Se nos restringirmos ao universo da amostragem, a menor - TopicsExpress



          

Se nos restringirmos ao universo da amostragem, a menor diversidade de origem nacional não significa que automaticamente estava criada uma unidade cultural maior, já que as práticas culturais são informadas por muitos outros elementos. A maior parte dos tripulantes era de origem portuguesa (pouco mais de 53% do total), seguida dos africanos (pouco mais de 24%). Excetuando os sete cabo-verdianos da amostra e outros três homens livres africanos e negros, os demais africanos mencionados eram ou haviam sido escravos, o que nos remete a outros aspectos importantes na formação da cultura marítima do tráfico negreiro: a presença marcante das culturas africanas e escravas a bordo e a diversidade social existente nas equipagens. Os tripulantes africanos, quase sempre na condição de marinheiros - ainda que por vezes em tarefas especializadas - estavam submetidos ao domínio dos oficiais, como de resto todos os marinheiros. Entretanto, sua situação poderia ser de discriminação e eventualmente suas falhas no trabalho seriam punidas de forma mais rigorosa. Algumas vezes, os africanos eram ainda objeto de discriminação no trato cotidiano com seus companheiros marujos: é o que podemos inferir de um relato datado de 1847 sobre o ritual que ocorria a bordo quando da passagem pela linha do Equador. O ritual, que envolvia tanto os oficiais quanto os marinheiros, era permeado por brincadeiras, bebida e muita algazarra, nas quais às vezes os negros poderiam levar a pior. Vejamos o que nos diz o relato: Tivemos poucas brincadeiras e as diversões costumeiras. Meteram dentro dágua com bastante crueldade a um negrinho passageiro de proa, brincadeira que ele não compreendeu e que não lhe cabia, pois que já havia cruzado a linha ao ir à Europa9. A fonte não é categórica sobre o motivo pelo qual o rapaz teria sido tratado de forma diferente dos demais, no entanto, são significativas as menções à sua cor e à grandeza da crueldade - bastante. Ademais, se compararmos este relato com outras descrições do ritual de travessia do Equador, veremos que raras vezes a crueldade se concentrava em uma figura que não pertencia ao corpo de oficiais. No que se refere à idade dos tripulantes, o estudo de Rediker indicou que a maior parte dos marinheiros tinha entre 20 e 30 anos, enquanto que a faixa etária média dos oficiais ficava entre 30 e 35 anos. A partir das mesmas fontes da Tabela I, temos as seguintes médias de idade nas tripulações do tráfico negreiro para o Brasil oitocentista: As idades médias de oficiais e marinheiros livres coincidem com as dos recortes estudados por Rediker (Inglaterra e América de língua inglesa, primeira metade do século XVIII). As novidades, neste caso, referem-se aos outros itens inseridos na tabela. Criei um campo específico para marinheiros escravos e dois campos para moços ou grumetes. No campo destinado aos marinheiros livres, foram computadas informações sobre homens provenientes da Europa, América e África, e nos campos referentes aos marinheiros e moços escravos, anotei aqueles cuja condição vinha mencionada nas listas de tripulantes anexadas aos processos. Esses dados indicam uma especificidade do engajamento de escravos nas equipagens. No caso dos moços ou grumetes escravos, a média etária deles contrariava a propalada regra de que os rapazes deveriam iniciar-se cedo no aprendizado do trabalho marítimo. No entanto, quase nada sabemos sobre as formas de recrutamento dos tripulantes. Amaral Lapa nos diz que a maneira mais comum de recrutar homens para a Carreira da Índia era a compulsória, o que ajuda a compreender falta de civilidade quando em terra e as constantes deserções10. Entretanto, o engajamento de homens livres e pobres em navios para aprenderem uma profissão também estava de acordo com as regras do mercado de trabalho existente para essa camada popular, que tinha no mar uma possibilidade arranjar trabalho em troca de salário - e em se tratando do Brasil colonial, uma das raras possibilidades de emprego disponíveis para esse tipo de mão-de-obra. Se para os homens livres e pobres podemos discutir o engajamento compulsório ou opcional no trabalho marítimo, para os escravos essa opção era inexistente: a iniciação no trabalho, embora também ocorresse cedo, estava sob o arbítrio do senhor ou de quem os tomava em aluguel. Na colônia, a escassez de trabalhadores qualificados nos estaleiros - onde encontramos profissões idênticas às dos navios - foi contornada pela formação de mão-de-obra livre ou escrava, comprando-se cativos especialmente destinados às tarefas da construção naval ou outros que já dominassem as técnicas do ofício. Também para os escravos embarcadiços do tráfico negreiro o recrutamento apresentava esse duplo caráter compulsório e livre. Ao que tudo indica, era bastante antigo o costume dos capitães de separarem os escravos mais robustos do carregamento para substituírem os tripulantes que morriam durante as viagens - conforme esclareceu François Froger, engenheiro voluntário e escrivão do diário da viagem de De Gennes, que em 1695 tentou fundar uma colônia francesa no Estreito de Magalhães11. O mesmo ocorreu com o africano Ochar, que aparece na lista dos tripulantes a bordo da escuna Dona Bárbara: pelo seu depoimento, fica claro que ele era um africano recém-capturado que foi colocado a serviço da embarcação12. Por outro lado, os navios também funcionaram como rotas de fuga para escravos que se fizeram passar por marinheiros livres e se engajaram no trabalho marítimo. De acordo com Scott, (...) mesmo escravos sem experiência de navegação poderiam conhecer alguns termos náuticos através dos versos de uma ou mais canções populares, e passar por marinheiros livres. Os capitães dos navios normalmente não estavam dispostos a inquirir cuidadosamente cada marinheiro engajado13. Por isso, podemos dizer que não se deve ao acaso a presença nos navios negreiros de moços um pouco mais idosos na condição de escravos. Moço ou grumete, de acordo com a definição de um dicionário de meados dos oitocentos, é o tripulante cuja praça medeia entre os marinheiros e os pajens, e que sobe às gáveas e faz outros misteres14. Denominar moços esses escravos de meia-idade não significa que, como os moços ou grumetes brancos, eles estivessem ingressando só agora no aprendizado profissional ou que simplesmente desempenhassem as funções definidas pelo dicionarista contemporâneo. No caso deles, a denominação deve ter uma relação menor com a idade e mais estreita com o grau em que se encontravam no processo de aprendizagem da profissão marítima. Certamente, os escravos mencionados já haviam