RAPSÓDIA 18 O MISTÉRIO No meio da Noite, da Noite espessa e - TopicsExpress



          

RAPSÓDIA 18 O MISTÉRIO No meio da Noite, da Noite espessa e latejante, fico olhando um mistério tão antigo talvez como a própria Noite, fico olhando-o como quem ouve asas e não sabe de que pássaro provém. Olho o demonio, esse espírito que aterroriza os pecadores, essa voz grossa e portentosa que sopra o medo no coração dos solitários. Olho o deus, esse espírito que alucina os inocentes, esse olho omnisciente e salvador que garante a paz dos contemplativos. Olho um e outro e penso no duplo triângulo dos cabalistas, um branco como a luz, apontando o alto, outro negro como carvão, indicando a profundeza. E penso num ancião imaculado de tanta pureza e penso num monstro lúbrico e chifrudo. Amplo e grave mistério que também a mim me atiça e me força os joelhos, me extasia e me esmaga, pois eis que sou herdeiro de mitos que me ultrapassam. Olho um e outro, negando-me tanto ao fascínio quanto ao pavor, apesar do suor que me banha a testa previamente encarquilhada frente aos confrontos que se repetem. Olho um e outro desejando de repente a anulação do Tempo, ardendo por um espaço novo, onde uma nova História finalmente revele a luminosidade das coisas em si mesmas, não de seus fantasmas. Escuto o poema e o penso como um rio de reflexos cristalinos. De joelhos consulto as águas e medito minha própria imagem fluindo em utopias de serenidade. De joelhos consulto as águas e bebo-lhes a líquida sabedoria. Reescuto o poema e o penso como um rio satisfeito entre suas margens. No meio da Noite, da Noite espessa e latejante, procuro a palavra perfeita, a que abandona a gramática e a si mesma ouve como límpida vibração. Procuro a palavra perfeita, a que se liberta das cordas vocais e de música transforma-se em pele. Por isso digo: o demonio é filho da necessidade. Vestido de mantos imperiais, de olhos luzidios como os de um gafanhoto, de dentes omnifágicos como os de um porco, de cascos rachados como os de um bode, de chifres afiados como os de um gnu, de respirar tenso como o de um paranóico, de garganta sedenta como a de um tigre, insaciável e aterrorizador como Dite, o das Três Cabeças, gelado gigante do nono círculo infernal, exorcizam-no os ascetas porque é ele que instaura a fome, é ele o pai dos desejos, é ele o instinto e a agressão, é ele o senhor das trevas. Por isso digo: o deus é filho da carência. Vestido da mais radiosa diafaneidade, de olhos silenciosos como os da aurora, de cabelos brancos como os das nuvens, de coração profundamente azul como o do firmamento, de presença infinita como a do Sol, de voz harmoniosa como a das aragens, de ouvido fino como o de um violino, amplo e inesgotável como Sidarta, o Dissolvente, luz que vive somente do próprio ardor, aclamam-no os miseráveis, porque é ele o senhor das alturas, é ele que instaura a eternidade, é ele que eletriza os relâmpagos, é sempre ele o rei inquestionável. Pelo demonio, eu, que sou bicho, rosno e farejo a próxima presa. Pelo deus, eu, que sou vibração, converto-me em todos os seres. Em mim, bicho, sou um e guerreio dentro de minha finitude. Em mim, vibração, sou todos e me dissolvo em cosmos, irradiando-me. Sou homem e devo reconhecer a força dessa dupla identidade. Pois eis que, filho de minha geografia, nela herdei a mim mesmo e a um mistério que já dobrou os joelhos de multidões imensas e bebeu almas inumeráveis. Mas sou um rio, como filho do povo sou um rio. No meio da Noite espessa e latejante, da Noite que agora me cobre com seu manto impresso em itálico e pontos de interrogação, fluo minhas águas e me oriento para um oceano maior que todos os oceanos. Ouvem o marulhar das minhas ondas? Ouçam então o segredo desta letra, pois eis que canto a gênese de uma nova era, onde o mistério herdado está esfumaçando, como faísca quase morrendo, mas após acender um outro motor, e este agora tão poderoso como o próprio coração da Terra.
Posted on: Sat, 05 Oct 2013 20:22:18 +0000

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