, mas que tenta entender Aquele em quem tu crês. «Onde foi ele buscar essas ideias?», pensei eu. «Por que as expõe?» Conheci o pensamento de Diderot, Marx, Nietzsche, Freud, Sartre e tantos outros ateus que queriam banir Deus da mente humana e da sociedade. Conheci também o pensamento de Santo Agostinho, Tomás de Aquino, Espinosa, Descartes e tantos outros que de alguma forma procuraram Deus nas entrelinhas da existência e na arena do conhecimento. Mas nunca tinha tido contacto com as indagações que acabara de ouvir. Estávamos tão atónitos com o Semeador de Ideias que os roncos dos motores em volta da praça se tornaram impercep‑ tíveis. O círculo aumentava em torno daquele homem cambaleante. Estava a morrer, mas precisava de continuar o debate com o Autor da existência. Dava a impressão de que o tempo tinha parado. Não entendíamos bem aonde queria chegar. Mas, pouco a pouco, as nuvens dissiparam‑se da nossa mente. Depois de fitar os seus agressores, pen‑ sei que não tivesse mais energia cerebral para continuar o seu debate. Enganei‑me. Ainda que Deus se mantivesse calado ou respondesse de forma inaudível, o debate aqueceu. O homem que eu seguia retomou o assunto da solidão e disparou para o alto: – Eu, humano, contraído na minha emoção e limitado pelo meu intelecto, não suportaria nem uma pequeníssima fracção da solidão que Tu viveste, Eterno. A solidão branda inspira a minha inteligên‑ cia, mas a solidão plena despedaça a minha mente, aborta o meu prazer de viver. Até os psicóticos criam personagens nos seus delírios para não serem esmagados pela solidão. – Olhou rapidamente para todos os que rangiam os dentes contra ele e disparou estas perguntas: – Será que os religiosos que Te exaltam consideram que Tu não tens sentimentos? Negarão eles que Tu tenhas emoção e necessidades? Não projecta o escultor os seus secretos sentimentos na forma das suas esculturas, nem o artista plástico nas nuances dos seus qua‑ dros? Bem sabes que o artista produz as suas obras por necessidades intraduzíveis! Nesse momento, fez uma pausa para respirar. Tinha perdido tudo o que amava, só lhe sobrara o calabouço da culpa. Pouco a pouco, nós, os seus amigos íntimos, fomos entendendo que queria encontrar uma fresta de luz para sair daquele cárcere. Mas como? Respostas filosó‑ ficas, religiosas, biológicas e psicológicas simplistas não aquietavam o seu complexo e dilacerado intelecto. Conhecia a teoria antropológica de Edward Taylor, e os seus erros, e sabia que ela fundamentara o bani‑ mento de Deus da sociedade por Vladimir Ilitch Lenine e por outros líderes socialistas. Sentia‑se também completamente insatisfeito com o debate dos que advogavam o design inteligente e com os ateus natu‑ ralistas. Tinha sede de respostas mais profundas. Por isso realizava uma mesa‑redonda sobre as suas gritantes inquietações, ainda que só se ouvisse a sua voz. – Responde‑me, Eterno: ainda que sejas o Pai da tranquilidade, a ausência do espaço‑tempo foi para Ti um «quarto escuro» inexpri‑ mível que Te produziu uma sede borbulhante de relacionamentos? Eu sou intelectualmente débil, mas permite‑me perguntar‑Te: foi a eternidade passada uma prisão que provocou a abertura das janelas da Tua mente como Todo‑Poderoso gerando‑Te uma explosão criativa, transformando‑Te no Autor da existência desse insondável universo? As pessoas que o ouviam entreolhavam‑se, tentando assimilar a dimensão da última pergunta. Mas não dava tempo. Toda a sequência de perguntas tinha uma lógica e preparava o terreno para ele abordar finalmente aquilo que tocava as entranhas do seu ser: – O universo é um mero caldeirão de fenómenos físicos alea‑ tórios ou existe para distrair a Tua emoção? A humanidade é fruto do acaso