passado por outras tarefas (e talvez outros senhores) antes de chegarem à vida marítima. Além do que, a presença de africanos (escravos ou não) a bordo de navios negreiros poderia se dar pela necessidade de um elo de comunicação entre os tripulantes e as cargas, pelo imperativo de saber o que murmuravam ou tramavam os escravos encarcerados no porão. Se os africanos embarcados puderam ou se dispuseram a cumprir essa função, pouco sabemos. Também entre os africanos a diversidade cultural era enorme, mas é plausível supor que um africano de etnia diversa (e inimiga) daqueles que vinham no porão pode ter sido muito útil às tripulações negreiras. Inversamente, um africano de qualquer origem pode ter sido um elo importante na rede de solidariedade dos malungos contra o tratamento dispensado a eles pelo restante da tripulação. Se informações como estas sobre as tripulações, de caráter mais censitário, podem nos fazer vislumbrar aspectos da cultura marítima, existem ainda outras brechas possíveis. A esses elementos formativos somavam-se a natureza, as condições e as relações sociais no trabalho e o espaço físico do navio. Como toda cultura, esta também não era estática e se transformou ao longo do tempo, interagindo com as alterações no processo e no local de trabalho. Ou seja, embora sem um relação de determinação, as novidades tecnológicas introduzidas na arquitetura naval levaram a mudanças inegáveis na vida de bordo. Mudavam o espaço onde se realizava o trabalho, o próprio processo de trabalho e a relação dos tripulantes entre si e no desempenho de suas funções. Processo de trabalho, cultura de classe, mudanças tecnológicas, espaço de trabalho: estes são temas caros à história social do trabalho, particularmente da história da classe operária. Se a classe operária é, nas palavras de E. P. Thompson, um processo histórico e não um produto de geração espontânea do sistema de fábricas15, as relações produtivas e as condições em que o trabalho se desenvolvia estavam presentes antes da formação da classe, numa época em que a luta de classes se travava sem a existência formal da classe operária16. A analogia entre o sistema fabril e o trabalho marítimo, inspirada na obra de Thompson, foi levada a cabo por Linebaugh e Rediker. Em Tiempo, disciplina de trabajo y capitalismo industrial, Thompson argumentou que a experiência de trabalho dos camponeses e artesãos do século XVIII ocupava uma parte de sua vida e lhes permitia assim um grau maior de autonomia17. No sistema fabril ou no navio, toda a vida era subordinada ao trabalho. Nesse sentido, a experiência dos marinheiros precedeu a dos proletários no que se refere ao trabalho disciplinado e ao isolamento, fazendo com que as proximidades entre a fábrica e o navio fosse além de casos pontuais, como o lidar dos marinheiros com a maquinaria e o haver pagamento de salários em dinheiro. O isolamento e o desligamento das relações sociais anteriores, característicos da vida no mar, provocavam situações extremadas de abandono, principalmente em casos de doenças advindas da profissão ou no final da vida útil do trabalhador. De acordo com Vilhena, na segunda metade do século XVIII a maior parte dos mendigos brancos que vagavam pelas ruas de Salvador era de ex-marujos convalescentes que, na falta de arrimo, acabavam tornando-se pedintes - um ofício menos laborioso e igualmente rendoso ao de marinheiro. Não era incomum que eles morressem pelas tavernas, vitimados pelo excesso de álcool. No mesmo período, a Santa Casa de Misericórdia carioca recebia marinheiros necessitados de curativos, que pagavam do próprio bolso as despesas do hospital18. Ao investigar a importância do tráfico de escravos para a história do movimento operário, Linebaugh identificou outros pontos em comum entre a fábrica e o navio: O grande investimento de capital, a divisão do trabalho, o disciplinamento e repetições, a vigilância estreita, o trabalho em grupos e o afastamento do lar19. Entendido dessa forma, o navio assume um importante papel no capitalismo, como um modo de produção - definido como quadro de interação humana20. Nele, homens de diversas culturas travaram relações. A vida em alto-mar resultava em um desligamento dos laços sociais pré-existentes por longos períodos, na perda da liberdade e autonomia pessoais e levava a uma tensão intensificada pela impossibilidade de controlar condições que só a natureza podia ditar. Já o recrutamento, a negociação do salário e as relações hierárquicas a bordo dos navios talvez possam ser definidos como um misto de economia moral e economia política. Da economia moral, os marinheiros teriam herdado ou mantido a rede informal de comunicação, pela qual obtinham informações sobre a qualidade do tratamento e da ração de bordo e também sobre o salário. Dela viriam ainda as formas de contestação às arbitrariedades a que os oficiais os submetiam, resultando muitas vezes em motins e deserções. Seria uma economia moral peculiar, na qual as obrigações paternalistas que pudessem ser transportadas da terra firme teriam pouca aplicação, uma vez que o navio zarpasse. Por outro lado, a vida de bordo devia à economia política e às relações de mercado capitalistas a erosão do paternalismo, por meio da mobilidade dos marinheiros e oficiais e da despersonalização advinda do salário monetário21. Esta última modalidade de pagamento, todavia, não era a única aplicada a toda a tripulação: a soldada a julgar dos marinheiros (entre os quais muitos escravos), presente em muitos negreiros brasileiros, mantinha a possibilidade de o pagamento se fazer dentro de critérios paternalistas e subjetivos de avaliação por parte dos oficiais. A insubordinação contumaz dos marinheiros estava ligada a um dos dois confrontos que forjaram a cultura marítima: a luta contra a exploração pelos oficiais, alinhada ao outro confronto básico, que envolvia o homem e a natureza. Viver embarcado significava travar uma luta diuturna contra a natureza, um lidar cotidiano que teve efeito inegável na cultura marítima. Sobreviver, nestes casos, era um verbo que se conjugava coletivamente: a vida muitas vezes dependia do trabalho, da habilidade e do espírito comunitário da tripulação. Nas longas travessias oceânicas, a ação contínua da água e do ar deterioravam principalmente o casco, as peças de madeira e o material de calafetagem. A luta contra esse desgaste exigia providências imediatas e eficazes dos calafates, que ao mesmo tempo significavam um aumento forçado da produtividade desse tripulante. Em benefício de suas próprias vidas, o trabalho, a habilidade e o espírito comunitário dos homens do mar atuaram sempre que necessário, mas o fato é que essa conjunção não era