Quem relembra um ponto, reinventa um conto. De repente a luz. - TopicsExpress



          

Quem relembra um ponto, reinventa um conto. De repente a luz. Tremenda invasão em um reino de sombras. Antes era tão fácil, agora o peso é maior. Levantar e respirar fundo ainda é a melhor parte. Dá a certeza absoluta da vida, uma certeza que se confirma a cada dia. Procurar os chinelos, sentir o contato da cerâmica na ponta dos dedos que tateiam a imensa escuridão embaixo da cama. Quantos fantasmas, ali viveram bandidos, monstros, almas penadas e a inocência da infância já percorrida. Lugar do medo noturno, melhor esconderijo do pique esconde, nas intermináveis tardes. Encontrado o pé fujão, ao banheiro. A rotina, afinal, não é tão ruim. Aprende-se a gostá-la, mesmo a desejá-la. Nestes momentos me vejo criança, a mesma criança com medo do desconhecido. Mas há fundamental diferença. Aquela criança temia por puro desconhecimento, eu já temo por muito ter conhecido, daí ansiar pela rotina. Esta tem a vantagem da previsão. Quem é que me fita do outro lado do espelho? Parece alguém conhecido, mas é uma pessoa diferente, com um rosto marcado, dona de um olhar que muito já viu, e que nem sempre gostou de ter olhado. É alguém que me acompanha, e que sempre apresento como sendo eu. O café. Hora de prepará-lo. Busco pelo fiel canecão de alumínio, companheiro de várias manhãs, quentes e frias, ensolaradas e nubladas. Agora a casa é mais vazia. De tantos, só restamos dois. Mesmo o canecão sabe a diferença e me mostra a mancha antiga em seu interior, marcando o nível onde outrora a água atingia, garantindo uma garrafa cheia de forte café. Sendo dois, o volume reduziu, mas o café continua com o mesmo sabor, e o cheiro de ontem. A água ferve, o aroma se espalha. Cheiro forte de lembranças. A dor nas costas é um pequeno preço que se paga por tê-las. Todos nós, crianças ainda, esperando o pão com manteiga feita em casa, o leite fervendo, retirado naquela mesma madrugada. Às vezes tinha broa de fubá, biscoito de polvilho, bolo de milho. Mas sempre a certeza de que algo seria posto à mesa, antes que fôssemos à escola. Aos meus também, sempre pude oferecer algo para comerem, antes das aulas ou das brincadeiras e depois, antes do trabalho. Agora somos dois, e sempre há comida na mesa. Anos atrás, durante oito horas diárias, alguém me dizia o que fazer, ou fazia o que me haviam determinado. Cumpri meu papel, produzi e recebi por isto. Agora mando eu. O tempo é meu, e somente a mim obedeço quando determino o que fazer com ele. Não existem metas a serem alcançadas, mas lições a serem dadas. Quero mais é viver. Minha rua mudou, observo da janela. Mas não mudou hoje. Mudou um pouquinho todo dia. Não vejo mais os vizinhos conversando em seus portões, nem crianças correndo no meio dela, brincando de polícia e ladrão. Não raro vejo a polícia passar correndo, geralmente bem depois do ladrão. Novas caras, novos gostos. Buzinas demais, gritos demais, gente demais. Em casa, somos dois. Há os filhos, e se estes os temos, eis os netos. Mas os filhos não são mais nossos. São deles mesmos e da vida. É bom tê-los aqui, mas é melhor sabê-los bem. Um banho, um bom banho e tratar do almoço. Novamente aquele rosto me olha do outro lado do espelho. Ainda me parece familiar, mas não são raros os fios brancos. Arroz, feijão, tenho que lavar bem as verduras. Tomate também. Tomate com sal, pena que o médico mandou diminuir o tempero. Melhor diminuir o médico. E a carne? Tenho que descongelar alguns bifes. Alho, pimenta do reino, mais sal. Em um instante está pronto. Anos de prática. Comemos, conversamos. O dia continua lindo. A cozinha está toda limpa, a casa foi toda varrida. A cama já está arrumada, lençóis trocados, fronhas imaculadas. Nossas plantas, ilusão de mata numa floresta de cimento. Carinho e dedicação dão bons frutos. Comeremos, no jantar, parte desses frutos, em forma de cebolinhas e salsas. Adoramos. Ouço o chamado intermitente do telefone. Alô! É o mundo. Fico sabendo deles. Onde estão, o que fazem. Trocamos saudades. Outros me ligam. Notícias novas por velhas. Do que não participei, tomei ciência. Tchau, qualquer dia venham nos visitar. Desligo. Ligo a televisão. Jornais, boas notícias, más notícias, algo que sequer devia ser notícia. Fofocas dos artistas. Novelas, nacionais e estrangeiras, todas repetidas. Minhas pernas descansam. Felicidade eterna ao inventor do controle remoto. Busco canal por canal. Um documentário. Para descansar o cérebro, nada melhor do que expô-lo ao conhecimento. Se os músculos reclamam, o cérebro sempre agradece pelo exercício. Acordei, é a segunda vez hoje, e ainda são duas horas da tarde. Antes não cochilava tão facilmente. Mas e daí? Agora eu posso. Melhor trocar de roupa. A pele perde o vigor da juventude, mas um toque de vaidade sempre é bem vindo. Fecho a casa. Sem ninguém ela se torna ainda maior. Boa tarde, boa tarde, boa tarde. Tantos conhecidos. Sempre é tempo para uma pequena prosa. Não, não está com jeito de chuva e a inflação sempre esteve aí, principalmente se você é aposentado. Boa tarde. Promoção de calçados infantis. Claro que parcelamos. Se não gostar pode trocar. Temos de outra cor e modelo pelo mesmo preço. Obrigado. Boa tarde. Boa tarde. Não me diga! Morreu ontem pela manhã? Não ficamos sabendo. Qual doença? Câncer? Já há muito perdi o medo de falar seu nome. Um dia tão lindo. Morte. Quanto mais vivemos, mais com ela nos envolvemos. Tantos já foram. Pais, mães, filhos, irmãos, amigos, netos. Por isso é tão bom acordar e respirar fundo. Por isso é tão bom poder lembrar. Por isso sempre quero voltar para casa, para minha rotina. Somos dois, mas temos tudo. Boa tarde. Posso me sentar com vocês? Adoro a praça ao entardecer!
Posted on: Tue, 24 Sep 2013 18:15:55 +0000

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