da selecção natural ou existe para encantar a Tua emoção e resolver a Tua solidão? Ao ouvir essas palavras, a minha mente entrou num remoinho reflexivo. Sabia que o Semeador de Ideias tinha sido um dos mais ardentes ateus da história. Mas mudara o seu pensamento. No pas‑ sado, ele pensava que a procura de Deus era fruto de um cérebro frágil e tímido, mas implodiu o seu ateísmo depois de estudar mais a fundo a física, a psicologia e a filosofia do caos. Passou a entender que a busca de Deus por todos os povos em todas as eras, independentemente de uma religião, era um acto inteligentíssimo de um cérebro apaixonado pela existência, que procurava em desespero transcender o caos da inexistência na solidão de um túmulo. Com o tempo, compreendeu que tanto o ateísmo radical como a religiosidade fundamentalista são sustentados por crenças em ver‑ dades inquestionáveis, gerando comportamentos exclusivistas. Duas semanas antes da notícia do acto terrorista, falou‑nos das suas con‑ clusões sobre o caos imposto pela morte. Comentou que o corpo humano tem cerca de três mil biliões de células, e nenhuma delas estava geneticamente programada para a solidão da inexistência, preparada para morrer. A morte era inevitá‑ vel, mas não era natural para o código genético. Sobreviver era a meta última desse código. Por isso, quando uma pessoa entrava numa situa‑ ção qualquer de risco, biliões de neurónios protestavam, produzindo milhares de reacções para a fuga ou para o confronto com o risco. Até o acto suicida gerava um protesto cerebral solene em favor da vida, capitaneado pela taquicardia e pelo aumento da frequência respirató‑ ria. Para ele, mesmo o cancro representava a sede pela continuidade da existência biológica, embora promovida por genes egocêntricos, e ainda que trouxesse graves consequências. A célula cancerígena aban‑ donava a unidade corporal e seguia a carreira a solo de ser jovem para sempre, multiplicando‑se incontrolável e egoisticamente, gerando uma competição predatória por nutrientes com outras células. O Semeador de Ideias devorava livros todas as noites. A sua mente era um caldeirão de informações das ciências naturais e huma‑ nas. O cardápio do conhecimento, para ele, não era compartimentado ou separado. Ao encerrar o seu pensamento sobre a filosofia do caos, citou também as reacções dos pensadores que o atravessaram e des‑ tacou Charles Darwin. Momentos antes de morrer, no meio de náu‑ seas e vómitos, Darwin clamava: «Meu Deus, meu Deus!» Disse‑nos que o clamor de Darwin não era o reflexo de um cérebro frágil, mas de um cérebro que lutava com bravura pelo alívio e pela continuidade da existência, ainda que considerasse utopicamente a morte um pro‑ cesso natural. Comentou que Darwin era um agnóstico, mas que tanto agnós‑ ticos como místicos, tanto ateus como não ateus, todos fogem inexo‑ ravelmente da mais penetrante solidão, a solidão da inexistência, a solidão de «não ser». A perda da consciência de si mesmo resultante da desorganização do córtex cerebral quando se morre e a conse‑ quente perda irreversível de biliões de informações que financiam a identidade da personalidade geram o caos absoluto, unem o ser com o nada. Na ocasião, para nosso espanto, disse‑nos ainda que quem reflec‑ tisse algumas horas sobre esse caos jamais seria o mesmo. Entenderia que a grande questão não era se Deus existe ou não, nem quem ven‑ ceria o debate, se religiosos ou ateus. A grande questão era que Deus precisava de existir, caso contrário, ateus e religiosos seriam ambos destroçados no caos da inexistência, extinguir‑se‑ia a liberdade de ser e a de pensar. Teria de haver um Deus com uma capacidade muito maior do que qualquer imaginação religiosa para