infalível22. A força da natureza também podia se manifestar de forma mais sutil do que nas tempestades em alto-mar. Para os embarcadiços, as calmarias - comuns especialmente na linha do Equador - representavam um perigo muitas vezes letal e eram objeto de terror, tanto quanto os temporais. O prussiano Leithold, que passou por calmarias ao longo da viagem que o trouxe ao Rio de Janeiro, afirmou que durante o fenômeno reinava um silêncio surdo no navio, que mais parecia um claustro de trapistas; ninguém falava, mesmo os marinheiros olhavam fixo para diante, por não haver esperança de passar a linha [do Equador]23. Um registro mais direto das inquietações de um tripulante preso a uma calmaria aparece no diário náutico do bergantim negreiro Brilhante, que zarpou do Rio de Janeiro para Ambriz em 12 de janeiro de 1838. Podemos ler nas anotações de 31 de janeiro, provavelmente escritas pelo jovem capitão Antonio Jorge da Costa, de 23 anos, o pedido para que o grande Criador do Universo nos dê bom vento e feliz viagem e, quatro dias mais tarde, a promessa de mandar rezar (...) uma missa de almas na primeira segunda-feira depois de chegar a Luanda se até amanhã segunda-feira tivermos bom vento e mais fresco, pois já são onze dias de calma. O Grande Deus nos dê feliz viagem e bom vento, e S. Francisco de Paula. Ainda não faltou um só momento que me não lembrasse a minha família e a minha Leopoldina, a quem adoro. A calmaria estendeu-se por quase todo o mês de fevereiro, provocando no rapaz lembranças ternas de dias menos arriscados: A todo o momento tenho lembranças (...) Ah! não digo de quem (...) (08 de fevereiro de 1838). Não há hora nem instante que me não lembre a minha amada Leopoldina, assim como a minha família (24 de fevereiro). O torna-viagem do Brilhante, em abril de 1838, também foi marcado pelos caprichos da natureza oceânica. Em 04 de maio, Costa anotou no diário: Muita chuva, tempo muito mau com vento muito forte, e o mar queria comer o navio. A fúria abrandou no dia seguinte, quando ao amanhecer abonançou o tempo (...). O fim da viagem não foi menos desditoso, embora nada tivesse a ver com as condições do tempo: o bergantim foi apreendido pelo brigue de guerra britânico Wizard em 13 de maio, próximo da costa fluminense24. Recorrer à força divina para salvar o navio de uma situação de perigo era uma dentre tantas atitudes tomadas pelos tripulantes. Essa força não era necessariamente o deus cristão, a quem Antonio Jorge da Costa recorreu com o voto de missas - e do qual não sabemos se ele se desobrigou em Luanda. A relação com a natureza, conectada a outros aspectos da vida marítima, implicou em atitudes religiosas (ou irreligiosas) as mais diversas. O segundo confronto que também exerceu influência decisiva sobre o desenvolvimento da cultura marítima foi a luta de classes a bordo, envolvendo o poder, a autoridade, a hierarquia, o trabalho e a disciplina. Se perfilarmos as atitudes de marinheiros e oficiais e a luta que se travava entre eles, talvez seja mais adequado falar em culturas marítimas, no plural. Afinal, as posições antagônicas geraram interesses, valores e práticas distintos. Como continuarei tratando da cultura marítima no singular, antes de prosseguir é preciso fazer uma ressalva sobre essa diferenciação: se de um lado havia uma cultura corporativa, produto da luta com os elementos naturais, de outro havia divergências insuperáveis entre oficiais e marinheiros que emergiam das relações de produção básicas na navegação25. Veremos como isso se materializava, por exemplo, nos processos decisórios internos dos navios, nos quais, apesar de normalmente prevalecer a autoridade do capitão ou de outros oficiais, havia momentos em que as decisões eram tomadas pelo coletivo da tripulação, especialmente quando havia o perigo de soçobrar. III - ESTRANHA, CONCISA E SOFISTICADA: A LINGUAGEM DOS HOMENS DO MAR Viajar na vida marítima, constituía parte do trabalho. Os relatos demonstram que em muitos portos havia uma diversidade de gentes e línguas estrangeiras. No Rio de Janeiro não era diferente: línguas, nacionalidades e cores misturavam-se ali. O viajante francês DOrbigny confessou a dificuldade em descrever cada um dos elementos que viu naquele porto, na primavera de 1826: Seria difícil dar uma idéia do intenso comércio do Rio de Janeiro. O porto, a bolsa, os mercados das ruas paralelas ao mar ficam abarrotados de uma multidão de negociantes, marinheiros e negros. Os vários idiomas aí falados, a variedade de vestuários, os cantos dos negros que carregam fardos, o rangido dos carros de bois que transportam as mercadorias, as freqüentes salvas dos fortes e dos navios que entram, o toque dos sinos que convocam à reza, os gritos da multidão, tudo isso contribui para dar à cidade uma fisionomia confusa, ruidosa e original26. Assim como na capital brasileira, a multiplicidade de origens étnicas e nacionais, além de todo tipo de diversidade na navegação, parecem ter sido a tônica em todos os portos ocidentais onde vigorava o trabalho escravo. Em muitos casos - e talvez mesmo no Rio de Janeiro -, os trabalhadores marítimos formaram uma comunidade como a existente no Caribe desde pelo menos o final do século XVIII. Em diversas ilhas, a presença dos marinheiros foi expressiva: cerca de 21 mil marujos britânicos passavam todos os anos pelas Índias Ocidentais, sendo que apenas o comércio da Jamaica em 1.788 empregava 500 navios e mais de 9.000 homens. Uma quantidade duas vezes maior de marinheiros franceses arribou em São Domingos no ano da Revolução Francesa, em 710 navios. São números significativos, que apontam não apenas para o fato de que havia muitos homens de passagem; de toda essa população circulante e instável, um número não quantificável acabou se fixando nas Antilhas e outros se estabeleceram ali por períodos consideráveis, vitimados por problemas de saúde, em busca de engajamento em outra embarcação, por falta de emprego, deserção ou outros motivos quaisquer27. A linguagem tinha um significado especial no mundo à parte que era a navegação de longo curso. Os homens do mar, ao longo de suas viagens ou em terra, acabavam tendo a oportunidade de conhecer diversas línguas em grau suficiente para se comunicarem com homens de origens diferentes. Porém, tornar-se um marinheiro consistia, entre outras coisas, em aprender e ensinar o jargão específico do mar: em parte, era por meio dessa linguagem peculiar que os marinheiros eram identificados por outros grupos sociais. Todavia, a vida no mar não se traduzia apenas em isolamento da vida terrestre e desligamento em relação à cultura de origem. O contraponto disto está na própria navegação, que, se de um lado isolava e