Pureza, esta palavra. Os poemas da Sophia, os poemas do Eugénio, - TopicsExpress



          

Pureza, esta palavra. Os poemas da Sophia, os poemas do Eugénio, os poemas da Fiama, as crianças. Endeusa esta palavra. Uma palavra pode ser um deus, como um rio pode ser um deus (Ganges). Uma palavra pode ser um deus, como o invisível pode ser um deus. Um significado pode ser um deus. Sorri. Se eu descrevesse agora a pureza iria construir uma ordem de palavras diferente da tua e diferente da minha amanhã, ontem. Esta é uma certeza evidente. É assim porque eu e tu somos diferentes, porque eu agora sou diferente de eu amanhã, eu ontem. Os filósofos tiraram essas conclusões antes da electricidade. Não há um grande mistério nessa ideia apesar de ser a tentação de um poço e, já sabes, os poços servem sobretudo para cair. Não deixes que esse pormenor te impeça de nada. Pureza, aceita esta palavra nos teus gestos, em cada uma das tuas palavras e, aos poucos, chegará ou regressará aos teus pensamentos. Nuvens e sombras hão-de dizer-te que não é assim tão fácil, tentarão desencorajar-te com todos os tipos de veneno e dependerás apenas de ti. Haverá rostos a transfigurar-se, vozes a adensar-se de noite e de morte, pedidos irrazoáveis, e só poderás contar contigo, com o teu corpo necessariamente magro, com a tua força a parecer-te insuficiente. Não há limites para a forma daquilo que se pode atirar no teu caminho, uma árvore, uma bomba, a polícia, a tua própria mãe. Continuar a enumerar essas dificuldades seria ceder perante elas, dar-lhes tamanho. Deves ignorá-las. Se lhes deres força, terão força. Deves cobri-las de branco, responder-lhes com aquela palavra - deus. Pureza. Define essa palavra apenas dentro de ti. Utiliza apenas os teus materiais, as tuas próprias palavras. Demoraste tanto a aprendê-las, pensa nisso. Deste-te a tantos trabalhos e a tanta vida. Talvez tenhas tido filhos em nome de definições, talvez tenhas amado e perdido, talvez tenhas passado meses a procurar diariamente alguma coisa que te pareceu que não encontraste, mas acabaste por encontrar qualquer outra coisa que te moldou e que te fez chegar aqui, com estes significados unicamente teus. Recolhe tudo isso, considera tudo isso. É essa a tua bagagem, as tuas ferramentas, tu és isso. Talvez te pareça que já não podes ver com pureza, talvez te pareça que perdeste essa capacidade entre as coisas reais, como quem perde uma chave na rua, como quem perde a carteira. A diferença entre um sentido e uma chave ou uma carteira, por exemplo, é que um sentido pode materializar-se na palma da mão, não é feito de ferro. Se precisares de renascer, renasce. É permitido renascer. Na verdade, nada é proibido. Nada é proibido. Pureza, repito a palavra apenas pelo prazer de articulá-la. Experimenta. Se te sentires ridículo ao fazê-lo, sabe que essa é uma armadilha que deixaste que te colocassem. Ignora-a. Diz: Pu-re-za. Ao fazê-lo, é como se cantasses no duche ou no trânsito. Sorri. O que é um deus? Por favor, não me faças perguntas dessas. Faz perguntas para dentro de ti.. Só as tuas respostas são válidas. O sol ilumina tudo. Senta-te ao sol e sente-o. Assim, com aliterações e tudo o que mereces. Tu és tão natural como uma árvore. As preocupações que te dobram a pele do rosto e que te apoquentam os músculos das costas, os pesadelos com que acordas de manhã podem dissolver-se no lago imaginário que fores capaz de criar diante de ti. Repara, é sempre fim de tarde nesse lago, tem sempre paz e descanso. Está tudo feito. Lá longe, os filhos reencontram os pais e contam-lhes as histórias de mais um dia que terminou. Tão bom. A claridade a passar-te entre os dedos como fios de areia. Bebe água nessa fonte, enche-te. É uma fonte infinita e tu tens a composição desse mesmo infinito. Podes beber infinitamente. Pureza, repito agora para que se instale e se respire. Retira a maldade até das coisas más. Se te sentires ingénuo ao fazê-lo, sabe que, uma vez mais, essa é uma armadilha que deixaste que te colocassem. Se não conseguires evitá-la, ignorá-la, aceita a ingenuidade. A ingenuidade faz o sangue circular com mais fluidez do que o cinismo. A ingenuidade desconhece o colesterol. O cinismo é hipertenso. Se apreciaste as referências iniciais à poesia portuguesa, aceita que a felicidade da ceifeira de Pessoa não é uma contradição do pensamento. Essa felicidade chega depois dele porque o pensamento inteligente dirige-se à felicidade. É possível que não sejamos um nome, nem um corpo, nem uma alma. Tudo é possível, nada é impossível. Não deixes que te armadilhem de cálculos e labirintos. São demasiado fáceis de construir. Quando mal entendidos, são máquinas de guerra. E, no entanto, não há palavras más. Perante a pureza, deus, só há palavras boas. Avança no incandescente, na música sem muros. Não existe horizonte nessa paisagem. Pureza, repete. Tu tens direito à felicidade. Agora, vai. Tens a vida à espera de abraçar-te. José Luís Peixoto in Jornal de Letras (Junho, 2010)
Posted on: Sun, 25 Aug 2013 22:53:53 +0000

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