resgatar as informa‑ ções do córtex cerebral que se perderam com a morte. Caso contrário, seríamos mera poeira cósmica. Alguns de nós estariam nas páginas da história para nos fazer pensar que fomos algo no passado e disfarçar o angustiante facto de que seremos nada, simplesmente nada, no futuro. Ao recordar essas palavras, entendi por fim que não era a soli‑ dão social ou a solidão do auto‑abandono que perturbava a mente do Semeador de Ideias e estimulava o seu debate com Deus, mas a solidão da inexistência. Como era um homem que pensava muitíssimo, ten‑ tava sobreviver a essa solidão, à morte como fenómeno silenciador da vida, para ter esperança de que os seus filhos não tivessem morrido para sempre. Quase esgotado, continuou a sua cálida inquirição. Desta vez deixou embasbacados até os religiosos que odiaram os primeiros «embates». Entrou no campo que eles conheciam, mas não usou a espiritualidade, e sim os alicerces da psicologia. Amarrou as ideias que proferiu num feixe e deu‑lhes um choque intelectual. Constrangidos, engoliram a voz. – Se conheces, ó Altíssimo, a minha mente, Tu sabes das inda‑ gações que me abalam. Diz‑me: por que razão no primeiro manda‑ mento suplicas aos seres humanos que Te amem acima de todas as coisas, de toda a sua alma, sua força e seu entendimento? Tal súplica não é estranha às teses sociais e políticas? Não está ela na contra‑ ‑mão de todos os grandes líderes da história? Todos os reis exigiram a servidão. Todos os ditadores determinaram a obediência. Mesmo os políticos mais democráticos sonharam com a bajulação. Mas Tu, dife‑ rente deles, reivindicas o amor. Que necessidade psíquica é essa? Por que Te rebaixas a esse ponto de suplicar que Te amem? Não esconde subliminarmente esse mandamento a Tua eterna solidão, forjada nas entranhas do Teu isolamento antes de existir o espaço‑tempo, que anseia por ser saciada? A Tua necessidade gritante de amor mostra que, embora eu e Tu sejamos muitíssimo diferentes em poder, somos semelhantes em carências. Nesse momento, parece que todos os presentes, inclusive os que o agrediram, foram conduzidos a um jardim por aquelas perguntas. O Semeador de Ideias desejou interromper a sua fala, mas não con‑ seguiu. Não queria concluir a sua tese, uma vez que ela defenderia Deus e o faria perdedor. Ela revelaria por que razão o Todo‑Poderoso não agia na humanidade como ele desejava. As suas próprias palavras abalaram‑no. –A súplica pelo amor dessa débil humanidade expressa uma pro‑ cura por algo que o Teu poder não Te pode propiciar. O Teu poder pode fazer muito mais do que a minha imaginação consegue pensar, mas não pode fabricar seres que Te amem. Bem sei que o amor não pode ser comprado, negociado ou transferido. O amor não cresce no terreno da coacção, da força e do controlo. Ele exige os terrenos férteis da liberdade e espontaneidade para florescer. Só se ama quando se o semeador de ideias_CS4***.indd 32 28/02/11 18:0133 O Semeador de Ideias é livre! Por isso, Eterno, concluo que o Teu Poder se transformou no Teu grande problema. Se o usasses para resolver todas as dificulda‑ des da humanidade, destruirias a nossa liberdade e eximir‑nos‑ias da nossa responsabilidade. Se atendesses a todos os desejos humanos na velocidade que queremos, em pouco tempo nós seríamos os Teus deu‑ ses e Tu serias para nós um servo. Quem Te amaria? Terias aduladores, interesseiros, mercantilistas, manipuladores, perdulários, pródigos, e não filhos que Te amariam pelo que Tu és. Em seguida colocou as duas mãos no peito, fez uma pausa e, per‑ cebendo que tinha sido injusto com o Autor da existência, falou com brandura: – Eu sei o que é ter aduladores! Hoje sou um indigente, um mise‑ rável que anda pelas ruas