desligava, de outro fazia com que os homens do mar expressassem por intermédio do linguajar sua alienação em relação ao mundo terrestre e, simultaneamente, criassem novos laços que os unissem aos demais marinheiros. Ao que tudo indica, essa linguagem era utilizada exclusivamente na convivência entre os tripulantes, embarcados ou em terra. Como toda linguagem, ela também expressava uma série de relações sociais que poderiam excluir os não-iniciados. O prussiano Leithold, na viagem de volta à sua terra natal, deixou um registro de como esse mecanismo agia, modificado pelo (ou modificando o) comportamento dos homens do mar. Klaus Hoop, capitão do navio que o conduziu do Rio de Janeiro à Prússia, mudou de conduta quando alcançou alto-mar e passou a tratar os passageiros como seus subordinados: Começou a falar com seus dois imediatos num dialeto o mais incompreensível e desagradável possível, o que não tínhamos ouvido antes da partida. Mesmo ao tratar do preço da passagem, nunca lhe percebi faltar à correção que se deve a estranhos e mesmo a íntimos. De repente, transformou-se ele em pessoa totalmente outra. Ficou de uma ridícula insolência. Contudo, o tradutor brasileiro de Leithold editou o texto de forma muito particular, anotando na obra traduzida: seguem-se seis páginas irrelevantes sobre as relações desse Hudibrás - como o capitão foi apelidado - com os passageiros e que nenhum interesse oferecem ao leitor brasileiro28. Outro viajante deixou-nos um relato de um caso de indisciplina e a punição exemplar sofrida por um marinheiro. Hill, um dos tripulantes mais velhos do navio, falava em voz alta na proa, talvez sob efeito da bebida, quando foi repreendido pelo capitão, que o chamou à popa e o passou-lhe a carraspana: - Vê se te calas agora, filho de tal por qual. - Não sou filho de tal por qual, senhor. - Ponha-lhe as algemas, Mr. Libby - disse ao primeiro oficial, que procedeu de acordo. É quase certo que o adjetivo usado pelo capitão ao se referir ao velho marinheiro tenha sido um pouco mais pesado do que o anotado por Samuel Arnold, o viajante em questão. De todo modo, além da prisão até a manhã seguinte, o castigo incluiu o corte do gug pelo resto da viagem29. O tratamento rude dispensado pelos oficiais à equipagem era ainda pior quando se dirigia aos marinheiros no grau mais baixo da hierarquia. A violência parecia fazer parte da linguagem da disciplina, a julgar pelo relato de Manet sobre situações vividas a bordo: os quatro grumetes e os dois aprendizes do navio eram tratados a socos e pontapés pelo comissário, um negro brutal, [que] dava-lhes surras tremendas, por qualquer desobediência, segundo era uso na marinha (...). Esses métodos tornavam os garotos incrivelmente disciplinados30. O jargão marítimo era utilizado no trato pessoal e na imposição da disciplina, mas também e principalmente no aprendizado profissional. Muitas vezes, as situações vividas no mar requeriam ação imediata - como em meio a tempestades, no salvamento de homens que caíam do navio ou na repressão a revoltas de escravos, por exemplo. Situações como essas, em que qualquer falha poderia significar a perda de vidas ou da própria embarcação, ajudam a explicar a ausência de ambigüidade na linguagem técnica dos marinheiros: nela, cada objeto e ação tinha uma palavra ou frase curta, clara e inconfundível para designá-los. Em que pese a já ressaltada divisão social a bordo entre oficiais e marinheiros comuns, a linguagem era um elemento cultural necessariamente compartilhado por todos, pois era um instrumento que colocava em campo a autoridade e afinava a sintonia entre o capitão e seus subordinados31. A eficiência do trabalho e do comando em meio a um temporal foi testemunhada pelo mineralogista e botânico alemão que acompanhou a imperatriz Leopoldina ao Brasil. O viajante narrou as agruras vividas pelo grupo de cientistas, dentre os quais apenas alguns tiveram coragem de sair de suas cabines para observar a luta dos elementos que bramiam em torno de nós. Estes logo retornaram para o lugar de onde haviam saído, afugentados pela celeuma dos marinheiros no trabalho, a que se unia, num todo caótico, o ensurdecedor rugir da tempestade e das vagas, o estalar do navio, o sibilar do vento no mastro e na cordoalha e o grito de comando dos oficiais (...)32. A clareza e a objetividade do jargão não devem levar a uma conclusão apressada de que se tratava de uma linguagem pouco complexa; evidentemente, a terminologia marítima foi alterada ao longo do tempo e em função das transformações tecnológicas. O navio de alto-mar era uma das mais sofisticadas peças tecnológicas dos tempos modernos e permaneceu em constante transformação. As expressões utilizadas para se referir às suas partes ou ao processo de trabalho que nele se desenrolava não eram menos sofisticadas. A transformação e o caráter sintético do linguajar marítimo foram apontados por dicionaristas portugueses do século XX. Na introdução ao Dicionário da linguagem de marinha antiga e atual, os autores dizem ter encontrado muitos termos desconhecidos ao lidar com a edição de um diário marítimo do início do século XVII que os dicionários não registravam, e frases descuidadamente redigidas e cujo sentido se escondia em breves palavras, como é próprio do falar de bordo33. No século XIX, outros dicionaristas deixaram patente a especificidade do jargão marítimo, afirmando que qualquer curioso na arte marítima teria dificuldades de compreensão se não andasse embarcado e, mesmo no caso de ser um passageiro constante, se não se interessasse por outra coisa que não fosse seu negócio34. Esta pode ser uma pista para explicar o fato de que Leithold tenha qualificado a fala do capitão Hoop como o dialeto o mais incompreensível e desagradável possível. Provavelmente, o viajante estava interessado apenas no seu regresso à Europa, pouco se dispondo a compreender o que ouvia e que lhe soava tão estranho. A especificidade do linguajar também se devia à complexidade tecnológica. Ao publicar seu dicionário de marinharia em meados do século XIX, Antonio Gregório de Freitas nos deu pistas sobre o tipo de conhecimento que os tripulantes deveriam possuir para desempenhar seu trabalho. A obra inclui noções sobre as dimensões e peças dos navios, mastreação, âncoras e amarras, nomenclatura da mastreação e construção das âncoras, termos de construção, feitura dos mastros e métodos para cortar as velas e cálculos astronômicos35. Penetrar em tal especificidade era, efetivamente, aprender outra língua. As palavras do aprendiz inglês Jack Cremer, no século XVIII, demonstram claramente esse processo: eu não poderia dizer em que mundo estava, se entre espíritos ou demônios. Tudo