Relação tortuosa Como escritor, acho que sofro de uma - TopicsExpress



          

Relação tortuosa Como escritor, acho que sofro de uma deficiência que muitos que seguem o mesmo ofício que eu sofrem: não sou muito chegado aos números. As palavras sempre me encantaram e vão continuar me encantando. Amo-as com todo o meu coração. No entanto, acho que preciso ao menos ter um relacionamento mais íntimo com os números, uma paquera, um affair, talvez. Preciso me inteirar de certas coisas que estão bem aqui, na minha cara e que, por negligência, deixo de ver. Logo depois de sair do trabalho, passo no supermercado. Minha filha passara por telefone a relação do que tenho que comprar. Pego um dinheiro no caixa eletrônico que fica dentro do estabelecimento (não uso cartão) e vou às gôndolas. Apanho o que preciso. Pão, verdura, frango e um produto de limpeza. Passo no caixa e pago. Tudo deu trinta e um reais. Dispenso a sacola e o rapaz do caixa ajeita tudo em uma caixa de papelão, joga o tíquete dentro e eu sigo até o carro. Por acaso, não estava a pé. Chego à casa e começo a guardar as coisas. Arrumo tudo e preparo um café. Minha filha olha para a caixa e vê o tíquete que deixei lá dentro. Pega e começa a ler com minúcias. “Você sabe que pagou nove riais de imposto?”, questiona. Paro de tomar meu café e fico espantado. Pego a nota das mãos dela e só então me lembro da lei que obriga os estabelecimentos a discriminarem os impostos nos cupons fiscais. Confiro incrédulo e fico embasbacado. Em uma compra de trinta reais, eu paguei nove de imposto. Está escrito ali. Não gosto muito dos números, mas calculo rapidamente de cabeça mesmo usando o método que aprendi no primário. Tenho vontade de chorar. Paguei trinta por cento de imposto. Meu Deus! Exclamo e continuo a examinar aquele minúsculo papel enquanto meu café esfria. Sempre detestei coisas erradas. Eu jamais consegui conceber a ideia de alguém roubar, enganar, ludibriar quem quer que seja. Mas confesso que ao analisar aquela carga tributária e fazer um paralelo com a contrapartida que os governantes nos devolvem em forma de serviços, entendo que há muita disparidade nesta balança e com isso, não faltará quem dê um jeito de sonegar. Se ligo a televisão, o rádio ou abro um simples jornal estão lá os escândalos políticos nos noticiários. A saúde está e sempre esteve em estado de calamidade. Gente morrendo em filas e político roubando a torto e a direito. Corro os olhos mais uma vez para o pedaço de papel e sinto vergonha, raiva e até medo. Ponho-me por instantes no lugar de um dono de empresa que precisa comprar as mercadorias, pagar aluguel, pagar funcionários, água, energia, telefone, combustível e ainda tirar algum lucro de seu trabalho. Confesso que não tenho coragem de continuar minha linha de pensamentos. É sufocante. Ver os impostos que pagamos equivale a abrir um exame médico e saber que se está com uma doença incurável. Não há escapatória. Você paga, ou paga, e pronto. É uma via de mão única. É um corredor da morte que destrincha a todos em pedacinhos para depois atirar em um abismo qualquer completamente inutilizados. Confesso que gostaria de deixar os números em um lugar bem tranquilo, mas eles gritam. Eles clamam para que eu os entenda, os afague, os ame mesmo que um pouco. Eu entendo suas razões (as dos números), mas a indignação é muito maior. Os números e, principalmente o que eles representam me assustam e o descaso para com nossa sociedade me enoja. É impossível compreender que profissionais de suma importância como os professores, os médicos, os policiais e tantos outros precisem fazer malabarismo para ter um aumento de três por cento e acabam não conseguindo, enquanto que numa simples compra de final de tarde pagamos dez vezes mais só em impostos que beneficiam uma corja que ainda por cima ri da cara do povo. Acho que minha relação com os números será muito tumultuada. Creio que de agora em diante, teremos uma DR todos os dias. Não sei no que isto vai resultar, mas creio que, mesmo tortuosa, minha convivência com os eles será para sempre, de agora em diante. Mesmo que seja para sofrer, vou tentar entender os caminhos que estes percorreram para chegar até o esvaziamento total do meu bolso, para o esgotamento ínfimo do suor do meu trabalho. Jossan Karsten
Posted on: Wed, 18 Sep 2013 01:10:15 +0000

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