tentando entender o significado da existên‑ cia. Mas já tive mais poder que reis e políticos. Fui aplaudido como raras celebridades, cortejado como poucos poderosos. Fileiras de pessoas gravitavam na órbita do que eu tinha. Tolo, pensei que elas me amavam. Ninguém passou no teste do stress emocional. Quando perdi tudo, perdi todos. – Então chorou e acrescentou: – É melhor ser atirado aos leões do que aos bajuladores: os leões matam‑nos rapida‑ mente; os bajuladores, aos poucos. Fui torpedeado com essa ideia, porque, quando tive uma crise depressiva grave, os meus amigos da universidade também desapa‑ receram. Não restou um intelectual ao meu lado. Depois de perceber que estava errado, o homem que seguíamos dissecou publicamente a sua miserabilidade e reconheceu os seus erros. Usou o seu poder para comprar o que não está à venda no mercado. – Como resolver a minha solidão? A saudade dos meus filhos despedaça‑me. Beijos, abraços, afagos, entregas, diálogos, atitudes tão simples mas insubstituíveis. Viajei pelo mundo, percorri todos os continentes como um conquistador para descobrir que aquilo de que eu mais precisava já possuía. E não o valorizei. – Nesse momento, ao lembrar‑se dos seus queridos filhos, colocou as mãos sobre a cabeça. Já não estava magoado com o Autor da existência, mas clamou, inconformado: – Por que Te calas quando as crianças morrem soterradas em terra‑ motos? Por que Te silencias quando a fome comprime os seus magrís‑ simos corpos? Por que não ages quando nos acidentes os seus pul‑ mões se asfixiam e o fôlego de vida se estanca? Ou ages e não sabemos? Ou acolhe‑las no Teu peito, no seio da eternidade, quando os seus pequenos corações deixam de pulsar e não nos contas? Se amas, sofres; se sofres, por que optas pelo silêncio? O Teu silêncio sustentou durante anos o meu céptico ateísmo! Choras nas próprias lágrimas das crianças? Tremulas na angústia inexprimível dos pais que perderam seus filhos? Eu convido‑Te a penetrar no turbilhão da minha culpa, nas entranhas da minha crise depressiva e no cárcere das minhas loucuras. Estou só, pro‑ fundamente só. Tento esquecer‑Te, mas ocupas a pauta da minha mente. Pela primeira vez olhou ao redor e viu a plateia com olhos lacri‑ mejantes. E de súbito lembrou‑se de Friedrich Nietzsche, o filósofo alemão que muitos consideravam um dos grandes ateus da história, mas que surpreendentemente era um anti‑religioso, e não um ateu. Recitou para os céus o poema de Nietzsche, Ao Deus Desconhecido, como se exalasse a sua própria mente. Antes de prosseguir no meu caminho e lançar o meu olhar para a frente uma vez mais, elevo, só, as minhas mãos a Ti na direcção de quem fujo. A Ti, das profundezas do meu coração, tenho dedicado altares festivos para que, em cada momento, a Tua voz me pudesse chamar. Sobre esses altares estão gravadas em fogo essas palavras: «Ao Deus desconhecido.» Teu, sou eu, embora até o presente me tenha associado aos sacrilégios. Teu, sou eu, não obstante os laços que me puxam para o abismo. Mesmo querendo fugir, sinto -me forçado a servir -Te. Eu quero conhecer -Te, desconhecido. Tu, que me penetras a alma e, qual turbilhão, invades a minha vida. Tu, ó incompreensível, mas meu semelhante, eu quero Conhecer -Te. Depois de recitar o poema, fez uma pausa prolongada e suspi‑ rou fundo. Aumentou o tom de voz e tocou em assuntos «proibidos». Entrou nas fronteiras da psicologia e da sociologia. Aos brados, como‑ veu quem o escutava. – Sabes o que é perder um filho? Choraste como eu chorei? Desesperaste como eu me desesperei? O que representa o carpinteiro de Nazaré para Ti? Apenas um filho da humanidade? Era o Teu filho quem tremulava numa trave de madeira? Se era, foi a primeira vez na