parecia estranho: linguagem diferente e expressões estranhas, e às vezes pensava comigo mesmo ser um sonho, como se eu nunca estivesse plenamente acordado. Seus primeiros passos, como os de todo aprendiz, foram aprender as tarefas do trabalho, os nomes das partes da embarcação, a hierarquia de bordo, o reconhecimento dos vários tipos de navios e as designações específicas dos elementos da natureza36. Esta linguagem concisa, acurada e técnica era também a expressão das relações sociais no interior da tripulação. Ao aprender a linguagem marítima, o jovem grumete não estava apenas enriquecendo seu vocabulário: ele estava também conhecendo sua posição na hierarquia, ao mesmo tempo em que ingressava nas relações da comunidade marítima. Se a linguagem expressava o poder dos oficiais, era ao mesmo tempo a expressão da integração dos tripulantes e da resistência a esse mesmo poder. Mestres e contramestres normalmente eram as figuras dominantes nessa comunidade, os maiores conhecedores da linguagem e das técnicas do trabalho, sendo o modo de falar comunitário a base da consciência e do sentimento de coletividade entre os que viviam no mar37. Tudo o que foi dito até aqui sobre a linguagem marítima não exclui da experiência dos homens do mar o contato inter-cultural. No comércio de escravos na costa da África, a linguagem também adquiriu características próprias - as chamadas línguas pidgins, criadas em um processo de reelaboração da gramática, do léxico e da entonação. Essas línguas eram utilizadas na comunicação entre os envolvidos no negócio de compra e venda de escravos, e entre elas estavam o inglês pidgin do século XVIII, bem como o português crioulo - que também se tornou pidgin e era utilizado como língua de comércio e como segunda língua da educação congolesa, envolvendo não só o Congo e as colônias portuguesas, mas toda a costa oeste da África Central. Os brasileiros que retornaram para Lagos em meados do século XIX também procuraram disseminar o ensino formal do idioma português, tanto para preservar sua identidade frente à introdução do inglês, como também porque ele era a língua do comércio na costa38. Se as línguas pidgins eram próprias às transações do tráfico na costa africana, elas provavelmente também estavam presentes no trato entre tripulantes e africanos a bordo dos navios, embora não tenhamos evidências diretas disso. Contra essa hipótese pode-se argumentar que o tempo da viagem transatlântica era insuficiente para que se pudesse travar uma comunicação aprofundada entre tripulantes e escravos. No entanto, apesar da falta de indícios concretos, não estou convencido de que não havia um meio de comunicação lingüística estabelecido entre tripulantes e africanos; por isso, pretendo reforçar aqui a hipótese de que havia tal possibilidade. Sem ordem de prioridade, podem ser apresentadas quatro situações nas quais teriam se estabelecido contatos e amarradas possibilidades de um entendimento mútuo. Em primeiro lugar, havia o lidar com o negócio de compra e venda do lote de escravos. Muitas vezes, a negociação entre os oficiais e os fornecedores (africanos ou luso-brasileiros, no caso de Angola) era demorada, o que para a tripulação representava uma espera por tempo variado, muitas vezes de meses. Nesse meio tempo, a equipagem não ficava necessariamente confinada a bordo; tendo ou não aversão ao tráfico e mesmo temendo os perigos representados pelas doenças no litoral africano, é certo que havia muitas oportunidades para esses homens irem à terra até que o negócio fosse fechado. Nessas idas, era improvável que não tivessem nenhuma experiência com os habitantes naturais da região. A segunda experiência pode ser classificada como a mais radical: tripulantes e africanos faziam juntos a travessia dos oceanos por um tempo que, no século XIX, podia variar de sessenta a noventa dias (considerando viagens de Angola e Moçambique, respectivamente, para o Rio de Janeiro) se tudo transcorresse normalmente, sem calmarias ou outros imprevistos que atrasassem a viagem. Apesar de uns virem no convés e outros no porão, ambos compartilhavam espaços do navio em circunstâncias diversas, mas de todo modo freqüentes: de um lado, os africanos deixavam o porão em grupos para esticar as pernas, tomar sol ou prestar serviços no convés; por sua vez, havia tripulantes responsáveis pelo tratamento dos africanos confinados, alimentando-os e servindo-lhes água durante a travessia, mesmo que esses cuidados fossem restritos ao abrir e fechar das escotilhas. Havia ainda as inevitáveis revoltas a bordo, um tipo de experiência-limite da qual certamente todos os envolvidos tiravam lições a respeito de seus oponentes. Em terceiro lugar, não podemos esquecer a já mencionada existência de africanos de diversas etnias nas equipagens. Pelos cálculos de Herbert Klein, entre 1795 e 1811 os escravos totalizavam 2.058 dos 12.250 marinheiros nos navios do tráfico brasileiro (em média 14 marinheiros escravos por navio). Eles também estavam presentes na navegação de cabotagem do final do século XVIII, na qual trabalhavam cerca de dez mil marinheiros escravos39. Como afirmei anteriormente, a presença de tripulantes africanos nos navios negreiros poderia se dar pela necessidade de um elo de comunicação entre os demais tripulantes e as cargas, para saber o que murmuravam os escravos encarcerados no porão e prevenir revoltas. Esta hipótese conta com o aporte testemunhal de um capitão negreiro inglês atuante na África Ocidental, que certa feita se lamentou por ter realizado uma viagem sem intérpretes para ajudar no necessário intercurso com nossos escravos. Não havia nenhum a bordo que conhecesse uma palavra do dialeto deles. A ausência de um tripulante que cumprisse esse papel e o uso indiscriminado do chicote como emblema da disciplina a bordo acabaram ensinando a mais triste das lições ao capitão: logo depois da partida, ele teve de enfrentar à bala uma revolta de escravos40. Cumprindo ou não um papel na prevenção das revoltas de escravos, o fato é que a simples presença de marujos africanos a bordo certamente possibilitou contatos culturais com os demais tripulantes de diversas nacionalidades européias e americanas que também compunham a grupo de marinheiros e o corpo de oficiais. Por fim, há o fato de que o conhecimento mútuo entre esses dois grupos não se restringia ao tempo de espera na costa da África, às viagens ou à presença de marujos africanos a bordo. Em todos os portos onde a escravidão africana existia, talvez fosse impossível controlar outras atividades que envolvessem escravos e marinheiros. Podemos mais uma vez recorrer ao relato de DOrbigny sobre o Rio de Janeiro, citado acima, e acrescentar