RIO DE CARAMELO (QUARTA E ÚLTIMA PARTE) A agulha pousa no - TopicsExpress



          

RIO DE CARAMELO (QUARTA E ÚLTIMA PARTE) A agulha pousa no disco e aquela harpa solitária dá o tom da tristeza que virá. Ainda está na introdução quando penso nas mulheres que tive. Na doçura que tanto esperei de cada uma delas, mas nunca recebi. Recebi reclamações, cobranças e toda aquela ideia de dama açucarada decidiu ir-se de minha mente. À harpa se soma um violão marcando o ritmo desolado e uma sanfona em seguida. E então entra a primeira voz dizendo: não tenha piedade, pode ir embora, ficarei aqui; estou pressentindo, é chegada a hora, você vai partir. A segunda voz entra e os dois dizem tentarei ser forte na batalha contra o meu dissabor; é melhor assim que prender alguém que não me tem amor. Acho que eu estava enganado quando pensei que ouvindo a música ia curar um pouco a fossa rindo de mim mesmo. Engano. A canção realmente só trouxe tristeza, daquela que é o oposto total do sorriso. A primeira voz, novamente sozinha e com o mesmo fundo musical da primeira estrofe agora diz: não tenha piedade, pode ir embora, a vida é assim; você não tem culpa de não me amar, de não gostar de mim. Novamente a segunda voz entra e os dois cantam: esta é a lei, sempre quando a gente entrega o coração; termina sozinho, chorando a mágoa da desilusão. Aí a coisa esquenta quando os dois cantores põem toda a alma naquele refrão matador. Achei que eu poderia aguentar facilmente, rir até, mas tive que me segurar para não implodir ali mesmo quando ouvi que aqui nesta casa de hoje em diante tudo vai ser triste; vai morrer agora toda a alegria que em mim existe; cada objeto que eu for tocar vai lembrar você; porém só me resta chorar escondido para ninguém ver. Aquela melodia tristonha, aquelas vozes fantasmagóricas, aqueles infortúnios vividos nos últimos meses e anos e agora aquele puteiro no meio do nada. Mal terminaram o refrão e começou aquela ponte instrumental que nada mais é do que o repetir da introdução e eu comecei a chorar, desabei ali mesmo em frente ao velho. Aliás, só então me dei conta que o velho, do outro lado da sala, já estava chorando também. Quando eles repetem o refrão, muitas coisas se misturam em mim: saudades, remorsos, angústias, desapontamentos e o velho, muito mais vivido do que eu, deve estar sentindo tudo isso também, e muito mais. E então a canção termina e o vaqueiro fantasma, imediatamente, corre com agilidade para o banheiro. Nem parece a múmia claudicante indo atender aquele telefonema minutos atrás. Tiro o disco e entendo porque o silêncio neste momento e neste local será muito mais sadio e benéfico. Fico por alguns instantes pensando na vida, esperando meu analista caipira voltar do banheiro. Acho que preciso falar da escada anterior, do azar anterior, a tal moça encrenqueira. Eu estava começando a falar dela quando o telefone tocou. Fico preocupado porque o velho não volta do banheiro e vou lá perguntar se está tudo bem. Ele não responde, abro a porta e o que vejo é chocante: um corpo ensanguentado jogado no chão. Cortou os pulsos. Sei que eu não deveria pensar isso, mas foi involuntário. Em um momento tão apavorante, uma piada surgiu em minha mente, um comentário engraçadinho. Pensei que a música era de cortar os pulsos sim, mas não precisava ter levado tão a sério isso. Apaguei a piada da mente e levantei o homem para cima do vaso sanitário. No que estou fazendo isso, olho a janelinha do banheiro lá em cima totalmente marrom. Decido abrir e aquele marrom densamente líquido escorre todo para dentro, como uma enchente, e tenho apenas tempo para pular para trás fechando a porta e deixando o velho e aquela onda marrom entrando. Em poucos segundos, aquela lava escura começa a passar por debaixo da porta fechada do banheiro e sigo correndo pelo salão para sair dali pela grande porta da frente. Quando abro a porta não vejo a cidade, nem meu carro, nem as britas, o balde vermelho, o estacionamento, a rodovia, nada. Apenas aquele mar marrom, aquele rio de caramelo. Desde o início era isso o que estava acontecendo ali. Era esta a cidade mostrada no programa rural. Rodei a noite toda e não conversei com ninguém e agora estou aqui ilhado neste prostíbulo com o cadáver de um velho teimoso que preferiu morrer a sair de seu puteiro. Agora entendo porque outra pessoa queria que ele saísse, porque as prostitutas todas se foram e porque música triste estava terminantemente proibida aqui. Acima de tudo, o que entendo agora é de doçura. A exigência excessiva de que as mulheres com quem me relacionei fossem doces como a idealização que eu fazia da mulher feminina, da mulher de antigamente. Agora pronto, está aí todo o doce que eu queria. Morrerei sufocado pelo caramelo. Ligo a tevê sem som e um comercial de absorvente parece muito mais surreal agora do que você possa imaginar. Troco o canal e decido esperar o apresentador sensacionalista terminar uma matéria sobre um sujeito que estuprou mãe e filha (sei disso porque programas sensacionalistas têm legendas) e em seguida está lá, minha cidadezinha, afundada em um grande rio de caramelo. Todos foram evacuados. Todos, menos eu e o velho. Todos foram evacuados soa engraçado, como se a cidade tivesse cagado seus habitantes em outro esgoto de outra cidade. E agora estou aqui, sozinho, prestes a morrer caramelizado. Desligo a tevê e ponho de novo o disco. A mesma faixa até o fim. Vai morrer agora toda a alegria que em mim existe.
Posted on: Tue, 05 Nov 2013 20:56:12 +0000

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