história que um pai viu um filho sangrar e não o resgatou, embora tivesse todo o poder para fazê‑lo. Não tive essa oportunidade. Por que não a aproveitou? No limite das suas forças, o homem Jesus abriu os seus debilitados pulmões e clamou: «Eli, Eli, lema sabactani?» («Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?») Ele não Te pediu vin‑ gança, nem anestésicos, muito menos glória, mas apenas o Teu ombro para chorar enquanto morria. A dor da solidão magoava‑o mais do que a dor física. Mas Tu viraste o rosto para não o veres a agonizar. Choraste de um lado, e ele do outro; foram as lágrimas mais angus‑ tiantes da história. Se esses factos foram reais, enquanto Ele morria fisicamente, Tu «morrias» emocionalmente. Que sacrifício é esse, «ó Desconhecido»? Seis horas de agonia foram mais longas do que a eternidade passada. Para quê? Para investir numa humanidade falida? Que amor é esse que chegou às últimas consequências? O Semeador recuperou o fôlego… e emendou: – Não entendo esse amor, ele ultrapassa os limites da razão. Se preciso fosse, sangraria as minhas mãos lapidando rochas para reencontrar os meus filhos. Daria todo o dinheiro e os bens de uma vida inteira em troca de mais um dia com a presença deles. Seria objecto de vergonha social, atravessaria os vales do desprezo, aceitaria ser cuspido, vaiado, pisado e caluniado para tê‑los nos meus braços. Resgatá‑los‑ia dos destroços do avião em chamas vivas, se pudesse. Mas a morte enterrou a minha lista de oportunidades… Dos seus olhos corriam lágrimas como chuvas torrenciais. Não conseguia interromper as imagens dos últimos instantes com as suas crianças e a sua esposa. – Filhos, tenho muita pena, mas tenho de viajar para o Médio Oriente com urgência. Preciso de me reunir com os príncipes do petróleo. Julieta, a filha de sete anos, cabelos encaracolados, activa, alegre e intrépida, retrucou, entristecida: – Outra vez, papá? Já contei dez vezes que tu desmarcaste com‑ promissos comigo este mês. Não foste ao aniversário da Mariana, não foste ao parque, não jogaste vólei comigo, não foste à reunião com os professores… Em seguida, a menina parou de descrever as falhas do pai, agarrou‑se ao seu pescoço e beijou‑o dez vezes para o lembrar dos dez compromissos desmarcados e para mostrar que, apesar de tudo, o amava muito, não pelo que ele tinha, mas pelo que era. Insistiu: – Vamos, papá. Deixa as pessoas trabalharem para ti. Vamos! – E agarrou‑lhe delicadamente nas mãos para o levar para o avião. Ele ficou sem fôlego com a atitude meiga de Julieta. Fernando, de nove anos, orgulho do pai, humilde, afectivo, sociável, que gos‑ tava de ter longas conversas com os empregados da família, também o questionou: – Não somos mais importantes do que os teus compromissos, papá? Constrangido, o pai afirmou: – Sim, Dodô, sem dúvida! Mas trabalho para vocês. Dodô era o nome carinhoso pelo qual tratava o Fernando. A partir do segundo ano de vida, o menino começou a chamar ao seu avô, pai do seu pai, não de vovô mas de Dodô, e o avô alcunhou o menino com esse nome. A alegria do avô era o pequeno Dodô, mas faleceu cedo. Depois de o pai dizer que trabalhava para eles, o menino assestou‑lhe um golpe certeiro com inteligência e afectividade: – Mas, papá, de que adianta dares‑nos o mundo todo se não temos o teu mundo, se não te temos a ti…? O poderoso homem caiu do céu para a terra. A frase penetrou como uma lâmina na sua mente. Enquanto se tentava recompor, a sua filha Julieta abalou‑o de novo, mais até do que o seu filho: – Vamos… fazer um acordo, papá… Quero trocar todos os pre‑ sentes que tu me vais dar este ano… – Enxugou os olhos com as mãos e completou: – … por um só presente: passar uma semana inteira