que havia nesse porto lugares por excelência para contatos dessa natureza: a bica dos Marinheiros, construída na época do vice-rei Gomes Freire de Andrade na antiga praia de Braz de Pina e demolida por Luís de Vasconcelos e Sousa, local onde vinha a maruja dos navios surtos no porto (...) fazer provisão dágua, ou o chafariz do Largo do Paço, onde vão se abastecer os navios ancorados na baía, ao mesmo tempo que inúmeros mulatos e negros ali se acotovelam para embarcar e desembarcar mercadorias, como notou o mesmo viajante francês. Na mesma linha, o historiador Julius Scott encontrou indícios de contatos comerciais e culturais entre eles no Caribe oitocentista: as tripulações sedentas de frutas e legumes frescos depois de uma longa estadia no mar eram o mercado natural para as roças escravas de subsistência e, ao que tudo indica, as relações entre ambos eram bastante cordiais. O contato entre marinheiros e negros no Caribe não poderia deixar de ter conseqüências culturais: de acordo com o autor, muitas canções de trabalho no mar, disseminadas mundo afora pelos marinheiros britânicos do século XIX, assemelham-se extraordinariamente às canções escravas do Caribe41. Também os marinheiros portugueses e brasileiros tinham por hábito trabalhar ao som de canções próprias. Infelizmente, não pude conhecer o conteúdo dessas canções; sei que elas existiam apenas por meio dos verbetes de dicionários de marinharia. Essas canções eram denominadas salomas e, modernamente, celeumas, definidas como cantiga, ou gritaria, que fazem os marinheiros, quando alam algum cabo, ou (...) cantoria com que a gente do mar acompanhava as fainas que exigissem grandes esforços. Costumava ser primeiramente entoadas só por um homem e depois em coro pelos restantes. Cerimonial, com vozeria acompanhada por toques de trombetas, pífaros, tambores etc (...). Barulho. Pelos dicionários, temos ainda a preciosa informação de que salomear ou celeumar era proibido a bordo dos navios da armada portuguesa pelo menos desde o final do século XVIII. Quanto aos navios mercantes, no entanto, não há referência à proibição42, não havendo também nenhum motivo para supor que estes marujos deixassem de salomear, apesar da ausência de registros. Todas essas situações revelam grandes probabilidades de contato entre os homens do mar e os africanos, exemplificadas no linguajar marítimo mas não restritas a ele. Considerar essas probabilidades é uma das poucas formas que o historiador dispõe para superar a ausência de registros diretos desse contato. A seguir, apresento algumas reflexões sobre outros aspectos desse universo cultural específico. IV - SUPERSTIÇÃO, FÉ E RITUALISMO: A RELIGIOSIDADE DOS HOMENS DO MAR A vida no mar também criou especificidades no que se refere à maneira dos homens expressarem sua religiosidade. Exemplos dessa expressão foram coletados por Keith Thomas: de acordo com ele, em situações de perigo como tempestades com risco de naufrágio, um marinheiro poderia pressionar Deus para atender às suas súplicas, prometendo velas para um altar ou se declarar disposto a empreender uma peregrinação difícil, caso escapasse ao risco do momento. Para o autor, mais do que um procedimento católico corriqueiro, este era um tipo de fé mágica, uma armadilha criada pela Igreja medieval na qual ela mesma se viu enredada. Se esta evidência apresentada por Thomas me parece questionável, o autor apresentou outras, procurando demonstrar que a crença dos homens do mar era permeada por superstição e magia. A astrologia, por exemplo, era um instrumento freqüentemente usado por clientes que desejavam saber se deveriam fazer o seguro de um determinado navio, assim como havia um guia de saber astrológico para marinheiros escrito por um tal John Gadbury no século XVII. A bruxaria, sempre de acordo com Thomas, era outro recurso para explicar sucessos ou fracassos em ocupações profissionais, já que a vida comercial na Inglaterra dos séculos XVI e XVII era fortemente competitiva e o desejo de progredir era cada vez mais aceito. A vida no mar, repleta de problemas muitas vezes incontornáveis, fazia dos marinheiros pessoas notoriamente supersticiosas e geravam um grande número de precauções rituais destinadas a garantir um clima favorável e a segurança do navio43. Todavia, em razão da quantidade de exemplos e da magnitude da pesquisa de Thomas, toda a sociedade do século XVII - e não os marinheiros exclusivamente - eram supersticiosos e crentes na magia. Católicas ou meramente supersticiosas, mágicas ou simplesmente pagãs, o fato é que as práticas religiosas, da crença, da fé ou do misticismo (ou outro nome que se queira dar) tinham de se compatibilizar com as necessidades do trabalho e da sobrevivência. No navio, os rituais não poderiam preceder o trabalho, especialmente em situações de perigo iminente - justamente aquelas onde se sentia necessidade de maior ajuda vinda do sobrenatural. Estas necessidades eram reforçadas ainda pelo isolamento do navio e pela distância física em relação à igreja institucionalizada, bem como pela tradição plebéia de ceticismo e anticlericalismo, fazendo dos marinheiros um grupo notoriamente irreligioso no início do período moderno44. A verdade é que pouco se sabe sobre o que esses homens pensavam a respeito de temas teológicos clássicos do cristianismo: o que seria do corpo e da alma após a morte, qual era o caminho da salvação ou a natureza do céu e do inferno. No entanto, pode-se afirmar que o leque da filiação religiosa era amplo, indo do catolicismo e do protestantismo à imensa gama de crenças religiosas de tripulantes africanos, asiáticos e nativos americanos, todas elas coexistindo a bordo. Assim, para autores como Rediker, a religião era uma questão secundária para a identidade dos homens do mar, que pareciam subordinar a fé à atividade prática. Mas isto não significa que a religião formal estivesse totalmente ausente entre eles. Parece ter sido regra mais ou menos geral a obrigação legal de levar capelães a bordo. No início do século XVIII, a lei obrigava a marinha de guerra inglesa a embarcar capelães e, nos navios mercantes, o serviço religioso era feito por insistência do capitão e conduzido por ele ou por um membro da tripulação. Ocasionalmente, alguns navios tinham serviço religioso45. No âmbito da lei, Portugal talvez tenha sido o pioneiro na exigência de levar um sacerdote a bordo dos navios - no caso, navios negreiros: já em 1684, a Coroa lusa dava ordens nesse sentido e estabelecia como punição pela falta o pagamento de uma multa eqüivalente a duas vezes o valor dos negros carregados, além de seis anos de degredo na Índia para os culpados. De acordo com Luiz Vianna Filho, o alvará real