comigo! Comovido e quase sem palavras, fez um sinal de continência para a filha, como se estivesse a obedecer às ordens de um general. – Prometo, fofinha! – disse carinhosamente à filha. Aquelas recordações perturbaram ainda mais a sua mente naquela praça. Era um homem bom, um megaempresário preocupado com a sociedade e com projectos humanitários, mas fez do excesso de tra‑ balho a sua loucura. Era viciado em actividade, um escravo numa sociedade livre, óptimo para o sistema, mas um carrasco de si próprio. Tentando esconder as lágrimas, abraçou os filhos e beijou‑os várias vezes, na testa, na cabeça e nas faces. Fez cócegas ao Fernando, desmanchou os cabelos da pequena Julieta e completou: – Esperem por mim, vou surpreendê‑los. Acreditem, apanharei o próximo voo. Momentos depois voltou‑se para a esposa, Júlia, e deu‑lhe um prolongado beijo. Chamava‑lhe carinhosamente Morena, devido aos seus cabelos encaracolados e escuros. Era uma mulher alta, esguia, bela. – Morena, quanto mais o tempo passa, mais linda ficas. Ela agradeceu, mas não conseguiu esconder a sua cálida tristeza. E pela primeira vez foi completamente honesta com ele: – Nós estamos a perder‑te. Tenho muitas saudades do tempo em que tu vivias no anonimato e tinhas pouco dinheiro. Cozinhávamos, brincávamos e sonhávamos juntos. Hoje, és cortejado por príncipes e presidentes, passas mais de treze horas por dia a trabalhar, viajas todas as semanas para um país diferente, fazes reuniões de trabalho aos fins‑de‑semana. Até na cama sinto que tu não és meu. Onde está o homem simples que me encantou? Ele respirou fundo. As suas dívidas eram grandes. E reconhe‑ ceu‑as. – Sei que já não sou o mesmo, Júlia. O excesso de compromissos roubou‑me o tempo e o romantismo. Sinceras desculpas. – Parou por um momento de falar, pois sentiu um nó na garganta. – Mas acredita, eu amo‑te. Deixarei o front das empresas e serei em breve apenas o presidente do conselho. Serei outro homem. Obrigado por não desis‑ tires de mim – e beijou‑a de novo, longamente. Nisto, a funcionária da companhia anunciou a última chamada para o voo. Última chamada, últimos beijos, últimos abraços, últi‑ mos diálogos, últimos encontros. O multimilionário empobreceu ao máximo. Não teve tempo de reescrever os textos da sua histó‑ ria. Entre ele e a sua família ficou um eterno silêncio e um vazio inexprimível. Depois de recapitular esses momentos, o Semeador de Ideias ergueu os seus olhos para o alto e disse: – Se és Todo‑Poderoso e tens carência de amor, imagina eu, frá‑ gil, fóbico, que morro todos os dias um pouco. Se Tu tens solidão, imagina eu, que nem sequer vi os corpos de Fernando, Julieta e Júlia para os enterrar. Não há células que em mim não doam nem ossos que em mim não gemam. Apesar de estar de rastos, derrotado, conseguiu levantar‑se cam‑ baleante. Tomou fôlego e aumentou o tom das discussões. Quanto mais argumentava, mais sentia que estava a perder o debate, porém resistia a entregar‑se. – Sei que não és responsável pelas minhas falhas e omissões, mas, se Tu és o director do script da existência, por que não me ensinaste a matemática da emoção para poder apreçar o que não tem preço? Por que não gritaste aos meus ouvidos: «Ei! Louco, acorda!»? Por que fui eu o ateu dos ateus? Condenas os que não crêem em Ti? Por que sou imperfeito, errante, débil? Por acaso os que crêem em Ti foram per‑ feitos? Os discípulos do homem Jesus não lhe davam frequentes dores de cabeça? Ele sabia que era indefensável, mas mesmo assim tentou fazer a sua defesa tirando a máscara por completo: – O mais forte deles, Pedro, não Te negou três vezes, vexatoria‑ mente, diante de servidores humildes? Sei que também Te neguei, e por dúzias de vezes, mas pelo menos foi para os grandes da sociedade. Judas, o mais culto dos discípulos, não Te traiu por trinta moedas de prata, pelo preço vil de um escravo? Também Te traí, eu sei, mas pelo menos fui mais inteligente do que Judas. Dei‑Te as costas por milhões de dólares, por toneladas de prata. Caiu novamente de joelhos, esgotado, dilacerado. Quase sem for‑ ças, partiu para o embate final e disse as suas últimas palavras: – Mas escuta‑me, Altíssimo. No acto da negação, o homem Jesus cruzou o seu olhar com o de Pedro e, o que é espantoso, gritou sem dizer palavras: «Eu compreendo‑te! Eu compreendo‑te!» Que homem é esse que compreende os que o golpeiam? E, no acto da trai‑ ção, chamou a Judas amigo, abrindo uma janela para que se repen‑ sasse. Que homem é esse que abraça os que o apunhalam? E eu? Quem compreendeu a minha estupidez? Quem me chamou amigo quando me desintegrava no caos? Pedro reescreveu a sua história, e Judas, ao contrário, sucumbiu diante dela, puniu‑se, deprimiu‑ ‑se e ceifou a sua vida. Como ele, atolei‑me na lama da culpa e da indecifrável perda. Puni‑me, deprimi‑me e, por fim, fui depositado como «objecto» num hospital psiquiátrico. Todos me abandonaram, inclusive eu próprio. E Tu? Tu permitiste‑me ser um coleccionador de lágrimas. Nesse momento, ajoelhado, tentava em vão enxugar as lágrimas com as mãos. Um judeu ortodoxo, embora não concordasse com algumas das suas palavras, ficou embasbacado com os seus argu‑ mentos. Juntou‑se a um líder islamita, a um sacerdote cristão e a um monge budista, que também estavam perplexos com o que ouviram, e aproximaram‑se dele. Tomados pela compaixão, levantaram‑no e abraçaram‑no. Mancharam as suas roupas de sangue, mas não se importaram. Perguntaram‑lhe: – Quem és tu? – Quem sou? – Confuso pelo dramático stress e pela violência dos traumas que sofrera, tentou responder: – Tento ser um pequeno semeador de ideias para dar significado à minha vida. – Mas qual é o teu nome? Onde moras? – Não tenho morada certa, sou alguém em busca de mim mesmo. Eles ficaram confusos. Sabiam, entretanto, que era um homem com uma dívida impagável. Tentando soprar‑lhe uma brisa de con‑ solo, acrescentaram a uma voz: – Deus pode perdoar‑te, meu filho. O coleccionador de lágrimas agradeceu‑lhes comovido e com‑ pletou: – Sei que o Artesão da existência pode perdoar as loucuras dos homens, e quem sabe as minhas também. Mas o meu problema é eu perdoar‑me a mim mesmo. Nesse instante, olhou ao redor e viu‑se rodeado de amigos que o amavam. Rico, viveu isolado no meio das multidões; miserável, construiu notáveis relações. Chegou a vez de os discípulos ajudarem o Mestre. Usámos um dos seus cortantes pensamentos para o instigar: – Mestre, não traia as suas palavras. Você mesmo nos disse que a maior vingança contra um inimigo é perdoá‑lo. Perdoe‑o, e ele morrerá dentro de si; odeie‑o, e ele viverá no centro da sua história e aterrorizá‑lo‑á dia e noite… O intrigante debate que realizou, somado ao impacte das nossas palavras, refrigerou‑lhe a mente, pelo menos um pouco. Era preciso aceitar a sua falibilidade e deixar de mutilar a sua emoção pela auto‑ punição. Era preciso também sepultar os filhos de uma vez por todas no seu psiquismo e continuar a escrever a sua história. Eram grandes decisões e, como tais, solitárias. Se não as tomasse, a perda tornar‑se‑ia um cárcere psíquico, que bombardearia a sua mente com ideias pessimistas; a sua mente pessimista, então, asfixiaria o seu prazer de viver e geraria uma depressão que se arrastaria conti‑ nuamente e contaminaria toda a sua agenda existencial. Transformar‑ ‑se‑ia num zumbi, num morto‑vivo.
Posted on: Fri, 27 Sep 2013 09:00:20 +0000

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