jamais deixou de ser apenas letra morta, já que os traficantes davam propinas aos responsáveis pela fiscalização. A determinação, reiterada em 181346, não parece ter vingado, a julgar pela quantidade ínfima de relatos acerca de presença de sacerdotes a bordo de navios negreiros. Também durante a longa espera das tripulações no litoral africano, a possibilidade de uma assistência católica formal era diminuta, se julgarmos pelas condições das igrejas na Luanda colonial: na segunda metade do século XVIII, não havia naquela cidade sacerdotes em número suficiente sequer para acompanhar o bispo nas procissões, apesar da grande quantidade de templos ali existentes47. Talvez a determinação da Coroa portuguesa obrigando as expedições negreiras a levarem capelães como tripulantes se prendesse a uma questão de consciência e ao desejo de cristianizar os cativos africanos. Com isso, para baratear os custos da viagem e devido à dificuldade em encontrar padres que desejassem viver embarcados, quase sempre a travessia se fazia sem a presença de sacerdotes católicos. Por certo, a exigência de um capelão a bordo não provinha de uma demanda dos tripulantes e a ausência deles não parece ter criado incômodo aos marinheiros envolvidos com o tráfico de escravos para o Brasil. Isto não significa necessariamente que esses homens não fossem católicos. Certamente não compartilhavam da ortodoxia religiosa de grupos que viviam em terra firme, mas mesmo entre estes havia inúmeros problemas de fé. Muitos fatores podem ter diminuído o vigor das idéias religiosas na consciência dos homens do mar. Além dos já mencionados isolamento e distância social e geográfica das igrejas, não se deve esquecer que o tempo do trabalho no interior da navegação de longa distância era bastante diverso da vida na terra firme. Doutrinas e liturgias ortodoxas não se conjugavam com o trabalho no mar, no qual não havia domingo ou dia santo, sendo o ritmo do trabalho e do repouso condicionados pelas variações da natureza, pelas necessidades mais prementes das tarefas coletivas e por imprevistos de toda sorte. De qualquer forma, quando temos registros de manifestação da fé nos santos católicos, eles não parecem ser de tipo mágico ou supersticioso, como quer Thomas. Também não eram representações de uma crença abnegada, mas sim uma fé que parecia ter implicações políticas ou de ordem prática mais evidentes. Na Bahia de fins do século XVIII, São José era especialmente venerado pelos traficantes - por duas razões, de acordo com Pierre Verger: a primeira devia-se à homonimia entre o santo e o soberano reinante em Portugal, em cuja administração planejou-se a criação de uma companhia de comércio com a Costa da Mina. A segunda razão ligava-se à existência de uma imagem desse santo na capela de Santo Antônio da Barra, em torno da qual se erigira uma irmandade congregando os comerciantes da Costa da Mina. Há uma pequena história edificante sobre essa imagem: ela teria sido resgatada do castelo de São Jorge em 1637, quando os holandeses foram expulsos daquela feitoria portuguesa, sendo trazida para Salvador em 1752 com zelo e devoção pelo capitão de um navio negreiro. Desde então, os traficantes passaram a invocar a proteção do santo para os seus negócios, realizando anualmente festividades para agradecer o patrocínio que recebiam. Além dos santos, os traficantes chegaram mesmo a invocar a proteção do próprio Cristo para seus negócios: uma pintura votiva avistada na Bahia pelo Barão Forth Rouen, em 1847, representava um navio negreiro sob pavilhão brasileiro, sendo perseguido por dois barcos, um francês e outro inglês. No céu, aparecia a figura de Cristo que, com sua mão poderosa, protegia o navio brasileiro, permitindo-lhe escapar do perigo e entrar calmamente na enseada. Entre os traficantes baianos, a proteção também era solicitada com especial predileção pela figura de Nosso Senhor do Bonfim. Era assim que o traficante Salvador de Brito Ribeiro, estabelecido em Onim, escrevia para sua irmã na Bahia, dizendo-lhe que teve notícias da celebração ao Senhor do Bonfim, em 21 de janeiro; Ribeiro desejava ter participado da festa, mas a demora em resolver os negócios africanos o teria impedido. Na impossibilidade de comparecer, pedia à irmã que me leve o nome à sua festa e [assim] me ajude na minha jornada48. Se os donos do negócio expressavam sua devoção dentro de parâmetros aceitos institucionalmente pelo catolicismo - irmandades, festas religiosas, promessas e ex-votos - os marinheiros comuns compartilhavam um exercício menos ortodoxo da religião. Sabiam, por exemplo, do papel de intermediário desempenhado por Santo Antônio nas questões do amor, e foi por meio desse conhecimento que o viajante francês La Flotte pode presentear uma cortesã que conhecera no Rio de Janeiro em 1757. A dama de alto coturno desejava ter uma imagem do santo, com o detalhe de que deveria ser européia mas não portuguesa. Percorrendo sem sucesso as várias lojas de artigos religiosos da cidade, La Flotte só conseguiu arranjar tal imagem junto a um marinheiro genovês de passagem pelo Rio49. Para os marinheiros engajados no tráfico de africanos, a crença no Deus católico não parecia incompatível com a atividade que desempenhavam - afinal, não era incompatível mesmo para a Igreja católica. Portanto, não havia incongruência no fato de que eles pudessem jurar pelos Santos Evangelhos ao prestarem informações precisas sobre suas cargas, como fizeram os tripulantes da barca Eliza. Por vezes, na religiosidade popular dos marinheiros, era legítimo até mesmo pedir a intercessão de Deus para atingir um objetivo pouco nobre como a vingança. O capitão do Brilhante pedia boa viagem à divindade e rogava: Ó meu Deus, lembrai-vos de quem navega. Dias depois, anotou no diário náutico: Meu Deus, vos peço que permitas que a viagem se acabe para eu me vingar daquele patife para lhe tirar de presunção que ele tem. Inimigo será (sic) dele sempre. Da mesma forma, também era comum simplesmente invocar a proteção divina, pedindo, por exemplo, que Nossa Senhora da Conceição nos dê feliz viagem50. Embora distantes no tempo, os processos instaurados durante as Visitações coloniais do Santo Ofício evidenciaram pecualiaridades nas formas de expressão religiosa dos marinheiros. Inversamente, há poucos sinais de que a cristianização entre esses homens tenha se tornado mais eficaz até o século XVIII. Nas Confissões e Denunciações de Pernambuco (1593-95), por exemplo, há inúmeros casos de marinheiros que, quando aportavam, não deixavam na embarcação crenças ou costumes pouco ortodoxos. Um marujo doente da nau São Pedro, hospedado por um casal pernambucano, pronunciou blasfêmias terríveis contra Cristo e São Pedro, ouvidas por um vizinho indiscreto que não hesitou em denunciá-lo à Inquisição. Juntamente com os santos, aos padres por vezes eram dirigidas as blasfêmias dos marujos: dois deles denunciaram seu companheiro Lianor Fernandes em 1594, que teria chamado o padre e sua paróquia de bêbado, filho de cornudo e de puta, acrescentando ainda que mais vale se confessar o homem ou mulher de seus pecados ao faxono que a vós51. No cômputo das denúncias contra pescadores e tripulantes existentes nas Confissões (atingindo 35 pessoas), Luiz Geraldo Silva assinalou que a heresia era a falta mais comum em meio aos processos instaurados, denotando o caráter de cristãos-velhos dos homens do mar no mundo ultramarino português do século XVI. A principal base para essa conclusão é um caso ocorrido em 1588: Manuel Luís vinha como piloto em uma caravela com destino a Pernambuco, quando parte da tripulação considerou que ele não governava bem e que não merecia soldada de marinheiro senão de grumete. Indignado com a ofensa, respondeu que se tal houver de ser, dizei que Deus não é Deus. O homem que o denunciou por essas palavras impulsivas achou que talvez mais estranha do que elas fosse a reação da equipagem: toda mais gente do serviço da nau que o ouviu não falou palavra52. Este comportamento herético foi claramente motivado por uma ocorrência profissional. Ocorrências como essa não eram incomuns nos navios: um tripulante que não estivesse cumprindo sua função a contento era imediatamente avaliado por seus companheiros, até porque de seu desempenho dependia muitas vezes a vida de todos. Em se tratando do piloto, a vigilância certamente era ainda mais estrita; afinal, era ele quem governava o navio - e, no caso em questão, mal. O que os marinheiros fizeram foi apontar sua deficiência como piloto nos moldes da linguagem marítima - rebaixando-o a grumete, ou seja, aprendiz. Temos aqui um caso exemplar do uso da linguagem marítima nas relações sociais a bordo: de um lado, marinheiros sutilmente insubordinados; de outro, um oficial tentando impor a disciplina. Luiz Silva julga ter sido herética a reação do piloto, bem como o denunciante pensou o mesmo a respeito de seus companheiros que se mantiveram calados. Todavia, se a reação foi herética do prisma dos critérios canônicos, ela estava bastante de acordo com a cultura dos homens do mar: contra a indisciplina, era empregada a linguagem dura da manutenção da ordem. Frente a uma reação disciplinar, avaliadas as circunstâncias, talvez fosse estrategicamente mais interessante manter-se calado. No interior da religião constituída, não era fácil encontrar indicações sobre o que fazer em situações de emergência causadas pelas forças da natureza: o capitão do Brilhante, por exemplo, acreditava que iria encontrar brevemente um pojo onde pudesse consertar o mastro e o velame destruídos em um temporal, pois embora não pudesse avistar a terra, sabia que ela não estava muito longe porque passa (sic) muitas caravelas e desovação de peixe53. Acostumados à lida com ventos, tempestades e calmarias e a ler os sinais da natureza para prever mudanças de rota, arribadas não previstas ou mudanças na posição das velas, os homens do mar acreditavam que era possível utilizar esse mesmo conhecimento também para ler o futuro. Netuno era a mais proeminente de todas as figuras do panteão marítimo, produto da combinação de referências cristãs e pré-cristãs, da mitologia clássica, dos relatos bíblicos e das tradições inventadas pelos homens do mar54. A representação desse deus mitológico foi reinventada pelos marinheiros da era dos descobrimentos, quando começaram a realizar um importante rito de passagem ao atravessarem a linha do Equador - talvez como júbilo pelo fato de que os navios não derretiam sob o sol e nem o mar terminava em abismo, conforme pregavam os dogmas antigos e medievais. Talvez também se deva dizer que a passagem pela linha era um dos poucos momentos de relaxamento em relação à faina intermitente do trabalho no mar: ali, de acordo com inúmeros relatos de viajantes, as famosas calmarias eram mais freqüentes que em outros lugares. Embora provocassem transtorno à viagem e medo nos marinheiros quando se prolongavam demasiadamente, a calmaria provocava uma diminuição no ritmo de trabalho que poderia ser ocupada com uma rara possibilidade de festa a bordo. Mesmo depois de desfeito o mistério equatorial, o ritual foi preservado na cultura marítima, sendo uma das poucas oportunidades que os marujos tinham de relaxar temporariamente a disciplina a bordo. Na passagem do Equador, eram abolidas as barreiras entre o capitão e o restante da tripulação, e muitos capitães eram tratados com desprezo e escárnio. Era Netuno quem presidia o ritual pagão, representado por um tripulante que subia do mar para o navio pela proa - vestido de branco, com longas fitas de madeira no lugar dos cabelos, coroado e com um tridente na mão, secundado por dois tritões, na descrição de Burmeister, ou com um séquito de seis pequenos grumetes que representavam o demônio, na opinião de Le Vayer, verdadeiros anabatistas mascarados, na visão do luterano Seidler55. Uma vez a bordo e depois de saudado pelo comandante, Netuno indagava sobre a rota e a finalidade da viagem, pedia informações a respeito da tripulação e se dirigia aos novatos, falando-lhes do seu futuro como súditos do deus do mar. Depois do discurso, vinha o batismo propriamente dito: todo aquele que atravessava pela primeira vez a linha era emporcalhado com fuligem, dissolvida em aguardente; em seguida, a cara é-lhe raspada com uma faca cega até que os espectadores se apiedem dele, deitando alguns baldes dágua sobre a cabeça da pobre vítima e abandonando-a depois. Em outras versões, o batismo era feito por meio de um mergulho diretamente no mar, domínio privilegiado de Netuno. Havia entre os passageiros aqueles que não desejavam participar do ritual - possibilidade com a qual os marinheiros não contavam, já que o rito estava ligado à construção da própria identidade. Para escapar das troças, a solução era pagar uma multa, como o fizeram Burmeister - que não quis ser batizado nem permitiu que seu filho o fosse, pagando para isso um valor em dinheiro - e Seidler e seus companheiros, que com algumas piastras espanholas compramos a dispensa do grande batizado que era celebrado no convés. Os que aceitavam as regras por vezes se divertiam: o jovem Eduardo Manet, que veio ao Brasil com dezessete anos em 1848, descreveu o ritual de travessia do Equador, do qual ele e seus companheiros participaram, com alegria e disp
Posted on: Fri, 15 Nov 2013 03:04:09 +0000

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